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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 9 DE JUNHO DE 2020 Metrópole A
Diante das incertezas quanto à
divulgação oficial de dados so-
bre a covid-19 pelo Ministério
da Saúde, diversas iniciativas al-
ternativas de divulgação e visua-
lização de dados surgiram nos
últimos dias para trazer à tona o
retrato da epidemia do novo co-
ronavírus no Brasil.
O Conselho Nacional de Se-
cretários de Saúde (Conass) lan-
çou o Painel Conass Covid-19,
que atualiza diariamente, às
18h30, os dados nacionais da
doença com base nas informa-
ções das secretarias estaduais.
Paralelamente, o ex-secretá-
rio executivo do Ministério da
Saúde, João Gabbardo, que ti-
nha composto a pasta ao lado
de Luiz Henrique Mandetta,
lançou no domingo a platafor-
ma Dados Transparentes, com
a promessa de fazer uma atuali-
zação de hora em hora do avan-
ço do coronavírus, também a
partir das bases estaduais.
Na apresentação do painel, o
presidente do Conass, Alberto
Beltrame, afirma que “a ciência,
a verdade e a informação preci-
sa e oportuna são fios conduto-
res do processo orientador da
tomada de decisão na gestão da
saúde”. No sábado, quando o
empresário Carlos Wizard, que
ia assumir a Secretaria de Ciên-
cia, Tecnologia e Insumos Estra-
tégicos do ministério, indicou
que o governo poderia recontar
os mortos, afirmando que os da-
dos são “fantasiosos ou manipu-
lados”, o Conass disse que “a
tentativa autoritária, insensí-
vel, desumana e antiética de dar
invisibilidade aos mortos pela
covid-19 não prosperará”.
A iniciativa pioneira na divul-
gação paralela de dados é do Bra-
sil.io, criada em 2018 para facili-
tar o acesso a dados oficiais.
Desde março a plataforma com-
pila as informações estaduais
de covid e ganhou destaque na
última semana. “Com a mudan-
ça recente do Ministério da Saú-
de, ficou claro que o objetivo é
não publicar algumas coisas.
Na minha visão, o que está por
trás disso é desinformação, é fa-
zer a pessoa entender que as
mortes estão diminuindo”, afir-
ma Álvaro Justen, fundador do
Brasil.io. / GIOVANA GIRARDI
Daniel Weterman
Camila Turtelli / BRASÍLIA
Guilherme Bianchini
A Organização Mundial da
Saúde (OMS) pediu ontem
“transparência” da gestão
Jair Bolsonaro na divulgação
de dados sobre a covid-19,
após o governo atrasar a libe-
ração de balanços de casos.
No Congresso, o presidente
da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-RJ), pretende colocar
em votação ainda esta sema-
na projeto que obriga o gover-
no a ser transparente na divul-
gação dos dados. Senadores
também vão acionar o Supre-
mo Tribunal Federal (STF).
Ontem, a OMS disse esperar
rápida solução para a “confu-
são” sobre a liberação de dados
no País, e ressalta que a clareza
no processo é “ainda mais im-
portante” para os cidadãos. Es-
te foi o primeiro pronunciamen-
to do órgão sobre a recente alte-
ração no boletim diário do Mi-
nistério da Saúde, que passou a
ocultar números acumulados
de casos e de mortes em decor-
rência do coronavírus.
“É muito importante que
mensagens sobre transparên-
cia sejam consistentes, para
que possamos confiar nos nos-
sos parceiros. É mais importan-
te ainda para os cidadãos, que
precisam entender como lidar
com o vírus. Queremos que
qualquer confusão possa ser re-
solvida agora, e que governo e
Estados possam continuar for-
necendo dados de forma consis-
tente para seus cidadãos”, disse
Michael Ryan, diretor do pro-
grama de emergências da OMS.
Segundo Ryan, a OMS enten-
de que o Brasil continuará divul-
gando números diários de ma-
neira “desagregada”. O diretor,
porém, garantiu que a entidade
está satisfeita com a forma
atual como recebe dados, por
parte do País e da Organização
Pan-Americana de Saúde (O-
pas). “Alguns desses dados rece-
bidos diariamente estão entre
os mais detalhados e atualiza-
dos do mundo. Esperamos que
isso continue.”
A confusão na divulgação dos
dados do Ministério da Saúde
começou na última quarta-fei-
ra, quando os números diários
da doença só foram publicados
às 22 horas. A plataforma do mi-
nistério, que continha números
e gráficos detalhados sobre a co-
vid-19 no País, chegou a ficar fo-
ra do ar por um dia, entre quinta
e sexta-feira. Na ocasião, a pas-
ta sugeriu uma recontagem no
número de óbitos. O site voltou
ao ar na sexta, mas apenas com
dados de casos, mortes e recu-
perados nas últimas 24 horas.
