O Estado de São Paulo (2020-06-09)

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H6 Especial TERÇA-FEIRA, 9 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


BENTLEY DÁ


JornaldoCarro


A MOTOR V8


ADEUS


Q


uase todos eles eram então


mais jovens do que hoje sou



  • e, no entanto, seguem sen-


do para mim “os meus velhinhos”.


Um deles, o contista Murilo Ru-


bião, de quem falei aqui como figura


decisiva em minha vida, tinha 50


anos redondos ao nos conhecermos,


e pouco mais que isso quando me le-


vou para trabalhar com ele no Suple-


mento Literário do Minas Gerais. Mor-


reria com a idade que tenho agora – e


ainda assim, carregado de amor e ad-


miração, só consigo vê-lo como aque-


le que para mim foi e seguirá sendo


um dos velhinhos mais queridos.


Murilo só não poderia competir


com um contemporâneo seu de Co-


légio Arnaldo, moleque do basquete


que veio a ser meu pai – o Espalha-


dor de Passarinhos que apenas na


idade adulta, bem entrado nos 40,


pude verdadeiramente compreen-


der e amar, agora sob um céu sem


nuvens, habitado apenas pelas aves


que ele capturava aqui para soltar


ali. Aos 18, em nossa casa, não vi mor-


rer a minha avó, pois só tinha olhos


para o homem caído em súbito e pa-


ra mim inédito desespero, e então


me sufocou uma ternura sem tama-


nho por aquele senhor a segundos


de tornar-se órfão também de mãe,


um velhinho que, só muito mais tar-


de me dei conta, não passava então


dos 43 anos de idade.


A anos-luz da tal sabedoria, em todo


caso hoje sei do bem que faz amalgamar


no coração pessoas de todas as idades,


em vez de confinar-se no cercado cada


vez mais rarefeito de sua geração. Mal-


grado o abismo temporal que me pare-


cia haver entre mim e eles, sempre dei


corda mais que cordial àqueles que fica-


riam sendo os meus velhinhos.


Há fartura deles – e delas também,


benza Deus, mas fiquemos por ora nos


varões. Encastoada em minha infân-


cia, por exemplo, a figura indelével do


doutor Henrique Marques Lisboa,


meu tio-avô Henrique, cientista com


physique du rôle de cientista (posso


ver ainda os suspensórios e óculos re-


dondos de lentes espessas), de quem,


aos 10 anos, em manhãs de sábado, re-


cebi conhecimentos logo malbarata-


dos de física e de química, repassados,


quem sabe, do grande Oswaldo Cruz,


do qual o tio foi discípulo.


Nas sesmarias de família – onde meu


avô materno, José Santos de Azeredo


Coutinho, haverá de rechear toda uma


conversa à parte –, o coração e a mente


retiveram, como destaque especial, a


figura dissonante e também por isto


fascinante do tio Jorge, um dos irmãos


mais velhos de meu pai. Dissonante, a


meus olhos, por morar no Rio de Janei-


ro, na contramão dos pais, que de lá


partiram, em 1906, rumo à jovem capi-


tal mineira; por ter-se desquitado (esta-


va-se a décadas do divórcio) e se casa-


do novamente, movimentos então difi-


cilmente toleráveis na trevosa paisa-


gem da moral católico-mineira daque-


les tempos. Como se não bastasse, o tio


Jorge não acreditava em Deus. Lem-


bro-me de sua ironia ao ver meus pais


se persignarem antes da refeição: até


conhecia o pelo-sinal, brincava, só não


sabia espalhar na cara...


Tio Jorge era o genealogista da famí-


lia, bastão que passaria ao filho Ruy, e


também isso nos aproximou. Paciente-


mente, dava resposta às minhas cartas


sobre o assunto. Fui conhecê-lo melhor


numa inesquecível tarde em São Paulo,


aí por 1971, quando ele, de passagem pe-


la cidade, me convidou para almoçar no


Zillertal, restaurante alemão que havia


na Brigadeiro Luís Antônio. De sua pro-


sa, divertidíssima, guardei recordações


em quantidade desproporcional às pou-


cas horas que passamos juntos. Uma de-


las, a hilariante descrição de uma lista,


atribuída à vovó Dora, com mais de cem


amantes que ele teria tido na vigência


do primeiro casamento. “Cem aman-


tes, meu filho!”, exclamou o tio Jorge,


arregalando comicamente os olhos por


detrás das lentes de fundo de garrafa.


