O Estado de São Paulo (2020-06-14)

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A12 Internacional DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


A


rede americana de cafés Star-
bucks proibiu seus funcioná-
rios de usar roupas e acessó-
rios alusivos ao movimento Vidas
Negras Importam porque violam
suas regras contra manifestações
“políticas, religiosas ou pessoais”.
A informação saiu na quarta-feira
no site BuzzFeed. Dois dias depois,
diante das críticas nas redes so-
ciais, a empresa não só decidiu per-
mitir o uso como distribuiu 250 mil
camisetas com a mensagem, como
já faz em relação aos direitos dos
homossexuais.
A exibição da forma como Geor-
ge Floyd foi morto pela polícia e os
protestos que se seguiram desloca-

ram a fronteira do aceitável, no que
diz respeito ao racismo, pelo menos
em boa parte do mundo avançado. A
tolerância, ou “normalização”, de vio-
lência contínua contra uma popula-
ção que nos EUA e na Europa é mino-
ria e no Brasil, maioria, diz respeito
não só a questões objetivas, como a
disparidade de renda entre negros e
brancos, mas a sentimentos, como ho-
menagens a figuras históricas associa-
das à escravidão.
Sentimentos podem não ser palpá-
veis, mas são tão ou mais poderosos
que realidades socioeconômicas, sem
contar que os dois campos se reforçam
mutuamente. Dez bases militares ame-
ricanas levam o nome de comandan-

tes que lutaram pela manutenção da
escravidão nos EUA. Se eles não tives-
sem sido derrotados na Guerra Civil
(1861-65), os antepassados dos milita-
res negros que servem nessas instala-
ções teriam continuado escravos.
Esses militares negros são enviados
para guerras em lugares longínquos,
nas quais com enorme frequência en-
contram a morte lutando pelo seu
país.

Os líderes militares americanos de-
monstraram entender isso. O secretá-
rio de Defesa, Mark Esper, declarou-se
aberto a rebatizar as bases que levam
os nomes de comandantes confedera-
dos, além de declarar apoio aos protes-
tos contra o racismo. O chefe do Esta-
do-Maior Conjunto das Forças Arma-
das, general Mark Milley, se disse “re-
voltado” com o assassinato de Floyd e
afirmou que os protestos que ele de-

sencadeou remetem a “séculos de in-
justiça contra os afro-americanos”.
Ambos assumiram publicamente o
desconforto com a própria presença
no evento do dia 1.º, em que Donald
Trump ameaçou usar as Forças Arma-
das para esmagar os protestos e cami-
nhou até a Igreja St. John, enquanto
militares e policiais dispersavam mani-
festantes com bombas de gás lacrimo-
gêneo e balas de borracha para o presi-
dente passar. E assim provar sua “cora-
gem”, depois de ter-se escondido no
bunker da Casa Branca nas vésperas.
“Minha presença naquele momento e
ambiente criou a percepção dos milita-
res envolvidos na política interna”, la-
mentou Milley.
As credenciais de Milley são impecá-
veis. Comandou tropas no Iraque e no
Afeganistão. Em depoimento em janei-
ro no Congresso, justificou a ordem do
presidente de matar o general iraniano
Qassem Suleimani dizendo que havia
inteligência sólida de que ele tramava
ataques a alvos americanos. Essas evi-
dências eram bem questionáveis. Mil-
ley se expôs por Trump. Mas ficou do

lado do povo americano e da Consti-
tuição quando chegou a hora de es-
colher entre eles e o presidente.
Trump fugiu várias vezes do alista-
mento para lutar no Vietnã, alegan-
do que tinha esporão, embora prati-
casse esportes. E parece não ter
aprendido nada sobre a alma militar
de lá para cá. “Minha administração
não vai nem sequer considerar reno-
mear essas instalações militares
magníficas e fabulosas”, tuitou ele.
“Não vão mexer com a nossa histó-
ria de maior nação do mundo. Res-
peitem nossos militares!”
O presidente pretendia retomar
seus comícios em Tulsa, Oklahoma,
na sexta-feira, aniversário da aboli-
ção da escravidão nos EUA. Tulsa
foi palco de massacre de negros por
brancos entre 31 de maio e 1.º de ju-
nho de 1921. À pergunta sobre o sim-
bolismo disso tudo, Trump respon-
deu que marcou o comício sem sa-
ber de nada disso. Sem conhecer a
cultura militar nem a história, em
que o presidente baseia seus juízos
sobre a grandeza de seu país?