Projetos. O Congresso reagiu
à mudança na forma de divulga-
ção das informações. Projetos
na Câmara preveem que o go-
verno divulgue informações
com detalhes sobre casos, capa-
cidade do sistema de saúde e
uso de recursos públicos em
um portal único na internet.
Em uma publicação na inter-
net ontem, Maia criticou o go-
verno pela falta de transparên-
cia. “Brincar com a morte é per-
verso. Ao alterar os números, o
Ministério da Saúde tapa o sol
com a peneira”, escreveu.
Há pelo menos dois projetos
que tramitam na Câmara sobre
transparência que devem ser vo-
tados juntos. Um é o da deputa-
da Carmem Zanotto (Cidada-
nia-SC). Pela proposta, a não
obediência à divulgação de da-
dos transparentes poderá impli-
car responsabilização civil, ad-
ministrativa e criminal, além de
outras providências previstas
no Código Penal. Já o texto apre-
sentado pelos deputados Feli-
pe Rigoni (PSB-ES), Tabata
Amaral (PDT-SP) e Camilo Ca-
piberibe (PSB-AP), obriga o go-
verno a divulgar informações
detalhadas sobre casos suspei-
tos e confirmados e testes. O de-
putado Pedro Paulo (DEM-RJ)
entrou com notícia-crime no
STF contra o ministro interino
da Saúde, o general Eduardo Pa-
zuello, por prevaricação e im-
probidade administrativa.
No Senado, o Cidadania anun-
ciou que vai apresentar pedido
de instalação de uma comissão
parlamentar de inquérito (CPI)
para investigar a atuação do Mi-
nistério da Saúde. Já o senador
Randolfe Rodrigues (Rede-AP)
e outros parlamentares ingres-
saram com Ação de Descumpri-
mento de Preceito Fundamen-
tal (ADPF) no STF, com medi-
da de liminar, para que o gover-
no divulgue a compilação de da-
dos estaduais, sem manipula-
ção, e também para que o balan-
ço diário seja feito até as 19h30.
A Ordem dos Advogados do Bra-
sil (OAB) também promete re-
correr ao Supremo.
Personalidades do mundo políti-
co e jurídico, juntamente com
entidades representativas de
profissionais e veículos de im-
prensa, elogiaram a formação
de um consórcio de veículos de
mídia dedicado à coleta e à divul-
gação de dados sobre covid-19.
Em resposta aos entraves impos-
tos pelo governo federal, Esta-
dão, Folha de S.Paulo, O Globo,
Extra, G1 e UOL decidiram tra-
balhar de forma colaborativa pa-
ra buscar as informações direta-
mente nos 26 Estados e no Dis-
trito Federal.
O presidente da Câmara, Ro-
drigo Maia (DEM-RJ), disse
que a iniciativa é “excelente”.
“Mostra a importância da liber-
dade de imprensa para que nós
tenhamos transparência não
apenas na divulgação de dados,
mas em todas as ações dos agen-
tes públicos”, afirmou.
No início da tarde, Maia disse
esperar que o Ministério da Saú-
de volte a apresentar os dados
como na forma anterior e no ho-
rário anterior, “para que isso
não seja mais um tema de confli-
to no Brasil”.
O ministro Dias Toffoli, presi-
dente do Supremo Tribunal Fe-
deral, ressaltou que “a transpa-
rência é mandamento constitu-
cional”. Ele acrescentou: “São,
portanto, bem-vindas todas as
medidas que visem a reforçar a
transparência e ampliar as fron-
teiras do acesso à informação. Es-
sa iniciativa é mais uma demons-
tração do trabalho de excelência
realizado pela imprensa em auxi-
liar nas informações necessárias
ao combate da pandemia”.
“É louvável a iniciativa dos jor-
nais. Neste momento de pande-
mia e de incertezas, trazer a infor-
mação correta, consolidada, ver-
dadeira, confiável, é exatamente
o que a população espera, da im-
prensa, e precisa, como nação”,
disse o presidente do Congres-
so, Davi Alcolumbre (DEM-AP).
O ex-ministro da Justiça Ser-
gio Moro disse que “a iniciativa
só reforça a importância da
transparência e a relevância da
imprensa em uma sociedade li-
vre”. “Infelizmente, a confusão
provocada por novas metodolo-
gias e atrasos na divulgação do
número de mortos e de novos
casos confirmados têm gerado
questionamentos quanto à con-
fiabilidade dos dados.”
Para o presidente da Associa-
ção Nacional de Jornais (ANJ),
Marcelo Rech, a parceria inédi-
ta para informar os dados da co-
vid-19 “evidencia a relevância
dos meios de comunicação em
um momento grave como esse
da pandemia no País”.
O presidente da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI),
Paulo Jeronimo, lembrou que,
na década de 1970, a ditadura mi-
litar escondeu, por meio de cen-
sura, a existência de um surto de
meningite. “Por isso, as famílias
não foram alertadas para a epide-
mia, o que ocasionou grande nú-
mero de mortes de crianças.