“Fiquei orgulhosíssimo!”






Presença fugaz, porém inapagável,


foi o meu primeiro escritor em carne e


osso, o poeta Abgar Renault, apresenta-


do ao moleque de 8, 9 anos pela tia Na-


thalia, sua ex-aluna. Não tinha como re-


conhecer nele uma das figuras centrais


da patota juvenil de Carlos Drummond


e Pedro Nava – dos quais, de resto, àque-


la altura também nunca tinha ouvido


falar. Guardo na memória fragmentos


da poesia finíssima de Abgar Renault,


mas daquele fortuito encontro de rua o


que de mais forte me ficou, além da com-


provação embasbacada de que por de-


trás dos livros havia autores, foi a lem-


brança do chapelão negro, já então anti-


quado, tanto quanto a velhíssima orto-


grafia, perdão, ortographia, à qual Ab-


gar permaneceu fiel até a morte, aos 94.


Praticamente a idade com que se foi


também o grande, imenso Edson Nery


da Fonseca, amizade tardia porém mui-


to em tempo, que tanto bem me fez à


mente e ao coração.


Na redação do Suplemento, à sombra


de Murilo Rubião, pude conhecer


Eduardo Frieiro, homenzinho só fisica-


mente diminuto, erudito que aprendeu


tudo ao largo dos bancos escolares, cra-


que também das artes gráficas, para


quem minha geração e algumas das an-


teriores olhavam com má vontade,


pois, escriba passadista, tinha baixado


o porrete n’A Revista, a publicação com


a qual Drummond & companhia irrom-


peram na cena literária, em 1925. Ho-


mem que escrevia também com o fíga-


do, Frieiro falou mal – com boas razões,


diga-se – até dos aspectos físicos da re-


vista. Minha antipatia por ele só se di-


luiu, convertida em admiração e res-


peito, quando soube que, sem pre-


juízo de sua aversão ao Modernis-


mo, Frieiro cuidou da impecável


edição de Alguma Poesia, o livro de


estreia de Drummond, em 1930. O


que levou outro passadista, o per-


nambucano Medeiros e Albuquer-


que, a afirmar que a obra nada tinha


de poesia – tinha, no máximo, “algu-


ma tipografia”. Eduardo Frieiro me


conquistaria em definitivo quando


li Feijão, Angu e Couve, suculento tra-


tado sobre a cozinha mineira, e, por


insistência de Otto Lara Resende, A


Ilusão Literária.


Menos episodicamente que Friei-


ro (cujo sobrenome me parecia ajus-


tar-se à perfeição a sua indumentá-


ria, à qual mesmo no verão nunca fal-


tava agasalho de lã e paletó), no Suple-


mento tive a ventura de conviver far-


ta e demoradamente com o poeta


Emílio Moura, que por lá passava al-


gumas vezes por semana, pitando


um cigarrinho de palha. Aos 60 e tan-


tos, deu-se bem conosco como 20


anos antes se dera com a turma de


Fernando Sabino, Paulo Mendes


Campos, Otto Lara Resende e Hélio


Pellegrino. Sábio jamais professo-


ral, ao doce Emílio devo incontáveis


lições de vida e de literatura, e tam-


bém uma reiterada incitação para


que batesse asas de uma cidade que


era então, para dizer o mínimo, um


ambiente abafado – um “carrascal”,


sussurrava o poeta. Se finalmente


me mandei, fez agora meio século, é


algo que Belo Horizonte ficou de-


vendo em parte a Emílio Moura...


Humberto Werneck


Artesanal. Cada ‘Série L’ era feito à mão e levava cerca de 15 horas para ser montado


ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

l]


Os meus velhinhos


A Bentley deu adeus a um de


seus maiores ícones. A fabrican-


te britânica acaba de aposentar


o motor V8 lançado em 1959, e


que, ao longo de mais de 60


anos, equipou vários modelos


da marca. O “vê-oitão” mante-


ve a mesma configuração e ta-


manho durante todo esse tem-


po, embora tenha recebido uma


série de melhorias, que incluí-


ram a ampliação de sua capaci-


dade volumétrica.


