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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 9 DE JUNHO DE 2020 Política A
ELIANE
CANTANHÊDE
À
deriva, o governo faz água
por todo lado. O presidente
Jair Bolsonaro continua fora
de órbita, em outro planeta, Moro
caiu, Mandetta foi demitido, Nel-
son Teich desistiu, Paulo Guedes su-
miu, o Ministério da Saúde acabou e
o da Economia submergiu, enquan-
to outras pastas pintam e bordam,
sem rumo, sob aplausos do presi-
dente. Ou o rumo é romper com a
China, estorricar a Amazônia, pren-
der ministros do Supremo e gover-
nadores? Uma situação melancóli-
ca, ou desesperadora.
Nem a exposição da reunião de 22
de abril, uma síntese do governo, que
gerou ou alimentou investigações no Su-
premo, conteve Bolsonaro. Conforme o
Estadão, foi ele quem deu, pessoalmen-
te, a ordem para o Ministério da Saúde
divulgar “menos de mil mortes por dia”
e “acabar com matéria do Jornal Nacio-
nal”. Pois entrou plantão extraordiná-
rio na novela, o Congresso está criando
uma central própria e Estadão, G1, O
Globo, UOL, Folha e Extra fecharam par-
ceria para prestar as informações que o
governo sonega ou manipula.
O dr. Jair, epidemiologista, assumiu
desde o início uma cruzada particular
contra o isolamento social adotado no
mundo todo. O dr. Jair, cientista, deter-
minou o uso indiscriminado da cloroqui-
na sem qualquer aval internacional ou na-
cional. Agora, o deus Jair decide quantos
são os mortos do coronavírus. Danem-se
os fatos e as mortes. O que importa é a
versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.
É triste, e preocupante, o desmanche
do Ministério da Saúde – um antro de
esquerdistas, segundo Damares. E é
igualmente triste, e preocupante, que
generais e coronéis se disponham a as-
sumir o jogo sujo, sem nunca terem vis-
to uma curva epidemiológica, mas
prontos para a “missão”: bater conti-
nência e cumprir as ordens do presiden-
te que nenhum médico decente cum-
priria. “Às favas os escrúpulos de cons-
ciência” – e a condenação da história.
Por que a prioridade para a “mudança
de metodologia” na contagem de víti-
mas a esta altura? A quem enganam?
Com os mortos passando de 37 mil,
as empresas e os empregos derretendo
e a previsão de queda de 8% do PIB, o
presidente declara, sem o menor pu-
dor, que “o grande problema” do mo-
mento são as manifestações de domin-
go pró-democracia, contra o racismo e
o próprio Bolsonaro. “Estão botando
as manguinhas de fora”, acusou.
Definitivamente, o grande proble-
ma do Brasil não são as novas manifes-
tações, é a gritante falta de governo,
que choca o País e o mundo. Como ex-
plicar que o presidente brasileiro não
apenas guerreia com a realidade como
passa a assassinar as estatísticas da
pandemia? Fraudar ou dourar o núme-
ro de mortos e contaminados não é pró-
prio de democracias.
Estamos em más companhias – Vene-
zuela, Coreia do Norte e Arábia Saudi-
ta – e até por isso, apesar das dúvidas e
das críticas legítimas que cercam a rea-
lização de manifestações neste mo-
mento, a resistência das institui-
ções, das entidades, da mídia e das
ruas vai encorpando e encorajando
as pessoas a gritarem “basta!”.
Quem “botou as manguinhas de
fora” primeiro? Não foram os que
foram às ruas só no último domin-
go, mas, sim, os bolsonaristas que
afrontaram as recomendações da
OMS e de quase todos os países para
fazer aglomerações em atos contrá-
rios ao STF e ao Congresso, usando
até o QG do Exército como fundo. E
o que dizer dos 30 alucinados que se
dizem 300 e se plantam armados na
Praça dos Três Poderes?
Os vários manifestos, os atos pró-
democracia e a união nacional propos-
ta por Fernando Henrique, Marina Sil-
va e Ciro Gomes não são ataque, são
movimentos de defesa. Exatamente
para “cortar as asinhas” do “gabinete
do ódio” do Planalto e dos golpistas
estimulados pelo presidente da Repú-
blica e pelas redes sociais, com o bene-
plácito das Forças Armadas.
