O Estado de São Paulo (2020-06-11)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 11 DE JUNHO DE 2020 Especial H5


Aliás,


Andre Cáceres


Seis dias antes da proclamação
da República, em 1889, boa parte
da alta sociedade carioca foi con-
vidada para um banquete suntuo-
so que custou 10% do orçamento
da província do Rio de Janeiro,
então capital do Império. O even-
to ficou conhecido como o Últi-
mo Baile da Ilha Fiscal e é tido
como o suspiro final de uma mo-
narquia em esfacelamento, uma
tentativa de demonstração de po-
der. Não para Egydio Brandor
Poente, protagonista do roman-
ce As Sobras de Ontem (Compa-
nhia das Letras), romance de es-
treia de Marcelo Vicintin.
“Acho isso uma bobagem”,
pensa o personagem em seu apar-
tamento luxuoso nos Jardins, on-
de cumpre prisão domiciliar
após ser preso por uma força-ta-
refa da Polícia Federal. “O viscon-
de sabia que seu tempo de palco
se esgotava rapidamente, e entre
manter a discrição, ganhando as-
sim algumas semanas de existên-
cia medíocre, e sair no auge, a es-
colha me parece óbvia.” Para Egy-
dio, historiadores não compreen-
dem as reais motivações do baile
porque não entendem nada de
festas. Ele, sim. E o romance nar-
ra os preparativos de um jantar
que ele pretende dar para a nata
paulistana em seu apartamento,
ainda cumprindo pena por cor-
rupção.
A espinha dorsal de As Sobras
de Ontem é o contraste entre seus
dois protagonistas: Egydio Poen-
te é herdeiro de uma empresa na-
val e acaba envolvido em um es-
quema criminoso; Maria Luiza
Alvorada é filha de um casal de
classe média deslumbrado pela
elite, que tenta se passar por uma
família rica e acaba indo à falên-
cia para sustentar a farsa. Para
além da óbvia dualidade explíci-
ta em seus sobrenomes – a aristo-
cracia decadente dos Poente e o
alpinismo social dos Alvorada –,
a narrativa pinta um panorama
do alienado cume da pirâmide so-
cial brasileira.
“Retratar essa elite é, necessa-
riamente, fazer uma crítica a ela,
pois é uma elite egoísta, com
uma moralidade dúbia”, afirma
Marcelo Vicintin ao Estadão. “A
denúncia tem que estar lá, mas
eu tinha vontade de dar algum
tipo de humanização a essa elite,
buscar um lado de humor e de
charme em personagens que, em
essência, são crápulas.”
É difícil não projetar sobre Egy-


dio a figura de Brás Cubas, esse
perene arquétipo da amoralida-
de da elite brasileira. Basta tro-
car Coimbra por Cambridge ou
seu miraculoso emplastro pela

matemática. A grande força mo-
triz que alimenta esses dois in-
contestáveis niilistas é a mesma:
o tédio. Ou como Egydio pontua:
“Todos os outros animais pare-

cem suportá-lo estoicamente.
Nós construímos civilizações in-
teiras para evitá-lo: as pirâmides
do Egito foram o Tetris de um
faraó entediado.”

“Talvez o tédio tenha sido o
primeiro dos grandes temas do
livro, porque comecei a escrever
influenciado pelo texto Um Elo-
gio ao Tédio, do Joseph Brodsky,
em que ele fala a formandos que
eles estão preparados para suas
áreas de formação, mas nada os
prepara para o tédio, e as pessoas
que não aprendem a suportá-lo
estão fadadas ao desastre. A inca-
pacidade de entender e aceitar o
tédio é destrutiva, e no fundo é
um pouco o que acaba aconte-
cendo com os personagens”, ex-
plica Vicintin.
O romance alterna capítulos
narrados por Egydio e por Mari-
lu, cujas vidas se tocam de ras-
pão. A sofisticação intelectual de-
le, que estudou matemática e é
apreciador de arte (seu relato é
polvilhado de referências erudi-
tas, como trechos do roteiro de
O Anjo Exterminador, de Luis
Buñuel, em que um jantar de grã-
finos se degrada em uma selvage-
ria), contrasta com a linguagem
informal e fútil dela, que narra
sua vida como o diário de uma
interesseira sem se desculpar pe-
lo próprio arrivismo.
“Na elite brasileira, existe uma
cultura de vale-tudo, sempre apa-
rece alguém dis-
posto a correr
um risco maior
do que quem es-
tá no topo da pi-
râmide”, afirma
Vicintin, que fez
um trabalho qua-
se antropológi-
co para reproduzir os trejeitos
das pessoas retratadas. Os con-
trastes entre os protagonistas es-
tão refletidos na forma como os
narradores se comportam nos
respectivos capítulos. Ele, mais
sóbrio e até filosófico; ela, com
gírias, maior espontaneidade e
em tom confessional. “Eu acha-
va essencial que qualquer pessoa
que abrisse um parágrafo aleató-
rio soubesse se quem está falan-
do é a Marilu ou o Egydio”, diz.
Para Vicintin, que vem do
meio corporativo – formado em
administração, fundou uma em-
presa de energia renovável e sem-
pre considerou a literatura um
hobby antes de se lançar como
escritor –, uma das questões que
o instigaram a escrever o roman-
ce é: por que alguém rico rouba?
“Para além da moralidade, me
fascinava uma pessoa que já tem
um avião, um iate ou uma ilha
roubando dinheiro público. Não
me parecia uma atitude racional.
No fundo, isso não é uma luta
por dinheiro, mas por poder. A
elite econômica que topou se as-
sociar a uma elite política o fez