Agora, diante da multiplicação
de mortos pelo coronavírus,
que faz do Brasil um dos recor-
distas mundiais nesta macabra
lista, o governo Bolsonaro tenta
esconder os números reais. Esta-
mos diante de um crime.”
Para Manoel Galdino, diretor
executivo da Transparência
Brasil, “o governo brasileiro es-
tá omitindo os dados e informa-
ções sobre a doença numa deci-
são de caso pensado”. Segundo
ele, a divulgação dos dados da
covid-19 “não é uma responsabi-
lidade da imprensa, mas sim do
governo federal”.
Marcelo Träsel, presidente
da Associação Brasileira de Jor-
nalismo Investigativo (Abraji),
afirmou que “o presidente da
República vem adotando medi-
das que contrariam a Constitui-
ção Federal, a Lei de Acesso à
Informação e as boas práticas
de transparência pública com o
objetivo de retaliar a cobertura
jornalística sobre os erros de
seu governo no combate à pan-
demia de covid-19”.
Paulo Zocchi, presidente do
Sindicato dos Jornalistas de
São Paulo, condenou a atitude
do governo Bolsonaro de sus-
pender a divulgação diária dos
números. “É um ato de censura
e um verdadeiro crime contra a
população brasileira.”
Ocultar balanço
de mortes pode
configurar crime
lInformações
Governos e sociedade fazem contagem paralela de casos
lCombate
Manobras executadas pelo go-
verno federal para mascarar o
número de mortes causadas pe-
la covid-19 podem configurar
crime de responsabilidade do
presidente Jair Bolsonaro e do
ministro interino da Saúde, ge-
neral Eduardo Pazuello. Para es-
pecialistas, o governo atentou
contra as leis de acesso à infor-
mação, além de ferir um direito
fundamental, o da informação.
“A Lei de Acesso à Informa-
ção diz que é uma conduta ilíci-
ta se negar a fornecer ou retar-
dar deliberadamente e de for-
ma incompleta, incorreta ou im-
precisa. Essas tentativas de mu-
dar a metodologia, que são uma
forma incorreta de fornecer in-
formação, poderia se configu-
rar no artigo 32 desta lei”, diz
Fernanda Campagnucci, direto-
ra executiva da Open Knowled-
ge Brasil.
Além de atrasar a divulgação
dos dados, o portal do governo
federal que traz os números da
pandemia saiu do ar na noite
desta sexta e retornou reformu-
lado e com dados ínfimos, se
comparado à versão anterior.
“Isso são condutas ilícitas de
responsabilidade do agente pú-
blico”, disse Fabiano Angélico,
mestre em administração públi-
ca pela Fundação Getúlio Var-
gas (FGV) e especialista em
transparência. “Pelas declara-
ções do presidente da Repúbli-
ca, ao dizer que não haveria notí-
cia no ‘Jornal Nacional’, parece
ter havido um retardamento de-
liberado e isso configuraria um
crime”, disse Angélico.
O professor da Faculdade de
Direito da Universidade de São
Paulo (USP) Rafael Mafei tam-
bém cita o possível enquadra-
mento no crime de responsabili-
dade pública.
Manoel Galdino, diretor exe-
cutivo da Transparência Brasil,
acredita que o caso possa ser en-
quadrado como improbidade
administrativa. A lei prevê puni-
ção a quem negar publicidade a
atos oficiais ou retardar algum
ato legal. “Porque isso é líquido
e certo”, disse. /C.T.
Covas cobra secretário por ônibus cheio. Pág. A10 }
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
“Queremos que qualquer
confusão possa ser
resolvida agora, e que o
governo e os Estados
possam continuar
fornecendo dados de forma
consistente para cidadãos.”
Michael Ryan
DIRETOR DO PROGRAMA DE
EMERGÊNCIAS DA OMS
DIDA SAMPAIO/ESTADAO
OMS e Congresso
pressionam
governo por dados
Entidade mundial pediu solução de ‘confusão’ com números sobre
a covid-19; Câmara apresenta projetos e senadores vão ao STF
Brasília. Ato
reivindicou
transparência
nos dados
sobre a covid
GOVERNO SP-5/6/
Ex-secretário. Gabbardo lançou plataforma de dados
Várias iniciativas foram
lançadas para trazer à
tona dados da epidemia
diante das incertezas
do governo federal
Em resposta a entraves
do governo, veículos de
comunicação formaram
consórcio para compilar
dados sobre a epidemia
“É mais uma demonstração
do trabalho realizado pela
imprensa em auxiliar nas
informações necessárias ao
combate da pandemia.”
Ministro Dias Toffoli
PRESIDENTE DO STF
Políticos e entidades
elogiam força-tarefa
realizada por jornais