E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @ECANTANHEDE
ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E
SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS
L
ogo de saída, no artigo 1.º da
Constituição Federal, o Bra-
sil é definido como “Estado
Democrático de Direito”. Esta dic-
ção tem especial significado. É que
na ciência política Estado Demo-
crático e Estado de Direito se equi-
valem. Aliás, quando se abandonou
o Estado Absolutista, surgiu o Esta-
do de Direito. Por que faço esta afir-
mação? Precisamente para revelar
a ênfase na democracia.
Saímos, em 5 de outubro de 1988,
data da nova Constituição, de um
sistema centralizador e autoritá-
rio. Quisemos, e demos, relevo à de-
mocracia, que, com licença para a ob-
viedade, significa “governo do povo”.
Daí termos usado a expressão que
abre a Constituição Federal logo no
seu primeiro artigo. Impõe-se verifi-
car quais são os desdobramentos des-
se dispositivo para verificar se efeti-
vamente vive-se na democracia.
De logo se registra que o inciso V do
mesmo artigo 1.º sustenta que um dos
fundamentos do Estado é “o pluralis-
mo político”. Portanto, a pluralidade
de opiniões é marca do nosso sistema,
já que política (do grego polis) é a arte
de governar. Plural, como é, enseja o
debate de opiniões. De ideias e posi-
ções programáticas. E, naturalmente,
de manifestações.
De onde vem o direito à manifesta-
ção? Do artigo 5.º, inciso XVI, que pre-
ceitua “todos podem reunir-se pacifica-
mente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autori-
zação, desde que não frustrem outra
reunião anteriormente convocada para
o mesmo local, sendo apenas exigido
prévio aviso à autoridade competente”.
O que ressai desse preceito é que ma-
nifestações podem dar-se “nas ruas” já
que alude a “locais abertos”. Apenas é
preciso manter a ordem. Daí a necessi-
dade de prévio aviso e com pessoas de-
sarmadas. E desde que não impeçam
outra reunião no mesmo local que fora
anteriormente comunicada à autorida-
de. Especialmente por tratar-se de mo-
vimento “pacífico”, a lei e a prudência
administrativas recomendam que não
se deve e não se pode autorizar a reu-
nião de grupos divergentes no mesmo
espaço. Aliás, quando os governos de-
terminam e autorizam as reuniões em
locais diversos não estão fazendo mais
do que cumprir a Constituição.
Assim, ao lado da liberdade de ma-
nifestação do pensamento (artigo
5.º, inciso IV), da liberdade de cons-
ciência e de crença, a liberdade dos
cultos religiosos (art. 5º, VI), a livre
expressão da atividade intelectual, ar-
tística, científica e de comunicação
(art. 5.º, VIII), a estas somada a liber-
dade de manifestação nas ruas, reve-
la-se concretamente a democracia.
A essa altura podemos indagar: po-
dem ser apontados como terroristas os
que se manifestam na rua? Vejamos o
que é “terrorismo” no texto constitu-
cional. De logo, é crime inafiançável,
dentre outros, o terrorismo. Está ao la-
do dos crimes: prática de tortura, tráfi-
co ilícito de entorpecentes e drogas
afins, assim como os crimes hediondos.
Por que são crimes? Porque agridem o
sistema normativo e, por isso, são ape-
náveis. Adicione-se a essa concepção o
artigo 4.º, inciso VIII, da Constituição
que repudia “o terrorismo e o racismo”.
Qual pode ser o crime de manifesta-
ção pública autorizada no Texto Mag-
no que cumpriu os requisitos que o pró-
prio texto exige? Nenhum. A manifesta-
ção contra o governo ou a seu favor de-
riva do “pluralismo político” a que an-
tes aludimos. É exercício democrático.
Pode, sim, ser sancionado se houver
desordem deliberadamente praticada,
conflitos que gerem ferimentos. Mas aí
são outras hipóteses delitivas, puní-
veis por outras razões legais. Ou seja,
não é a manifestação em si que é crime,
nem pode ser classificada como terro-
rista. O que pode haver é apuração de
eventual penalidade sobre “a ação de
grupos armados, civis ou militares, con-
tra a ordem constitucional e o Estado
Democrático” nos dizeres do artigo 5.º,
inciso XLIV. Daí porque inadequados
juridicamente os movimentos que pre-
gam o fechamento do Congresso Na-
cional e do Supremo Tribunal Federal.