por mando de campo, se sentiu
marginalizada num campo que
acreditava ser dela.”
Fica claro que, além da vivên-
cia pessoal nos círculos empresa-
riais, a escrita de Vicintin foi con-
taminada pelo noticiário. Ele re-
vela que o grosso do texto foi pro-
duzido entre o início de 2016 e o
final de 2018, período de grande
instabilidade que marcou sua
obra e a tornou atual – é curioso
que a condição de Egydio, preso
em casa remoendo as próprias
angústias, antecipou involunta-
riamente o momento de quaren-
tena pelo qual o País passa.
No entanto, As Sobras de On-
tem não fica apenas na superficia-
lidade de uma classe corrupta e
excêntrica. Tenta examinar tam-
bém o embate entre famílias tra-
dicionais e novos-ricos em ascen-
são, como fez Giuseppe Tomasi
de Lampedusa em O Leopardo,
que narra a unificação italiana pe-
la perspectiva de aristocratas (e-
le próprio era um) que se veem
ameaçados pela burguesia e deci-
dem se unir a eles.
Egydio nutre uma noção de pu-
reza idealizada que o motiva a re-
cusar essa harmonia entre clas-
ses: “Houve um tempo em que a
elite do planeta era
composta quase ex-
clusivamente de
pessoas cultas que
desprezavam a pro-
dução material e vi-
viam suas vidas em
busca do belo”. Já
Marilu busca justa-
mente a estabilidade financeira e
a aceitação social a todo custo:
quando criança, mente sobre
suas férias para impressionar os
colegas; mais tarde, usa o cartão
de crédito de uma amiga rica pa-
ra satisfazer os próprios desejos
consumistas; e, em última instân-
cia, se vê obrigada a decidir entre
o dinheiro e sua reputação.
Uma estreia surpreendente,
As Sobras de Ontem fornece um
olhar original no contexto literá-
rio contemporâneo para uma eli-
te que há séculos teima em ofere-
cer bailes na Ilha Fiscal enquan-
to se mantém indiferente ao país
ao redor convulsionando em
meio ao caos.

Daniel Martins de Barros


SOB ÁCIDA


ANÁLISE


facebook/danielbarrospsiquiatra
ESCREVE QUINZENALMENTE

l]


AS SOBRAS
DE ONTEM
Autor:
Marcelo
Vicintin
Editora:
Cia. das Letras
(216 págs.;
R$ 59,90)

Luiz Carlos Merten


Lá atrás, bem no começo, o di-
retor carioca Miguel Faria Jr.
fez filmes como Pedro Diabo
Ama Rosa Meia-Noite e Pecado
Mortal, de 1969 e 1970, respecti-
vamente, que não eram pro-


priamente narrativos, mas
avançavam por blocos, questio-
nando tudo – linguagem, famí-
lia, amor. Algo começou a mu-

dar com República dos Assassi-
nos. Stelinha venceu Gramado
de uma forma chocante, levan-
do todos os prêmios.
Veio depois o Jô Soares, O
Xangô de Baker Street. E Vini-
cius. O documentário de Mi-
guel Faria Jr. sobre Vinicius de
Moraes (1913-1980) é o desta-
que desta quinta, 11, às 15h45,
no Canal Brasil. Um bom prólo-
go para o Dia dos Namorados,
nesta sexta-feira, 12.
Um pocket show em home-
nagem ao poeta, compositor,
diplomata, homem do mun-
do. Camila Morgado e Ricar-

do Blat recitam poemas,
contam histórias. Somam-
se imagens raras, depoi-
mentos. Chico Buarque,
Caetano e a mana Bethânia
contam – e cantam. Se To-
dos Fossem Iguais a Você,
Poema dos Olhos da Amada,
Soneto do Amor Total, Eu Sei
Que Vou Te Amar.
O amor, tema preferido
de Vinicius. Que seja eterno
enquanto dure. Mart’nália,
Sei Lá (A Vida Tem Sempre Ra-
zão). Zeca Pagodinho, Pra
Que Chorar. Na pandemia,
um bálsamo para o coração.

