O Estado de São Paulo (2020-06-11)

(Antfer) #1

A10 Política QUINTA-FEIRA, 11 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


WILLIAM


WAACK


O


coronavírus colocou de no-
vo no centro do nosso voca-
bulário uma palavra que a
gente ouve há gerações e não conse-
gue se livrar dela: miséria. O pala-
vreado inócuo de sucessivos gover-
nos petistas alardeando exitosa “in-
clusão social” e “combate à pobre-
za” já havia sido desmentido pelos
números antes mesmo da atual tri-
pla crise política, econômica e de saú-
de pública – e Lula foi beneficiado
por um ciclo de bonança internacio-
nal que não se repetirá por gerações.
No meio da pior crise de nossa me-
mória o atual governo está demoran-
do (assim como demorou para se

adaptar ao jogo político) para entender
que miséria é o fator que condicionará
todos os cálculos políticos e estratégi-
cos. Miséria é o que já jogou para o alto o
caminho de ação no qual Paulo Guedes
insistia ainda naquela semana de mar-
ço na qual as medidas de emergência
foram decretadas. A saber: o de que re-
formas estruturantes (Previdência, tri-
butária, administrativa, de Estado, etc)
produziriam dentro de um horizonte
político conveniente, o de 2022, o “des-
travamento” da economia e consequen-
te combate sustentável da miséria.
Ocorre que ela aumentou antes, e in-
verteu prioridades. A miséria está sen-
do agravada por uma crise que eviden-

ciou de forma ainda mais brutal o grau
de informalidade e vulnerabilidade de
vastas camadas da nossa população, es-
pecialmente nas periferias das grandes
capitais. Nesse contexto de pobreza gri-
tante e crescente pode-se chamar o con-
junto de parlamentares do que se qui-
ser, menos de bobos, e a resposta que
articularam até aqui (a de escancarar os
cofres públicos) é o reconhecimento
político da gravidade de uma situação
social que ainda deve piorar antes de
talvez melhorar, e não se sabe quando.
Em outras palavras, o dilema impos-
to ao governo pela miséria do País é
como equilibrar o altíssimo custo po-
lítico de parecer produzir ajuda insufi-
ciente para milhões de necessitados
versus o altíssimo custo fiscal de man-
ter programas de renda básica. Diante
da claque com que “dialoga” entrando
ou saindo todo dia do Alvorada, Jair
Bolsonaro já resumiu o problema para
o qual ninguém tem solução. “Não te-
nho dinheiro para seguir nisso muito
tempo”, afirmou.
Aproveitou também para repetir

que a “culpa” é de governadores, do
STF, de “terroristas” manifestantes,
da imprensa ou, mais recentemente,
da OMS, que estaria, por motivos po-
líticos, interessada em “quebrar o Bra-
sil” (desalojá-lo do poder, entende-
se). Bolsonaro evidentemente aprecia
os benefícios político-eleitorais trazi-
dos por programas de distribuição de
dinheiro, conforme demonstram as

pesquisas. Porém, reconhece que não
há mais espaço fiscal para criação de
despesas obrigatórias (como presta-
ção de benefícios desse tipo) – a não
ser que se arrisque levar as contas pú-
blicas à insolvência.
Na busca desenfreada por uma res-
posta ao “que fazer” surgem as propos-
tas lacradoras de internet, como a de
reduzir salários nos três Poderes. É
um poderoso símbolo, mas no mundo

dos números ainda insuficiente pa-
ra combater a miséria. Ou a de colo-
car na frente de qualquer outra re-
forma a do sistema tributário, que
ajudasse, pela simplificação, a dimi-
nuir a informalidade – portanto, am-
pliando o alcance de benefícios so-
ciais. Como é fartamente sabido, o
grande obstáculo a qualquer refor-
ma tributária é a ausência de lide-
ranças políticas capazes de refazer
o pacto federativo, fora descascar o
abacaxi de equilibrar o jogo de inte-
resses de múltiplos grupos econô-
micos e corporativistas.
Todos que lidam com história de
campanhas políticas lembram da cé-
lebre frase de marqueteiros america-
nos quando tratavam de convencer
um candidato à presidência (Bill
Clinton) a manter o foco. “It’s the
economy, stupid.” No Brasil a misé-
ria impõe outra prioridade. “It’s the
social, stupid.” É simplesmente não
deixar pessoas morrerem de fome.
E a gente achava que já tinha deixa-
do isso para trás.

