O Estado de São Paulo (2020-06-13)

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H8 Especial SÁBADO, 13 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Darryn King
THE NEW YORK TIMES


Em um sábado recente, partici-
pei com algumas centenas de pes-
soas de uma noitada selvagem
em uma casa noturna particular-
mente escandalosa. Cada sala
continha algo diferente e inespe-
rado. Em uma delas, uma garota
tocava viola e contava piadas chu-
las; na sala ao lado, um rato gigan-
te fazia strip-tease ao som de
uma palestra a respeito do taois-
mo. Havia uma aula de culinária,
um mágico fazendo truques com
cartas, uma artista burlesca se
contorcendo em um divã.
Tratava-se de Eschaton: parte
teatro, parte simulador da vida
noturna, parte Chatroulette,
que ocorre nas noites de sábado
no Zoom. Temos a ilusão de es-
tar em um labirinto de salas in-
terconectadas, ainda que cada
um dos apresentadores esteja
transmitindo ao vivo suas con-
tribuições díspares e habitual-
mente individuais a partir de
suas casas.
Sintonizando remotamente,
os membros do público são in-
centivados a vestirem suas me-
lhores roupas, diminuir a luz e
preparar um drinque (cumpri
alegremente duas dessas três re-
comendações). Pode-se manter
a câmera ligada ou desligada,
mas permitir que os outros nos
vejam parece mais condizente
com a atmosfera de voyeurismo
cafona do espetáculo. Durante
uma hora, podemos interagir
com os artistas, tentar montar o
quebra-cabeça de uma história e
desvendar uma história de dete-
tive, para quem conseguir encon-
trar a primeira ponta da trama.
Pode-se também caminhar à
vontade entre as salas virtuais,
curtindo o lado surreal desse es-
petáculo de variedades.
A ex-atriz Brittany Blum e a
autora de ficção Tessa White-
head criaram Eschaton como
uma experiência de imersão no
mundo real, na época em que o
teatro era uma atividade presen-
cial, e não uma transmissão na
internet – uma história de misté-
rio que se desenrola no estilo
das populares peças de teatro
imersivo Sleep No More ou Then
She Fell.
No início de março, o espetá-
culo já estava em desenvolvi-
mento há sete meses. Tessa ti-
nha escrito cinco roteiros que se
misturavam, Brittany investiga-
va imóveis onde pudessem mon-
tar a apresentação e o elenco es-
tava ansioso para começar,
pronto para interpretar os habi-
tantes torturados de uma casa
noturna-purgatório. O título, Es-
chaton, termo teológico para o
fim do mundo, se encaixa no te-
ma mais amplo: a necessidade
existencial do performer em re-
lação ao público e a precarieda-
de de uma vida sob os holofotes.
Então, a pandemia chegou co-
mo um lembrete muito real des-
sa precariedade.


“Tivemos que cancelar nosso
primeiro ensaio de texto e, du-
rante uma semana, enquanto as-
sistíamos ao fechamento de
Sleep No More e da Broadway to-
da, não sabíamos ao certo se o
teatro de imersão seguiria exis-
tindo”, disse Tessa. “Mesmo

que sobrevivesse, como seria
sua aparência?”
Mas, depois de duas semanas,
enquanto a equipe de criação
passava a quarentena em lito-
rais diferentes (Tessa estava no
Brooklyn, em Nova York; Brit-
tany estava em São Francisco),
elas começaram a
imaginar como se-
ria uma versão vir-
tual do espetáculo.
Seria possível tra-
duzir o espírito do
teatro de imersão


  • forma que deriva
    parte de sua força
    da sensação de proximidade
    sem fronteiras entre elenco e pú-
    blico – para os limites estreitos
    de uma tela de computador?


Adaptação. “Durante a quaren-
tena, nos pareceu que o público
precisava de algum tipo de entre-
tenimento, um mundo em que

pudessem se perder e escapar
da realidade em que estão”, afir-
mou Brittany. “Nós simples-
mente encontramos o público
onde ele estava: online.”
Elas recrutaram Taylor
Myers, de Sleep No More, como
diretor, e também o estúdio de
tecnologia Ben-
benben, que
tem ajudado di-
ferentes empre-
sas na transição
para os espaços
virtuais. Elas
criaram um sa-
guão digital – na
verdade, um site protegido por
senha que só pode ser acessado
por quem compra o ingresso – e
se inspiraram em fontes diferen-
tes, como os videogames, os jo-
gos de realidade virtual e os desa-
fios do tipo jogos de escape onli-
ne. “Não tínhamos ideia de
quanto tempo a quarentena du-