Sem intervalo


ELITE


D


izem que, para domar ele-
fantes antigamente, deixa-
vam filhotes com uma pata
amarrada desde o nascimento.
Eles iam crescendo e aprendendo
que era inútil tentar ir além da ten-
são na corrente – depois que ela
esticava, não adiantava tentar for-
çar adiante. Esticou, freou. E com
isso eles se tornavam atrações de
circo fáceis de manejar – aqueles
bichos enormes eram facilmente
mantidos presos num pequeno to-
co, por nem sequer imaginar que
poderiam arrastar domador, cor-
rente, tudo, se apenas tentassem.
Mas eles não tentavam.

Não sei o quanto de verdade tem
nessa história, mas é fato que pode-
mos ensinar alguém a desistir. Chama
desamparo aprendido, e foi descober-
to numa experiência bastante cruel.
Nos anos 1960, quando os comitês de
ética eram provavelmente mais le-
nientes, o psicólogo Martin Seligman
colocou cães em gaiolas especiais
com chão eletrificado, dando cho-
ques nos coitados dos bichos de vez
em quando. Embora não soubessem
quando vinha o susto, numa delas po-
diam interromper os choques com
uma alavanca, ao contrário do que
acontecia na outra. Depois de um tem-
po os cães iam para outra gaiola dividi-

da em duas metades por uma barreira
baixa, na qual só um dos lados tinha o
chão eletrificado. Quando os cães
eram colocados ali, apenas os que vi-
nham da gaiola com alavanca pensa-
vam em pular para o lado que não dava
choque. Os outros ficavam lá, toman-
do choque, sem ter a mesma ideia. Afi-
nal, eles haviam aprendido a não ter

esperança. Daí desamparo aprendido.
Tenho pensado nessas histórias
conforme vejo muita gente dizendo
que já se acostumou com a vida na
quarentena. Será que estamos no ca-
minho dos cães de Seligman? Ou do
cachorro de Zenão?

Há três meses, quando a coluna es-
treou no caderno Quarentena, eu dizia
que era preciso aceitar a realidade dos
fatos. Antes de o termo novo normal
ganhar fama referindo-se ao cenário
que nos aguarda quando tudo isso pas-
sar, defendi sua aplicação não no futu-
ro, mas no presente. A realidade que
estamos vivendo agora é o normal por
enquanto. Nos rebelarmos contra ela
não a torna mais breve, apenas menos
tolerável. E lembrava então do filóso-
fo Zenão, que descrevia o comporta-
mento de um cão sábio. Amarrado a
uma carroça, ele sabiamente não se
revoltava contra a direção para onde
era puxado, mas aceitava o destino e
fazia sua vontade coincidir com as for-
ças que o arrastavam.
Qual a diferença entre os dois cães?
Por que nos sentimos compungidos
pela história dos cães de Seligman e

inspirados pelo cachorro de Ze-
não?
Creio que seja devido ao motivo
por trás da resignação. O cachorro
amarrado seria tolo de lutar contra
seu destino. Como só lhe resta acei-
tá-lo, parece digno fazê-lo com alti-
vez. Já o cachorro que desiste de
pular por desamparo lá fica, toman-
do choques desnecessariamente,
inspirando piedade.
Agora que estamos quase nos
acostumando com a quarentena
me pergunto por quê. Se estiver-
mos lidando de forma estoica com
uma realidade dura, ótimo. Mas de-
vemos nos manter vigilantes para
que não desistamos de lutar com
problemas que podemos superar.
Eles não são destinos inexoráveis.
Mas só saberemos disso quando
tentarmos nos livrar deles.

Sansão e Dalila/
Samson and Delilah
(EUA, 1949.) Dir. De Cecil B. De Miller, com
Victor Mature, Hedy Lamarr, George San-
ders, Angela Lansbury, Henry Wilcoxon.

Luiz Carlos Merten

De Mille foi o grande reacioná-
rio de Hollywood. Apoiou o ma-
carthismo e John Ford o enqua-
drou, num debate que entrou pa-
ra a história. A crítica, em geral,
o odeia, mas foi um visionário e
grande entertainer. Transfor-
mou a Bíblia numa fonte perma-
nente de erotismo e violência.
Sua Dalila é uma pantera amoro-
sa, reagindo com fúria ao que
considera traição de Sansão.
TEL. CULT, 22H. COLORIDO, 128 MIN.

‘RETRATAR ESSA


ELITE É,


NECESSARIAMENTE,


CRITICÁ-LA’


Quase acostumados


A realidade que estamos
vivendo agora é o
normal por enquanto

‘Vinicius’, um


bálsamo para


o coração no


Canal Brasil


DESTAQUE
PARAMOUNT PICTURES

Filmes na TV


Outsider. Autor
leva à literatura
sua vivência
nos círculos
corporativos

Em ‘As Sobras de Ontem’, Marcelo Vicintin satiriza a


excentricidade do topo da pirâmide social brasileira


FABIO AUDI
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