OLHAR
E-book festeja 50 anos de crônicas afiadas do colunista do ‘Estadão’
Ubiratan Brasil
No final dos anos 1960, a se-
ção de gastronomia do jornal
gaúcho Zero Hora chamava
atenção não apenas pela quali-
dade das receitas sugeridas,
mas, principalmente, pelo esti-
lo talentoso e bem-humorado
com que eram escritas. Não
eram assinadas, mas logo se
descobriu que eram de autoria
de Luis Fernando, filho do gran-
de romancista Erico Verissimo.
Era o início do hoje consagrado
escritor, cronista, cartunista,
ficcionista, saxofonista, gour-
met e torcedor fanático do In-
ternacional, um dos grandes no-
mes da literatura brasileira.
E, a partir da primeira crôni-
ca assinada (em 19 de abril de
1969 , também no Zero Hora),
Luis Fernando Verissimo não
parou mais, produzindo textos
para diversos jornais do País –
como o Estadão, para o qual
escreve desde 198 9. Uma amos-
tra dessa fabulosa produção po-
derá ser saboreada em Verissi-
mo Antológico – Meio Século de
Crônicas, ou Coisa Parecida, que
a editora Objetiva lança inicial-
mente apenas em e-book – ain-
da não há previsão do lança-
mento da versão impressa.
Trata-se de uma seleção
com mais de 300 crônicas, jus-
tamente aquelas que não pere-
ceram com o tempo. “A boa
crônica mantém a atualidade
não só porque desvela o passa-
do, mas porque é boa literatu-
ra; e não raro, em alguns casos,
volta a ser atual, mostrando
que a história é também cíclica
- são as ironias do tempo, diria
Verissimo”, observa a editora
Daniela Duarte, no prefácio.
Verissimo só começou a es-
crever aos 32 anos, depois de
ter passado por várias escolas
de arte e desenho, inacabadas;
de ter tentado o comércio “só
para reforçar o mau jeito da fa-
mília”; e de ter passado por
uma rápida carreira jornalísti-
ca, de revisor e colunista de
jazz a cronista.
Assuntos nunca faltaram,
mas, ao longo do tempo, al-
guns temas foram mais recor-
rentes, como observa Daniela:
recriações históricas, notada-
mente as da criação bíblica e as
de grandes personagens da his-
tória mundial, relacionamen-
tos amorosos, tramas policiais
ou sátiras ao gênero, os flagran-
tes do dia a dia, a mística do fu-
tebol, o prazer da comida, a lin-
guagem e as palavras, o posicio-
namento político e ideológico
engajado, as reflexões sobre a
condição humana e as hilárias
previsões para o futuro. Sobre
a antologia, Verissimo respon-
deu a essas questões.
lO livro faz uma retrospectiva
de 50 anos de sua produção de
crônicas. Assim, é possível dizer
que o Brasil sempre foi um prato
cheio para um cronista ou houve
um tempo específico em que o
desafio foi maior?
Eu ainda peguei o fim da censu-
ra, quando certos assuntos e
até certos nomes eram proibi-
dos de ser citados na imprensa,
como o Estadão sabe muito
bem. Precisava ter sempre um
texto de reserva, sobre o sexo
dos anjos, para substituir o
eventualmente censurado, ou
recorrer a metáforas ou mensa-
gens cifradas para driblar o cen-
sor, na esperança de que o leitor
entendesse. Havia quem disses-
se que a obrigação de escrever
na entrelinhas estimulava a cria-
tividade. Mas es-
crever nas entreli-
nhas não era um
desafio, era uma
chateação.
lAssuntos do
cotidiano, como
família, trabalho,
amigos, a rápida
evolução dos cos-
tumes, enfim, são
mais atraentes
para sua escrita
ou falar sobre per-
sonalidades (das
artes, do esporte,
da política) é mais tentador?
A crônica é um gênero literá-
rio indefinido, em que cabe tu-
do, do universo ao nosso umbi-
go, e a gente aproveita essa li-
berdade. Mas escrever alguma
coisa que preste sobre o coti-
diano é difícil. Aquela história
que quem canta o seu quintal
está cantando o mundo não se
sustenta. Mas depende do
quintal, claro.
lDiálogos invejáveis são um dife-
rencial em seus textos. Para is-
so, basta ter um bom ouvido ou
muita leitura? Ou nada disso?