raria”, disse Tessa, “então de-
mos a nós mesmas o prazo de
duas semanas para ter algo a
apresentar”.
O orçamento que seria desti-
nado ao aluguel do espaço foi in-
vestido no recrutamento e re-
muneração do maior número
possível de performers diferen-
tes. O elenco aumentou de cin-
co para 26 pessoas, aproveitan-
do muitos talentos de Sleep No
More e Then She Fell. Por moti-
vos óbvios, os performers preci-
sam cuidar do próprio figurino,
iluminação, cenário, objetos de
cena, maquiagem, direção musi-
cal e fotografia.
“Criar um palco para si pode
ser uma experiência solitária",
indicou Mallory Gracenin, cujo
trabalho fez sucesso entre os fãs
de Sleep No More. Ela participa
de Eschaton como uma das apre-
sentadoras. “Mas, durante al-
gum tempo, não acreditei que
poderia trabalhar como artista.
Fico muito feliz de poder fazer
isso toda semana.”
O mundo de Eschaton conti-
nua a se transformar e a crescer
a cada semana. É grande o bas-
tante a ponto de ficarmos total-
mente perdidos dentro dele,
com vários cômodos formando
três andares mais um porão (an-
tes de se especializar em expe-
riências de imersão, Jae Lee, co-
produtor do espetáculo e cria-
dor de seus jogos, estudou e tra-
balhou com arquitetura). Um di-
retor de cena e uma equipe de
assistentes ficam nos bastido-
res, oferecendo suporte técnico
e conduzindo os convidados na
direção de segredos e surpresas.
E Tessa seguiu escrevendo,
costurando uma narrativa com
fios cada vez mais numerosos e
complexos na qual o público po-
de se enredar ou desemaranhar.
Ao preço de US$ 10 por ingres-
so, as criadoras esperam que al-
guns visitantes se animem a vol-
tar, entendendo a experiência
como um episódio de TV. “A ca-
da semana há mais a ser desco-
berto, mais camadas de drama
para descascar”, disse Tessa.
Também foram oferecidos al-
guns prêmios únicos. Pelo me-
nos um membro do público aca-
bou recebendo uma pizza de ver-
dade em casa. E ainda há mais
ideias que as criadoras querem
experimentar. “É como se tivés-
semos descoberto por acaso um
novo gênero de entretenimento
ao vivo”, ressaltou Tessa.
Mallory espera que, quando
os teatros reabrirem, Eschaton
possa continuar – talvez nos
mundos real e virtual ao mesmo
tempo. Mas ela anseia pelo mo-
mento em que artistas e público
poderão voltar a conviver fisica-
mente. “Será ótimo abraçar um
colega de palco”, disse ela. /
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALI

No Brasil
É possível assistir ao espetáculo
do Brasil pelo site bit.ly/eschaton-
br. As interações são em inglês.

S


empre invejei o porteiro per-
nambucano, filho de pesca-
dor. Perguntava por que ele
preferia morar aqui, no Jardim Ânge-
la, e não na praia com a família. Mais
opções, dizia. Um barbeiro do bair-
ro voltou com a mulher pra João Pes-
soa. Montaram um salão por lá.
Um amigo cientista político foi
com a filha pequena para a casa da
mulher numa praia de Floripa. Dá
aulas e escreve colunas de lá. Eu
aqui, onde um elevador é considera-
do lugar de risco.
Se São Paulo tem 70 mil bares e
restaurantes cadastrados, por onde
andam os cozinheiros, chefes, gar-
çons, maîtres, sommeliers? E mi-
grantes do interior do Estado, cea-
renses, pernambucanos, baianos,
mineiros?
Uma amiga separada enfurnada
na quarentena em São Paulo, num
bairro em que os prédios não têm
vista, estava sem trabalhar. Depri-
miu, definhou, afundou num col-
chão sob o manto da tristeza. A filha
de seis anos entrava e tirava sua tem-
peratura, achando que mamãe esta-
va dodói. Mamãe virara cobaia da

indústria farmacêutica; não acertava a
dose certa do antidepressivo perfeito.
Claro que as aulas online do Funda-
mental 1 não rolavam. Crianças não
conseguem entender a educação via
aquela tela sem contato físico. De que
são proibidas e estão encharcadas de
fake news, ódio, youtubers tagarelas e
desbocados, games sanguinários, com
tiros e zumbis.
Ela teve forças para pegar a filha e ir à
fazendinha da família, a cinco horas de
carro, onde chegou com incertezas, es-
pecialmente depois de rever alguns
fantasmas da adolescência que acredi-
tava estarem enterrados.
Aqui na cidade grande, era a farrista
doidinha que não parava quieta, estava
em todas, a da balada forte, excessos.
Ficou sem rumo antes da pandemia,
piorou com ela, chorou sem sair da ca-
ma, numa culpa sem tamanho por não
poder confortar quem precisava, a fi-
lha. O poço parecia sem fim. Fizeram
as malas e se mandaram. Mandaram
muito bem.
No campo, anda a cavalo com a meni-
na, passeia pelas montanhas, vê céus es-
trelados, revê primos, acaricia cachor-
ros, lê bastante e se dá ao luxo de fazer

