O Estado de São Paulo (2020-06-14)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 A


Gonçalo Junior

Q


uatro famílias mo-
ram no mesmo nú-
mero da Rua Capri-
cho Rústico, no
Itaim Paulista, na zo-
na leste de São Pau-
lo. Cada porta da ca-
sa retangular se abre para cômodos
pequenos que acumulam funções –
o quarto também é sala, por exem-
plo. Falta ventilação. No fundo do
terreno, do outro lado do muro im-
provisado por telhas de amianto e
uma porta de madeira, avançam as
águas cinza-chumbo do córrego La-
geado, que transborda na época das
chuvas e invade o quintal. Nessas
quatro famílias, cinco pessoas tive-
ram covid-19.
Famílias numerosas, com paren-
tes que formam suas próprias famí-
lias, mas permanecem no mesmo es-
paço, além de vizinhos que dividem
o terreno, estão adoecendo juntos
quando um morador pega o vírus.
Em casas pequenas, com cômodos
minúsculos, existe maior dificulda-
de de isolamento. Simplesmente
não há espaço para se resguardar.
A dona de casa Eliana da Silva Sou-
za Silveira, moradora da casa que aco-
lhe quatro famílias, sentiu febre, do-
res no corpo, perda do olfato e do pa-
ladar. O agente comunitário de saúde
recomendou isolamento, boa alimen-
tação, hidratação e paracetamol. Esta-
va no grupo de assintomáticos ou sin-
tomáticos leves. Hoje, ela está bem –
o Estadão a encontrou varrendo a
calçada na manhã quente de uma
quinta-feira. “Mas foi impossível se
isolar dentro de casa”, diz. Os outros
quatro moradores pegaram a doença

e conseguiram superá-la sem interna-
ção. Antes que cause estranhamento o
fato de ninguém ter ido ao médico, vale
um dado estatístico. Pesquisa da organi-
zação Viva Rio com cerca de mil famí-
lias mostrou que 75,5% das pessoas com
sintomas nas comunidades cariocas
não procuraram atendimento médico.
Distante nove minutos da casa de
Eliana, agora no bairro Jardim Senice,
a família do aposentado Manoel Fran-
cisco também viveu uma luta contra o
coronavírus. A mulher dele, Cleusa, foi
a um hospital na Mooca assim que teve
os sintomas. Como é quase impossível
se isolar dentro de casa, Francisco se
contaminou. A sobrinha, Railayne Sil-
va, que mora no mesmo endereço, mas
na casa debaixo, pegou. Com medica-
ção, todos se recuperaram.
De acordo com o último boletim epi-
demiológico da Prefeitura de São Pau-
lo, a região do Itaim Paulista, onde mo-
ram Eliana e Francisco, registra 439 ca-
sos de covid-19. É a segunda maior inci-
dência da zona leste, atrás de Sapopem-
ba (559). O cenário se repete em rela-
ção aos óbitos: a região do Itaim regis-
trou 122 mortes e Sapopemba, 205.
Do outro lado da cidade, em Paraisó-
polis, na zona sul, várias famílias adoe-
cem juntas. A mãe de Jessica não conse-
guiu escapar. Após passar por três hos-
pitais, Zita Pereira Silva morreu no dia
23 de abril. Jessica também se contami-
nou. Para evitar a transmissão na famí-
lia, decidiu se isolar. A confeiteira de
27 anos foi uma das primeiras a ocupar
uma das escolas transformadas em
centro de acolhimento pela União dos
Moradores e Comerciantes de Paraisó-
polis. “Fiquei 15 dias e mais ninguém se
contaminou em casa.”
Karina Oliveira Leitão, professora
da Faculdade de Arquitetura e Urbanis-

mo da Universidade de São Paulo
(USP), diz que não é a forma de morar
que contribui para a disseminação da
doença. “O problema é o vírus, não a
forma de morar das classes populares.
O risco de disseminação nas casas bra-
sileiras é o mesmo”, diz a pesquisadora
do Laboratório de Habitação e Assen-
tamentos Humanos da FAU. “Nas ca-
sas mais exíguas é difícil ter espaço pa-
ra resguardar pessoas infectadas.”
A especialista afirma que é preciso

cuidado para não estigmatizar a mora-
dia dos trabalhadores. “Essas formas
de moradia são comuns nas metrópo-
les e advém da falta de atendimento do
Estado e das adversidades para acesso
ao mercado de habitação, ao solo urba-
no e a uma remuneração para arcar
com os custos de moradia”, diz.

