O Estado de São Paulo (2020-06-13)

(Antfer) #1
Guilherme Sobota

A literatura costuma tomar
mais tempo do que outras artes
para refletir sobre o tempo pre-
sente – embora alguns clássicos
continuem a fazê-lo centenas
de anos mais tarde. Crônicas à
parte, a pandemia começa ago-
ra, porém, a ver os primeiros tra-
balhos literários de fôlego to-
mando forma.
Uma das primeiras iniciati-
vas nesse sentido foi da escrito-
ra mineira Gisele Mirabai, fina-
lista do Jabuti em 2018 por Ma-
chamba (Ed. Nova Fronteira).
Em apenas nove dias, Gisele es-
creveu seu novo (e quinto) li-
vro, Ana de Corona – o romance
foi lançado online no fim de
abril e agora também está dispo-
nível em formato físico, pela
Ciao Ciao Editorial.
No livro, a vida da ambienta-
lista Ana passa por uma infle-
xão que envolve o corte de sua
bolsa de pesquisa pelo governo,
o casamento e a família, uma no-
va paixão – e a pandemia. “Uma
noite, bem no início da pande-
mia, li um artigo da USP sobre o
vírus durar bastante tempo no
ar, nas partículas de aerossóis,
que são mais leves. Ali eu entrei
em pânico e pensei: todo mun-

do vai pegar. Fiquei sem dormir
a noite toda e de manhã, eu ti-
nha duas opções. Ou ficava le-
tárgica o dia todo ou me sentava
para escrever”, explica.
Da escrita à publicação, fo-
ram 19 dias. Também roteirista,
ela conta que foge do formato
fixo do roteiro, que boa parte
das vezes têm arco dos persona-
gens definidos e cenas encadea-
das se movendo em direção ao
final da história. Nesse caso, po-
rém, o formato pareceu adequa-
do. Ela estabeleceu a Páscoa co-
mo data-limite para a conclu-
são da escrita – “seria a minha
ressurreição”. É engraçado no-
tar que, na estrutura do livro, o
próprio vírus funciona como en-
cadeamento, espalhando-se
por personagens que orbitam
em torno da protagonista.
“Quando terminei, dei o livro
para doze leitores betas varia-
dos”, explica, sobre o processo
editorial agilizado. “O livro tem
muitas informações e eu esco-
lhi leitores que, de alguma for-
ma, dominavam parte daquelas
informações e também podiam
me dar feedbacks variados da
história. Depois desses dois a
três dias de leituras, foi mais
uma semana para recriar o livro
a partir das sugestões, lapidar a

linguagem, contratar um revi-
sor que trabalhava em paralelo
comigo, e fez ao todo três revi-
sões. No fim de semana seguin-
te criei o e-book junto a uma es-
tratégia de lançamento de
download gratuito.”
O trabalho anterior da escri-
tora, já solitário, lhe deu ferra-
mentas para enfrentar a necessi-
dade de isolamento social:
“sempre brin-
co que, com a
minha rotina
de escritora,
já estava de
quarentena
há oito anos”.
Para ela,
neste momen-
to, a literatura pode sim ser
uma forma de lidar com o con-
texto atual. “O engajamento
nas redes sociais nos faz conhe-
cer mais autores negros, mulhe-
res e que não conhecíamos até
então”, diz. “Quanto à criação
do texto literário em si, sinto
que o contexto sóciopolítico-
ambiental em que vivemos esta-
rá cada vez mais presente, edu-
cando, trazendo reflexões e
transformando olhares.” Uma
de suas leituras, desconfortá-
vel, admite, é O Conto da Aia, de
Margaret Atwood.

Poesia. O poeta paulistano Lu-
cas Lins, de 22 anos, concluiu em
maio uma potente série de poe-
sias, chamada Poesia Para Matar
o Corona, pela qual comparti-
lhou, via Instagram, poemas nar-
rativos sobre o cotidiano de uma
quarentena em São Paulo. Inspi-
rado por Carolina Maria de Je-
sus, Lins percebeu que o tempo


  • com o trabalho numa Casa de
    Cultura sus-
    penso – pode-
    ria servir, ele
    mesmo, de ma-
    terial para seus
    textos.
    Muito jo-
    vem, ele con-
    traria o que
    Graciliano Ramos dizia sobre
    não existir prodígios na literatu-
    ra: em seus melhores momen-
    tos, sua poesia do cotidiano, re-
    cheada de imagens bonitas, faz
    um retrato incisivo do País
    (“não vale a pena ver de novo /
    capítulos de avenida brasil”),
    cuja estética, ao mesmo tempo
    dedicada e espontânea, acende
    um tipo de esperança da qual
    todos estão necessitados. Vidas
    Secas, não por acaso, foi uma lei-
    tura da quarentena.
    Um trecho de um dos poe-
    mas diz: “moradores do meu