Convém anotar, ainda, que o terro-
rismo pressupõe clandestinidade, mo-
vimento subterrâneo, às escondidas.
Nada que diga respeito a manifesta-
ções públicas, a céu aberto.
A tranquilidade do País depende do
cumprimento rigoroso da Constitui-
ção. E esta prega a paz e harmonia en-
tre as pessoas e as instituições.
]
EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Julia Lindner / BRASÍLIA
Um dia depois de protestos
serem registrados em 11 capi-
tais do País e no Distrito Fede-
ral, o presidente Jair Bolsona-
ro disse ontem que as mani-
festações contrárias ao gover-
no são “o grande problema
do momento”, na sua visão.
“Estão começando a colocar
as mangas de fora”, disse o
presidente a apoiadores, no
Palácio da Alvorada.
Pressionado pela crise causa-
da pela pandemia do novo coro-
navírus, cuja escalada crescen-
te de mortes já vitimou mais de
37 mil brasileiros, Bolsonaro dis-
se que existe “muito interesse”
no País. Por isso, na visão do pre-
sidente, há uma “doutrinação
em cima do Brasil, uma massifi-
cação, cada vez mais formando
militantes”.
Bolsonaro não disse a quem
se referia, mas voltou a criticar
o Supremo Tribunal Federal
(STF) e afirmou que sua inten-
ção é “arrumar as coisas deva-
gar”, a começar pela primeira in-
dicação que fará para uma vaga
na Corte. “Vou indicar o primei-
ro ministro do STF agora em no-
vembro. O primeiro. A gente vai
arrumando as coisas devagar
aqui”, disse, em referência ao
mês em que o decano da Corte,
Celso de Mello, vai se aposen-
tar. No ano seguinte, outra vaga
se abrirá com a aposentadoria
de Marco Aurélio Mello.
A atuação de ministros da Cor-
te, em especial do decano, tem
sido alvo de ataques do Palácio
do Planalto por impor limites a
medidas tomadas pelo chefe do
Executivo e dar andamento a in-
vestigações que miram Bolsona-
ro e seu entorno. Ontem, Celso
de Mello deu mais 30 dias para o
inquérito que apura se houve in-
terferência do presidente na Po-
lícia Federal ser concluído
(mais informações na pág. A6).
“Como eu peguei esse país?
Vocês têm razão no que plei-
teiam e no que falam. Eu peguei
um câncer em tudo o que é lu-
gar. Um médico não pode de
uma hora para outra resolver es-
se problema todo. O grande pro-
blema do momento é isso que
vocês estão vendo aí um pouco
na rua ontem (anteontem), es-
tão começando a colocar as
mangas de fora”, disse o presi-
dente a apoiadores que o aguar-
davam na saída da residência
oficial, pela manhã.
Responsabilidade. Na ocasião,
o presidente repetiu a narrativa
de que a responsabilidade sobre
medidas de enfrentamento ao
coronavírus é de governadores
e prefeitos por determinação do
Supremo. “O STF deu todo o po-
der para gerirem esse tipo de
problema, eu apenas injetei bi-
lhões nas mãos deles. E alguns
ainda desviam. Alguns”, disse.
Diferentemente do que diz o
presidente, o Supremo assegu-
rou a Estados e municípios auto-
nomia para tomar medidas que
tenham como objetivo conter a
propagação da doença, mas não
eximiu a União de realizar
ações e de buscar acordos com
os gestores locais.
Tinta. Pouco depois de Bolso-
naro falar com apoiadores, um
manifestante jogou uma lata de
tinta vermelha em direção ao
Palácio do Planalto, sujando
parte da rampa que dá acesso à
sede do governo federal. Fun-
cionários foram acionados para
retirar a tinta vermelha.