O último motor da série foi


montado à mão na fábrica da


empresa em Crewe, na Inglater-


ra, na segunda-feira da semana


passada. E equipará o último ca-


ro produzido de uma série para


lá de especial – o Mulsanne 6.75


Edition by Mulliner.


A edição limitada a apenas 30


exemplares do sedã de alto luxo


foi criada exatamente para mar-


car o fim do V8. O motorzão,


que conta com dois turbos, gera


530 cv de potência e 112,1 mkgf


de torque máximo.


Nesses 61 anos foram produ-


zidas 36 mil unidades do propul-


sor. Destinado a equipar os mo-


delos mais sofisticados da Ben-


tley, o motor chamado de Série


L sempre foi montado à mão.


Por meio dessa técnica, man-


tida durante as seis décadas de


produção, cada motor levava


cerca de 15 horas para ficar pron-


to. Assim como propulsores de


outras marcas também monta-


dos à mão, como os dos Merce-


des-AMG, por exemplo, cada


Bentley Série L recebia uma pla-


queta com o nome dos enge-


nheiros que o montaram.


História. O desenvolvimento


da primeira geração do Bentley


Série L é do início de 1950. O


projetista sênior de motores da


empresa à época, Jack Phillips,


recebeu o pedido para criar um


propulsor para substituir a anti-


ga versão de seis cilindros. A no-


va unidade de força precisaria


ter praticamente o mesmo ta-


manho e peso do anterior e en-


tregar 50% mais potência.


O resultado foi o motor 6.2 de


oito cilindros em “V” lançado


em 1959 no belo sedã Bentley


S2. O V8 foi redesenhado em


1965 para equipar o Série T e em


1971 teve a capacidade volumé-


trica elevada para 6,75 litros,


mantida até o encerramento da


produção dessa série. A cilindra-


da é grafada no motor na unida-


de inglesa: 6 3/4 litros.


Várias outras atualizações fo-


ram feitas para adequar o mo-


tor às leis cada vez mais severas


de controle de emissões de po-


luentes na Europa. E também


para adequá-lo às regras volta-


das à segurança em caso de coli-


são – quando o sedã Mulsanne


foi lançado, em 1980.


Outras melhorias vieram


quando a segunda geração do


modelo apareceu, em 2010.


Além do motor, a Bentley tam-


bém está dando adeus ao Mul-


sanne. Com o encerramento da


produção do modelo, o Flying


Spur passa a ser o sedã “de ima-


gem” da companhia britânica.


Downsizing. A redução do “ta-


manho” dos motores é resulta-


do das normas mais rígidas de


controle de emissões de poluen-


tes no mundo todo. Esse movi-


mento vem afetando principal-


mente a Europa.


Em breve, alguns países do


continente começarão a banir a


venda de veículos com propul-


sores apenas a combustão. O


processo de extinção, que teve


início pelos V12, já passou pelos


V10 e chegou aos V8.


A alemã Mercedes-AMG, por


exemplo, já começou a substi-


tuir os V8 por V6 em alguns de


seus modelos. O próximo C63


AMG, por exemplo, deverá ter


motor 2.0 turbo em vez do V8.


A terceira geração do model o


será lançada em 2022. Além do


propulsor de quatro cilindros, o


modelo deverá tem sistema


híbrido leve de 48 Volts


A também alemã Audi vem


adotando a mesma estratégia. A


quarta geração da RS4 Avant,


por exemplo, que desembarcou


recentemente no mercado bra-


sileiro, traz um novo V6 biturbo


de 2,9 litros e 450 cv.


Na terceira geração, a perua


tinha motor 4.2 V8. Embora fos-


se maior, o oito-cilindros tam-


bém gerava 450 cv de potência.


Não abro mão de meus


velhinhos – quase todos mais


jovens do que hoje sou


FOTOS: BENTLEY/DIVULGAÇÃO

Sexagenário. Lançado no S2 (carro prata) em 1959, motor V8 equipou o último Mulsanne, que também teve a produção encerrada na semana passada


Britânico. Motor inglês é identificado como um 6 litros e 3/4


Após 61 anos e várias atualizações, sai de cena o ‘vê-oitão’


da marca inglesa que equipou do S2, de 1959, ao Mulsanne

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