bairro / preveem a chegada do
gás / por causa da sinfonia do
beethoven”. Outro: “o vinícius
me gritou lá de baixo / pergun-
tou se veria essa foto no insta-
gram com oração na legenda /
eu sorri / não pensei que poesia
fosse reza”.
“Eu absorvi o conhecimento
do slam”, diz Lins, por e-mail ao
Estadão. “É essa a literatura
que chega nas escolas da perife-
ria e afeta os alunos, bem mais
do que Machado de Assis. Poeta
de corpo vivo, da nossa idade,
da nossa cor, que fala gíria, faz
performance, é um outro esta-
do da poesia.”
O escritor destaca que procu-
rou no presente matéria-prima
para a literatura. “Poesia pra Ma-
tar o Corona é a própria crise da
covid, a falta de contato físico,
situação do País, a população de
baixa renda sem condições de
cumprir o isolamento, eu não
sabia se no dia seguinte (de quan-
do comecei a escrever) a cidade de
SP ainda estaria aberta, quanto
mais o mundo pós-pandemia.”
O que ele sabe, porém, é que a
literatura não vai criar a vacina.
“A literatura vai falar de rela-
ções humanas, histórias, a vida
da forma que acontece. Caroli-
na fez isso na Favela do Canin-
dé, Anne Frank fez isso no perío-
do do nazismo, e essas obras
são atemporais. A escrita está
muito mais ligado à lembrança
do que ao presente.”
O escritor Felipe Franco Mu-
nhoz – isolado em seu aparta-
mento em São Paulo desde o dia
14 de março – teve a ideia de
construir um texto quando um
disco de Pixinguinha pulou na
faixa Urubu, uma gravação de


  1. “O solo de flauta de Pixin-
    guinha repetia-se no tempo cer-
    to da música. Demorei algumas
    repetições para notar que não
    era proposital; quando com-
    preendi, ao invés de parar, resol-
    vi permitir que o compasso er-
    rático soasse várias vezes.” Es-
    se foi o ponto de partida de Pa-
    rêntesis – texto que se encaixa-
    ria no gênero “closet drama”,
    uma peça teatral para ser lida.


No texto, um casal se forma
em interações pelas janelas, ca-
da um em seu apartamento –
ideia que também partiu da vi-
vência do escritor. “Isso fez
com que eu pensasse, durante
vários dias, na eventual intera-
ção entre vizinhos que não se co-
nheciam antes de seus isolamen-
tos: de quais maneiras, novas in-
terações poderiam se estabele-
cer? Quais formas de relaciona-
mento poderiam germinar en-
tre janelas?” Decididos ao confi-
namento total, eles formam um
casal “que (apesar do contato vi-
sual, apesar da proximidade)
nunca experimentou o toque, é
um casal que está impossibilita-
do do encontro físico”.
Consciente de uma busca es-
tética a favor da fusão completa
entre forma e conteúdo, Mu-
nhoz aplica aqui uma experi-
mentação formal que já apare-
cia em Identidades (Nós), seu li-
vro mais recente, de 2019. “Pa-
rêntesis simularia, de certo mo-
do, um risco em um disco de vi-
nil – e sua repetição, em pulos,
tendendo ao infinito”, explica o
escritor. “Busca espelhar certa
sensação que a quarentena im-
primiu em várias pessoas com
quem converso: de que os dias
não se diferem. Com a disposi-
ção específica do texto na pági-
na, que representa o distancia-
mento entre os personagens.”
Leitor voraz da literatura con-
temporânea, sua leitura mais re-
cente na quarentena foi Ao Pó
(Patuá), de Morgana Kretz-
mann. Para ele, a arte pode tam-
bém estimular um combate no
território político. “A literatura
pode estimular o desejo pelo co-
nhecimento (o que, inclusive,
por si, provavelmente conduzi-
ria eleitores a futuras escolhas
com mais discernimento)”, co-
menta. “Isso porque a arte lan-
ça luzes e sombras sobre as nos-
sas próprias luzes e sombras.”

ESCRITOS EXPLORAM
FORMATOS VARIADOS E
BUSCAM REGISTRAR O
PRESENTE DA PANDEMIA

NA


EM PROSA

Paladar


Drinques juninos para fazer em casa PÁG. H5


Escritores buscam inspiração no momento


para produzir obras diferentes e vibrantes


QUARENTENA


PANDEMIA

Livro reúne contos
criados na quarentena

TRECHOS

“A


bre a janela
em frente à
mesa para ver se o ar

lhe traz alguma inspiração. O
vento sopra na direção de Ana.
Nessa mesma hora, o vizinho
de cima que sempre teve hábi-
tos estranhos e escatológicos,
vai até a janela e espirra feito
um dragão. Milhões de gotícu-
las se espalham no ar e caem
dois metros à frente, no jardim
do prédio. (...) Nesse exato mo-
mento, Ana se contamina.” (A-
na de Corona, Gisele Mirabai)

“Todo comércio é essencial /
esse ano não foi letivo / ventos
iniciam temporada de pipas /
eu abaixo das linhas chilenas /
como abaixo das barracas na
feira / sempre que me vê pela
biblioteca / ou casa de cultura /
a Bia repete a mesma pergunta
/ como estão as poesias?” (Poe-
sia Para Matar o Corona #70,
Lucas Lins)

“O parêntesis que contém a
maior chuva de sensações da
história, golpes e beijos e bom-
bas de variadas intensidades,
pressões, texturas. Minúcias-
gestos, nesse intervalo, minú-
cias-movimentos humanos,
salientam-se perceptíveis:
pulmões, músculos, tendões.
Gira, o disco de vinil, três mil
quatrocentos e cinquenta e
seis graus. Eu contei.” (Parênte-
sis, Felipe Franco Munhoz)

HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

Pág.H3

DANIEL

TEIXEIRA/ESTADÃO

Autores. Felipe
Franco Munhoz,
Lucas Lins e
Gisele Mirabai

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