ENTREVISTA


Miséria, como sempre


Felipe Frazão
Jussara Soares / BRASÍLIA


O presidente Jair Bolsonaro de-
cidiu recriar o Ministério das


Comunicações, separando-o
da pasta atual de Ciência, Tec-
nologia, Inovações e Comunica-
ções, que desde o início do go-
verno está sob o comando do
ministro Marcos Pontes, mili-
tar da reserva. Para o novo mi-
nistério, o presidente anunciou
a nomeação do deputado Fábio
Faria (PSD-RN), genro do apre-
sentador de TV e empresário Sil-
vio Santos, dono do SBT.
Historicamente vinculada à

Presidência, a Secretaria Espe-
cial de Comunicação Social (Se-
com), foi extinta. As atribui-
ções foram assumidas pelo no-
vo ministério chefiado por Fa-
ria. A Secom é atualmente co-
mandada pelo advogado Fábio
Wajngarten, empresário do se-
tor de checagem de audiência
em TVs. Ele será transferido pa-
ra o ministério, segundo apu-
rou o Estadão. Deixará de ser
subordinado aos ministros

Luiz Eduardo Ramos (Secreta-
ria de Governo) e Walter Braga
Netto (Casa Civil) e passará a
responder a Faria, com quem
tem uma melhor relação.
O Palácio do Planalto vai edi-
tar uma medida provisória
(MP) para alterar a estrutura
ministerial. O presidente anun-
ciou a mudança no Twitter.
“Nesta data, via MP, fica recria-
do o Ministério das Comunica-
ções, a partir do desmembra-

mento do Ministério de Ciên-
cia, Tecnologia, Inovações e Co-
municações. Para a pasta foi no-
meado como titular o deputado
Fábio Faria-RN”, escreveu Bol-
sonaro, no Twitter.
O Estadão apurou que o pre-
sidente decidiu pela recriação
em reunião no Palácio do Planal-
to na noite de ontem. O deputa-
do disse que sua nomeação é da
cota pessoal de Bolsonaro. “Foi
uma indicação 100% pessoal,

nada a ver com o PSD”, disse o
parlamentar e novo ministro.

Interlocutor. A recriação do
ministério, que havia sido passa-
do por fusão no governo do ex-
presidente Michel Temer, é
uma forma de acomodar um no-
me do PSD no primeiro escalão.
Faria é um dos principais inter-
locutores do governo no Con-
gresso Nacional. O partido indi-
cou há algumas semanas que
iria fazer parte do Centrão que
se aliou à base de Bolsonaro na
Câmara, o que também gerou
insatisfação na bancada.

Jussara Soares / BRASÍLIA


A advogada Karina Kufa, que
representa o presidente Jair
Bolsonaro nas ações eleitorais
que pedem a cassação da cha-
pa eleita em 2018, diz que se
houve disparo irregular de
mensagens em massa pelo
WhatsApp durante a campa-
nha, o chefe do Executivo não
pode ser responsabilizado.
“Imagina (o presidente) ter que
controlar o que mais de 57 mi-
lhões de eleitores que votaram
nele fazem”, afirmou ela em
entrevista ao Estadão.


Um dia após o Ministério Pú-
blico Eleitoral se manifestar a
favor do compartilhamento de
provas do inquérito das fake
news, do Supremo Tribunal Fe-
deral, Kufa afirma que a única
preocupação é o uso político
da investigação, que em sua vi-
são, deu “superpoderes” ao re-
lator do caso, ministro Alexan-
dre de Moraes.

lAs ações eleitorais apuram dis-
paro de WhatsApp em massa
supostamente financiados por
empresários alvos da investiga-
ção do STF. É possível garantir
que não houve irregularidade?
Dos empresários investigados,
até onde eu sei são dois. O Ed-
gar Corona, dono da SmartFit
é uma pessoa que o presidente
nunca teve contato. Se houve
algum impulsionamento ou ile-
galidade por parte desse em-

presário não temos como sa-
ber nem como adivinhar por-
que não tem como o presiden-
te ser responsabilizado por fa-
tos praticados por seus eleito-
res. Imagina ele ter que contro-
lar o que mais de 57 milhões
de pessoas que votaram nele
fazem.

lO presidente é próximo do em-
presário Luciano Hang, dono da
Havan.
Durante a eleição eu liguei pra
o Luciano, perguntando se ele
tinha contratado alguma em-
presa de disparo. Disse que se
tivesse feito ainda havia como
corrigir a prestação de contas,
incluindo a doação de forma le-
gal, e apresentaria para a Justi-
ça eleitoral que houve um erro
detectado produzido por um
eleitor. O Luciano afirmou que
não fez e nos deu total condi-

ção de não inserir disparo de
WhatsApp na prestação de
contas.

lÉ possível garantir que tam-
bém não houve a participação
dos filhos do presidente?
Temos total controle do que
foi feito na campanha, inclusi-
ve sobre os filhos. Não há ne-
nhuma preocupação sobre is-
so em qualquer ação.