É difícil escrever diálogos em
português. Em inglês, por
exemplo, o corriqueiro não
soa falso. Alguém já disse que
para um diálogo em inglês pa-
recer natural basta acrescentar
um “fucking” a cada frase. Mas
é verdade que, até há pouco
tempo, nos livros do He-
mingway, por exemplo, o pala-
vrão era substituído por (“obs-
cenity”). No ca-
so do diálogo
em português, o
“natural” não
funciona. Já se
disse que, em
português, pro-
nome no lugar
certo é elitismo.
lHá vários anos,
textos falsamente
atribuídos a você
circulam na inter-
net, o que o torna
uma vítima antiga
das hoje chama-
das fake news. No atual contex-
to, há alguma possibilidade de
fake news serem engraçadas?
Há “fake news” engraçadas, vo-
cê estranha que o autor verda-
deiro não queira aparecer, ou
prefira se esconder sob um pseu-
dônimo conhecido. Mas geral-
mente as “fakes” são ruins. Co-
mo não há como evitá-las, o jei-
to é se resignar e aceitá-las, com
o risco de um dia ser processa-
do por calúnia ou difamação.
lÉ difícil fazer humor neste mo-
mento em que se diz que o aque-
cimento global é marxista e a
Terra é plana? A competição fi-
cou mais acirrada?
Pois é. Triplicou o volume de
coisas que as pessoas estão dis-
postas a acreditar, começando
por filósofos astrólogos e mitos
a cavalo. É verdade que as reli-
giões prepararam as pessoas a
acreditar no inacreditável.
l“O comunismo é como o res-
friado”, diz Cerqueira, persona-
gem da crônica A Mancha. “En-
quanto não inventarem uma vaci-
na... Eles podem voltar, mas nós
também ainda estamos aqui!”
Esse rápido diálogo reflete bem
o que vivemos hoje?
Se me lembro bem desse tex-
to, quem o diz é um velho rea-
cionário que não tem dúvida,
conhecendo o país em que vi-
ve, que sua classe prevalecerá,
e qualquer alternativa será na-
timorta.
lNa crônica Vi, você aproveita a
chegada de seus 80 anos para
elencar fatos memoráveis que
viu com os próprios olhos, desde
um homem pisar na Lua pela pri-
meira vez até “o implante de ca-
belo (funcionou com Renan Ca-
lheiros, ué)”. Agora, que ruma
para os 84 anos, o que acrescen-
taria nessa lista?
A volta da Peste Negra, franca-
mente, me pegou de surpresa.
A volta do ioiô também.
lNeste mês de junho, são lem-
brados os 50 anos da conquista
do tricampeonato na Copa do
México. Foi essa a melhor de to-
das as seleções brasileiras da
história? Se não, qual teria sido?
A seleção de 1982 foi a melhor,
na minha opinião. Aquela foi
uma grande geração, mas uma
geração sem apoteose. Faltou
ganhar a Copa.
lNo texto Recapitulando, você
comenta que o Mundial de 1970
ficou como a Copa da ambiguida-
de – afinal, durante a ditadura
militar, era difícil torcer porque
era uma forma de colaboracionis-
mo, mas também fácil porque o
time era de entusiasmar qualquer
um. Como foi esse dualismo?
Fui para a frente da televisão
preparado para torcer contra o
Brasil da ditadura, da tortura,
do Médici, de tudo o que a gen-
te era contra. Uma predisposi-
ção que durou exatamente dez
minutos, até a primeira escapa-
da do Jairzinho pela direita.
lEm um exercício de futurolo-
gia, quando se fizer, daqui a 20
anos, um filme sobre o Brasil
atual, como será?
Daqui a 20 anos, não existirão
mais cinemas nem grandes te-
las de TV. Cada pessoa terá seu
aparelhinho individual, no qual
verá filmes sobre o Brasil de
agora, e não acreditará.
NA
IRÔNICO
Luis FernandoLuis Fernando Verissimo, Verissimo, escritorescritor
Paladar
Dia dos Namorados com café na cama PÁG. H3
‘A VOLTA DA PESTE
NEGRA ME PEGOU DE
SURPRESA. A VOLTA
DO IOIÔ TAMBÉM’
SILVIA GARCIA
EntrevisEntrevistata
LUIS FERNANDO VERISSIMO
Precaução. Cartum especialmente criado por Verissimo
AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO – 14/9/2016
VERISSIMO
ANTOLÓGICO
Autor: L uis
Fernando
Verissimo
Editora:
Objetiva
(728 págs., R$
44,90 e-book)
QUARENTENA
‘A SELEÇÃO DE 1982
FOI A MELHOR, MAS
SEM APOTEOSE.
FALTOU GANHAR’
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