O Gabinete de Segurança Ins-
titucional (GSI) afirmou, em
nota, que o responsável por jo-
gar a tinta foi identificado e “en-
tregue às autoridade policiais
para as medidas cabíveis”. O
GSI disse que o prédio do Palá-
cio do Planalto é um bem públi-
co, tombado pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional (Iphan), e foi víti-
ma de um ato de “vandalismo”.
No início da tarde, Bolsonaro
foi com auxiliares até o topo da
rampa do palácio. Ele observou o
local, sem falar com a imprensa.
‘Grande problema’ não são atos
pró-democracia, mas falta de
governo, de estatísticas, de pudor
A manifestação contra o
governo ou a seu favor
deriva do ‘pluralismo
político’. É exercício
democrático
l]
MICHEL
TEMER
lMovimentos de oposição ao
presidente Jair Bolsonaro que
foram às ruas anteontem confir-
maram novos atos para o próxi-
mo fim de semana. Lideranças
disseram que, apesar da pande-
mia, vão continuar com os protes-
tos públicos, com os devidos cui-
dados. “Estamos incentivando a
ida de quem está fora do grupo
de risco da covid-19. Nosso obje-
tivo é que essas manifestações
tenham uma crescente, mas, no
momento, o importante é passar
a mensagem de que as ruas não
são daqueles que defendem o
regime militar”, disse o coordena-
dor nacional da Central de Movi-
mentos Populares, o advogado
Raimundo Bonfim. Anteontem, a
maior parte dos manifestantes
usava máscaras, mas a distância
de 1,5 metro entre cada um não
foi respeitada.
O líder do movimento Somos
Democracia, Danilo Pássaro, afir-
mou que o ato mostrou que a
maioria não apoia o governo. Se-
gundo Pássaro, representantes
de outras torcidas organizadas –
o Somos Democracia foi fundado
por membros da Gaviões da Fiel
- o procuraram para se unir ao
grupo. / RENATO VASCONCELOS
DIDA SAMPAIO/ESTADÃO
Bolsonaro:
‘Protestos
são o grande
problema’
Corregedoria
identifica 6 PMs
por agressões
Cortando as asinhas
Democracia e manifestações de rua
Artigo
Grupos anunciam
novos atos contra o
governo federal
Após atos contra governo, presidente diz
que ‘há doutrinação’ formando militantes
Patrimônio. Rampa do Palácio do Planalto foi alvo de ataque após manifestante jogar tinta
Tulio Kruse
Após vídeos mostrarem agres-
sões contra manifestantes, a
Corregedoria da Polícia Militar
de São Paulo identificou seis po-
liciais que atuaram na disper-
são de um grupo que protestava
contra o presidente Jair Bolso-
naro no domingo. Eles serão al-
vo de procedimento interno e
devem ser “reorientados e re-
treinados”, de acordo com a Se-
cretaria de Segurança Pública.
Gravações que circulam nas
redes sociais mostram PMs dan-
do pontapés e golpes de cassete-
te em manifestantes que cor-
riam na Avenida Teodoro Sam-
paio, em Pinheiros, zona oeste
de São Paulo. Um dos vídeos
mostra um policial chutando
um homem no chão, enquanto
outro PM golpeia a mesma pes-
soa com cassetete. No outro la-
do da rua, um terceiro PM chuta
uma pessoa para que ela caia na
calçada, e fique ao lado de um
grupo já imobilizado, enquanto
são revistados.
Após analisar as imagens, a
Ouvidoria das polícias disse
que os vídeos “apontam atos de
policiais que não correspon-
dem aos protocolos de aborda-
gem estabelecidos pela corpora-
ção”. O órgão também instau-
rou um procedimento interno.
O governador João Doria
(PSDB) disse ontem que a PM
agiu de forma “correta” na dis-
persão do ato, mas que as ima-
gens serão analisadas pela Cor-
regedoria. “Se houve erro, que
os que erraram sejam punidos.
São Paulo não tem compromis-
so com o erro e não endossa ne-
nhuma atitude de violência da
sua polícia”, disse o tucano.
Anteontem, o Estadão mos-
trou que Doria tem se esforçado
para manter a neutralidade da
PM, combatendo o bolsonaris-
mo na instituição. Um policial
que publicou mensagem dizen-
do que iria “cacetar a lomba” de
manifestantes foi afastado.