cursos via Zoom ao vivo e on demand
de literatura, história. Descobre filmes
de arte em streamings independentes.
Postou no Insta as vaquinhas não
confinadas da família, deitadas felizes
nos pastos. Mostrou o leite sendo tira-
do sem ordenha mecânica. Contou
que atendem pelo nome, e vêm quan-
do convocadas. A filha aprendeu a tirar
leite. Decidiu comprar mais vaqui-
nhas. A novidade: parou de tomar anti-

depressivos e se tornou vegana. Even-
tualmente, ela me manda fotos que me-
xem comigo. Queria estar lá. Como a
invejo...
Eu aqui nesse estresse, rodeado de
estressados, temendo a rua, amigos, a
família, com dois filhos pequenos, sem
bares, opções culturais, restaurantes,
sem poder viajar. Se marco bobeira, lá
estão bagunçando a cozinha, atacando
a geladeira, no tablet, no YouTube. Se
desço, lambem o elevador.
Nos anos 1970 houve a virada, Brasil

rural se tornou urbano: mais de 50% da
população passou a morar em cidades,
gente expulsa pela concentração de
terra, latifúndio, grilagem, agronegó-
cio, mecanização, ou atraída pela vida
da sociedade, vida consumista de rolê
agitado, opções.
O pequeno sitiante, o que vivia da
roça, o que tinha uma chácara com gali-
nhas, o trabalhador do campo, pulou
de plantação em plantação, como nu-
ma cena de John Steinbeck ou Gracilia-
no Ramos, e caiçara trocou o bucólico
pela periferia de uma cidade industrial.
Lembrei-me da fazenda da minha fa-
mília no Vale do Ribeira, em que na
infância me deixavam por meses com
30 primos, entre cavalos pangarés e ca-
chorros, com a opção de nadarmos no
lago barrento ou no rio cristalino, ain-
da não poluído, com praias de areia,
cercados pela Mata Atlântica.
Programas: caminhadas, jogos de fu-
tebol com colonos, leite da vaca às ma-
nhãs, e uma quantidade enorme de op-
ções noturnas, jogos de salão como pin-
gue-pongue, sinuca, teatrinho, violão,
fogueira, festinhas à fantasia, cartea-
do, xadrez, livros, histórias contadas
pelos mais velhos, e um piano de cauda
em que tios insistiam em tocar Cho-
pin, sempre Chopin.
A fazenda não era lucrativa. Dizia-se:
fazendeiro vive pobre e morre rico. Era
uma forma de meu avô agregar a famí-

lia em férias de verão, inverno, feria-
dões. Ao morrer, os herdeiros se des-
fizeram dela, torraram os cobres, e a
diáspora familiar começou. Cada
um está num canto do mundo se-
guindo a sua vida. Rachas políticos e
éticos rolaram. Poucos se falam.
Outro dia, me ligaram. A sede da
fazenda estava à venda. Por um va-
lor que eu não podia pagar. O valor
sentimental que não tem volta. O
rio ficou poluído. Roubaram a areia
da praia. Não tem mais vacas nem
cavalos, apenas bananeiras. A casa
pegou fogo.
Mas, com tanto tempo vago, me
lembrei de cada canto: naquele gal-
pão, faria uma horta hidropônica;
plantaria produtos orgânicos basea-
do na agricultura sintrópica ao re-
dor do lago; quem chegasse, ficaria
de quarentena na casa de hóspedes;
uma vaca pode dar, dependendo da
raça, de 25 a 70 litros/dia; deixo-as
pastando pelo gramado, com ca-
bras, para queijos; cerco tudo de, ár-
vores frutíferas; meto umas gali-
nhas. Vendo tudo na cidade grande.
O futuro será uma volta ao cam-
po. Temos as redes, internet, cine-
ma, museus, teatro e escolas online.
Teremos comida de primeira e vida
ao ar livre de volta. A pandemia acen-
deu a luz: o conglomerado urbano
faliu.

E INTERATIVO, O MIX


DE ‘ESCHATON’


Marcelo Rubens Paiva


ESCREVE AOS SÁBADOS

Mistura de teatro imersivo e festa online, espetáculo foi adaptado em poucas


semanas para substituir a estreia nos palcos por uma experiência online


l]


Meia-volta


lOnde o público está

BIZARRO


‘CENÁRIO’ TEM
VÁRIOS CÔMODOS,

TRÊS ANDARES
E UM PORÃO

A pandemia acendeu
a luz: o conglomerado
urbano faliu

Som ambiente. Em uma das salas, um DJ coloca música

Boas-vindas. A atriz Kuhoo Verma recebe o público em ‘Eschaton’: narrativa é complexa, com novidades semanais

“Durante a quarentena, o
público precisava de algum
tipo de entretenimento”
Tessa Whitehead
AUTORA DE ‘ESCHATON’

FOTOS IOULEX/NYT
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