LOURIVAL


SANT’ANNA


PEQUIM


Várias dezenas de moradores
de Pequim deram positivo para
o novo coronavírus, confirman-
do a existência de um novo sur-
to de infecção na capital chine-
sa, onde um confinamento de
emergência foi ordenado em 11
bairros.
Esses novos casos suscitam
temores de uma segunda onda
pandêmica na China, após o sur-
gimento do vírus na cidade de
Wuhan no final do ano passado.
Desde então, as autoridades
chinesas conseguiram contro-
lar a covid-19 graças a rigorosas
medidas de confinamento.
Essas restrições foram levan-
tadas à medida que o número
de infecções diminuiu, e a maio-
ria dos casos relatados nos últi-


mos meses era de cidadãos que
viviam fora do país e que foram
submetidos a testes ao voltar pa-
ra casa durante a pandemia.
A China registrou oficialmen-
te 4.634 mortes por covid-19,
que já causou mais de 425 mil
óbitos em todo o mundo.
Os 11 bairros residenciais do
sul de Pequim foram confina-
dos após o registro de novos ca-
sos de coronavírus vinculados
ao mercado local de carne e pei-
xe, segundo fontes municipais.
Até agora, sete casos foram re-
lacionados ao mercado de Xin-
fadi, seis deles confirmados on-
tem. Nove escolas e jardins de
infância da área também foram
fechados.
Enquanto isso, 45 outros ca-
sos assintomáticos foram detec-
tados após a realização de cerca
de 2 mil testes entre os funcio-
nários do mercado, segundo
uma autoridade da saúde de Pe-
quim, Pang Xinghuo.
O primeiro caso de covid-
em Pequim em dois meses foi
anunciado na quinta-feira –
uma pessoa que havia visitado o

mercado de carne de Xinfadi na
semana passada e não saiu da
cidade.
Entre os seis novos casos
anunciados ontem, três são tra-
balhadores do mercado de Xin-
fadi, um visitante do mercado e

dois funcionários do Centro de
Investigação da Carne, localiza-
do a 7 quilômetros de distância.
Um dos funcionários havia visi-
tado o mercado na semana pas-
sada.
As autoridades fecharam o

mercado, assim como outro de
frutos do mar que um dos pa-
cientes havia visitado, para de-
sinfecção e coleta de amostras
na sexta-feira.
As autoridades do distrito de
Fengtai anunciaram que esta-

vam implementando um “dis-
positivo de guerra” para lidar
com as novas infecções. Na ma-
nhã de ontem, voluntários iam
de porta em porta em vários dis-
tritos de Pequim, perguntando
aos moradores se haviam ido re-
centemente ao mercado de Xin-
fadi. As autoridades também
anunciaram testes em larga es-
cala para quem esteve em “con-
tato próximo” com o mercado
de Xinfadi desde 30 de maio.
Na sexta-feira, as autorida-
des de Pequim adiaram o retor-
no às aulas de alunos das esco-
las primárias da cidade e suspen-
deram todas as atividades es-
portivas. Visitas à capital chine-
sa de grupos de outras provín-
cias foram suspensas ontem.
O diretor do mercado de Xin-
fadi disse ao Beijing News que o
vírus foi detectado em tábuas
usadas para cortar salmão im-
portado. Grandes redes de su-
permercados, como Carrefour,
suspenderam a venda de sal-
mão na sexta-feira em Pequim,
segundo o Beijing Daily.
Ontem, vários restaurantes
em Pequim pararam de ofere-
cer salmão em seus cardápios,
segundo jornalistas da France
Presse. / AFP

A


lém de justiça para
George Floyd, negro
assassinado por um
policial branco em Minnea-
polis, em maio, muitos mani-
festantes foram às ruas de vá-
rias cidades americanas pe-
dir o corte de financiamento
dos departamentos de polí-
cia. Outros, mais radicais, exi-
gem o desmantelamento to-
tal das corporações, cada vez
mais identificadas como trin-
cheiras do racismo nos EUA.
Há quem diga que é uma
ideia utópica. “Eu não apoio
a abolição total da polícia”,
afirmou Jacob Frey, prefeito
democrata de Minneapolis,
antes de ser expulso de uma
passeata que defendia o fim
da corporação, na semana
passada. Outros respondem
que o objetivo é apenas des-
viar recursos da polícia para
programas sociais, mudar a
mentalidade repressiva e fo-
car na prevenção.
Enquanto as definições so-
bre o papel da polícia se per-
dem no calor dos protestos,
poucos se lembram do exem-
plo de Camden, cidade de 75
mil habitantes no Estado de
New Jersey, separada da Fila-
délfia pelo Rio Delaware. Em
2012, ela tinha mais de 170