lHá preocupação sobre o uso
de provas do inquérito das fake
news, do STF, nas ações no TSE
que podem levar à cassação do
presidente?
Tem um total desvio esse in-
quérito e acabou dando super-
poderes para um único minis-
tro (Alexandre de Moraes, rela-
tor do caso), que está na quali-
dade de vítima, de investiga-
dor e de juiz.

lO Supremo Tribunal Federal
começou ontem a julgar a valida-
de do inquérito das fake news.
Qual a sua expectativa?
Não tenho grandes esperanças
de que ele seja julgado ilegal e
inconstitucional apesar de não
ter dúvidas que é, mas tudo is-
so traz uma total insegurança
jurídica para a defesa que não
sabe do que se está tratando.
Se há mesmo uma investiga-
ção para ofensas, ataques e
ameaças de mortes aos minis-
tros, ou se já houve uma alarga-
mento e estão investigando as
eleições de 2018.

lA sra. reconhece o risco de cas-
sação do presidente Bolsonaro?
Se forem seguidos todos os pro-
cedimentos legais e respeitados
os princípios constitucionais, a
legislação e a jurisprudência, a
cassação é impossível. É impos-
sível cassar um presidente da
República baseado supostas ale-
gações, mesmo que haja um
eleitor no meio de 57 milhões
de eleitores que tenha contrata-
do empresas para disparo de
mensagem de WhatsApp.

lO presidente vai ceder a pres-
são de seus apoiadores que que-
rem uma reação mais dura ao
ministro Celso de Mello, após o
decano ter comparado o Brasil à
Alemanha de Hitler?
O presidente tem falado que
não tem a intenção de tensio-
nar as relações com os outros
poderes. Ele decidiu não en-
trar com pedido de suspeição
contra Celso de Mello, mesmo
havendo um descompasso da
postura do ministro. O decano
do STF tem que manter a pos-
tura de não comentar proces-
sos nos quais ele está julgan-
do, não fazer crítica ao presi-

dente da República do aspecto
político.

lMas o presidente tem criticado
decisões do Supremo.
São criticas totalmente demo-
cráticas. Mesmo que tenha
que cumprir as decisões do
STF, que infelizmente é a últi-
ma instância, ele não tem co-
mo aceitar decisões que enten-
de como ilegais.

lE em relação ao Alexandre de
Moraes?
Há recursos em relação às suas
decisões e esperamos que elas
sejam encaminhadas com bre-
vidade e garantir que seja feito
na Constituição para que não
haja interferência nos poderes.
O exagero das decisões do STF
de querer intervir nas compe-
tências exclusivas do Executi-
vo nos preocupa.

lAs tensões com os demais po-
deres podem criar uma ruptura
institucional?
Não vejo nenhuma intenção
do presidente de cometer ne-
nhuma ruptura. O que me preo-
cupa são os exageros do Legis-
lativo e do Judiciário de não
cumprirem seus papéis e tenta-
rem intervir no Executivo.

lDe todas as ações, qual mais
causa preocupação ao presiden-
te Bolsonaro e sua defesa?
Se for respeitado o direito, ne-
nhuma, porque são narrativas
falsas.

É a pobreza de milhões de
pessoas, agravada pela crise do
vírus, que condiciona as agendas

Bolsonaro recria Ministério das Comunicações para abrigar PSD


Presidente extingue a


Secom, que passa a ser


vinculada a nova pasta


chefiada por Fábio Faria.


genro de Silvio Santos


Bolsonaro expulsa


integrante do


MBL do Alvorada


lResponsabilidade

l O presidente Jair Bolsonaro
mandou ontem uma mulher se
retirar da frente do Palácio da
Alvorada após ser questionado
sobre as cerca de 38 mil mortes
causadas pelo novo coronavírus
no Brasil. “Cobre do seu governa-
dor. Sai daqui”, disse Bolsonaro,
que voltou a minimizar a pande-
mia. “Mortes estão havendo no
mundo todo, não apenas pela
covid”, afirmou.
“Nós temos hoje 38 mil mor-
tos por causa da covid. E, assim,
não são 38 mil estatísticas, são
38 mil famílias que estão morren-
do, chorando. Sinto que o senhor
traiu a nossa população”, disse a
mulher, integrante do Movimento
Brasil Livre (MBL). “Aquela figu-
ra falando abobrinha ali vem
usar uma coisa séria, as mortes,
para fazer demagogia”, rebateu o
presidente. / JULIA LINDNER

NILTON FUKUDA/ESTADÃO-17/4/

‘Presidente não pode


ser responsabilizado


por atos dos eleitores’


Advogada diz que


eventuais disparos


ilegais de mensagens
não foram feitos pela


campanha de Bolsonaro


Karina Kufa, advogada do presidente Jair Bolsonaro


“Não tem como ser
responsabilizado por fatos
praticados por seus
eleitores. Imagina ele ter
que controlar o que mais de
57 milhões de pessoas que
votaram nele fazem.”
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