pontos abertos de venda de dro-
gas e era considerada uma das
mais miseráveis e violentas dos
EUA, com 1 homicídio para cada
1.350 habitantes – uma taxa do
nível de Caracas, na Venezuela.
O maior problema de Cam-
den era o grau de degeneração
do departamento de polícia. Do-
cumentos revelaram que plan-
tar provas, inventar relatórios e
mentir nos tribunais era rotina
dos policiais – o escândalo obri-
gou a Justiça a libertar 88 deten-
tos que haviam sido condena-
dos por investigadores da cida-
de. A conclusão foi que era tan-
ta corrupção que não havia co-
mo reformar a corporação.
Em 2013, mais de 250 poli-
ciais foram demitidos e um no-
vo departamento foi criado. O
treinamento dos novos agentes
inclui restrições ao uso de ar-
mas de fogo e obrigatoriedade
de levar um ferido para os hospi-
tais – antes, eles tinham de cha-
mar uma ambulância.
Scott Thomson, que chefiou
o departamento de 2013 a 2019,
explicou ao New York Times que
uma das novidades foi o respei-
to pelo cidadão. Um exemplo,
segundo ele, era a reunião pe-
riódica que tinha com os poli-
ciais para saber quem emitiu
mais multas. Se houvesse mui-

tas, era sinal de que o espírito da
mudança não havia sido enten-
dido. “Passar uma multa de
US$ 250 para quem ganha US$ 1
mil por mês pode ter um impac-

to grande na vida da pessoa.
Multar uma comunidade pobre
não torna ela mais forte”, disse
Thomson, que passou a reco-
mendar que os policiais dessem
advertências.
A nova abordagem deu resul-
tados. Nos últimos sete anos, os
crimes violentos caíram 42% e a
violência em geral foi reduzida
pela metade. Hoje, o novo depar-
tamento de polícia emprega
400 agentes, muitos dos quais
organizam churrascos comuni-
tários, em uma tentativa de cons-
truir laços com a população.
Nos EUA, há mais exemplos
de cidades que desmantela-
ram a polícia, mas por outros
motivos. Em 2018, Garden

City, no Missouri, demitiu to-
dos os policiais porque a prefei-
tura estava quebrada. O mes-
mo aconteceu em janeiro, na
cidade de Deposit, Estado de
Nova York. Em Rio Vista, na
Califórnia, os policiais arruma-
ram empregos melhores e o de-
partamento foi dissolvido no
início do ano – nos três casos, a
segurança ficou a cargo dos res-
pectivos condados.
Na semana passada, Minnea-
polis deu o primeiro passo para
servir de modelo. Lisa Bender,
presidente do Conselho Muni-
cipal da cidade – que atua na Câ-
mara de Vereadores –, afirmou
que o órgão havia “encerrado”
sua relação com o departamen-

to de polícia. “O esforço para
adotar reformas fracassou”,
disse Bender. Com 9 votos de
um total de 13 – o que impede
o veto do prefeito –, os conse-
lheiros aprovaram o fim da
corporação e prometeram
criar um novo sistema de se-
gurança pública.
“Estamos mais seguros
sem as patrulhas armadas do
Estado caçando negros na
rua”, disse Kandace Montgo-
mery, diretora do Black Vi-
sions Collective, ONG que de-
fende a igualdade racial. O de-
safio, no entanto, é replicar o
modelo de Camden em uma
cidade de meio milhão de ha-
bitantes. / AFP, NYT e THE W. POST

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LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Pequim isola 11 bairros após foco de novo coronavírus


l Mudança

Segurança

Líderes militares dão apoio a
protestos que remetem a
séculos de injustiça aos negros

NG HAN GUAN/AP

Dezenas de pessoas


testaram positivo e


vários casos foram


vinculados a mercado


de carne e peixes


Temor. Moradores da capital ampliam precauções após surgimento de novos casos

SCOTT HEINS/AFP - 10/6/

“O esforço para adotar
reformas fracassou”
Lisa Bender
PRESIDENTE DO CONSELHO MUNICIPAL
DE MINNEAPOLIS

“Estamos mais seguros sem
as patrulhas armadas do
Estado caçando negros”
Kandace Montgomery
ATIVISTA PELA IGUALDADE RACIAL

Revolta. Manifestante pede o fim do financiamento da polícia durante protesto antirracismo em Nova York

A CIDADE


DOS EUA QUE


ACABOU COM


A POLÍCIA


Especialistas questionam se modelo de Camden,
em New Jersey, pode ser usado em Minneapolis

O poder do sentimento

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