Além da moradia. As dificuldades de
moradia vão além da estreiteza dos cô-
modos, da pouca ventilação e da falta
de luz do dia. As vielas e becos de comu-
nidades como Jaraguá, Torresmo, Te-
resa, Nazaré e Senise, de volta ao Itaim
Paulista, são como um novelo: a gente
puxa um fio e vai descortinando carên-
cias que estão todas juntas e mistura-
das. Na beira do córrego Lageado, o
pedreiro Josenildo Gomes da Silva te-
ve de usar o auxílio emergencial do go-
verno de R$ 600 para comprar cimen-
to, pedra e areia. Tinha de reconstruir

a parede de sua casa que caiu após
chuva. Mora ao lado – ao lado mes-
mo – do córrego que recebe esgoto
de casas.
“Para essas famílias não sobra di-
nheiro para o álcool em gel ou sabo-
nete. Na maioria das vezes, não so-
bra nem para o arroz e o feijão”, diz a
líder comunitária Francisca Cleuda
Soares da Silva, da Associação de
Moradores do Jardim Jaraguá.
As 1,2 mil famílias da região depen-
dem das doações. O movimento foi
iniciado pelos professores da rede
municipal. Coletivos como Ação en-
tre Amigos, Samba Jorge e Voz Peri-
férica arrecadaram cerca de 600 ces-
tas básicas em maio. O ideal seria 1,
mil para atender todos.
As cestas são destinadas às famí-
lias sem auxílio de governos. Uma
parceria com o Serviço Social da In-
dústria (Sesi) permite a doação de
cem marmitas por dia. “Mesmo
com fome, as pessoas têm consciên-
cia. Muitas que pegaram a cesta fa-
lam que não precisam delas e indi-
cam outras famílias que não recebe-
ram nada”, diz a professora Melissa
Micheletto, da Ação entre Amigos.
Francisca cadastra as famílias pa-
ra as doações, orienta sobre medi-
das de prevenção, cobra a lição de
casa das crianças que estão zanzan-
do pelas ruas e faz o meio-campo
com a subprefeitura. Ao lado do ma-
rido, Luiz Franco da Silva, é uma
gestora informal e voluntária. A lí-
der é cumprimentada a cada esqui-
na. “É uma luta diária que ficou
mais difícil durante a pandemia,
mas estamos conseguindo.”

Comida e higiene. Procurada, a
Prefeitura de São Paulo afirmou
que vem realizando diversas ações
para auxiliar as populações vulne-
ráveis. Em uma delas, foram distri-
buídas mais de 364 mil cestas bási-
cas de alimentos e 84 mil kits de
higiene e limpeza. A Secretaria Mu-
nicipal de Habitação doou 100 mil
máscaras e promoveu em maio as
assinaturas dos contratos e o iní-
cio das mudanças do Conjunto Ha-
bitacional Augusto Amaral, na zo-
na norte. Foram 300 unidades no
primeiro empreendimento entre-
gue na pandemia.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l Ações oficiais

GRUPO CRIA MANUAL


COM PROCEDIMENTOS


Hospital de campanha de Heliópolis enfrenta dificuldade para comprar insumos. Pág. A14}

l Adensamento
Em São Paulo, cerca de 11,6 milhões de pessoas
moram em locais com mais de três pessoas por
dormitório, segundo dados do IBGE de 2018.

TABA BENEDICTO / ESTADÃO

Aperto. Eliana Silveira mora em uma casa que acomoda quatro famílias

TABA BENEDICTO / ESTADÃO

A Secretaria Municipal da Saúde
direcionou agentes comunitários
para ações de combate à covid-19,
promovendo a vacinação contra
influenza, utilizando carros de
som e cartazes para informar as
ações, e monitorando os casos.

**Reportagem especial***


Desafios na pandemia


Após a chuva. O pedreiro Josenildo Gomes da Silva precisou usar seu auxílio emergencial de R$ 600 com cimento, pedra e areia para reconstruir a parede de sua casa que ruiu

NA PERIFERIA, FAMÍLIAS


ADOECEM JUNTAS


Grandes grupos dividem muitas vezes um único cômodo, dificultando o isolamento


Metrópole


V


ários estudos acadêmicos
propõem soluções para isola-
mento em casas exíguas.
Uma delas é do Grupo de Estudos
em Arquitetura e Engenharia Hospi-
talar (GEA-HOSP) da Faculdade de
Arquitetura da Universidade Fede-

ral da Bahia (Ufba). Com base nas reco-
mendações do Ministério da Saúde e
da Organização Mundial da Saúde
(OMS), o grupo criou um manual com
procedimentos e rotinas em casa para
o controle de contágio da covid-19.
“Uma das características da covid-

é a alta transmissibilidade, por contato
e pelo ar, por meio de gotículas expeli-
das até pela fala, por pessoas assinto-
máticas. A proteção contra a infecção,
portanto, é um desafio, mesmo para
quem possui habitação em boas condi-
ções”, diz Antônio Pedro de Carvalho,
coordenador do grupo de pesquisa.
Uma das orientações é a criação de
áreas de transição, barreiras entre a
rua, ambiente potencialmente conta-
minado, e a casa, área que precisa ser
preservada. A área de transição deve

estar bem definida, até com fita adesi-
va no piso ou mobiliário. Um móvel de
apoio pode servir para higienização e
bloqueio parcial do acesso. Ali, podem
estar uma caixa para sapatos, outra pa-
ra os objetos pessoais (chaves e bolsas,
por exemplo) e apoio para álcool em
gel. Depois desses procedimentos, a
pessoa deve se dirigir a um sanitário e
tomar banho, sem tocar em nada.
Carvalho sugere que um espaço iso-
lado seja destinado quando houver um
indivíduo infectado. O ideal seria um

quarto, com janelas sempre abertas
e portas fechadas. Se não for possí-
vel, deve-se demarcar um espaço de
isolamento, com área de transição
de um metro, separação de utensí-
lios e roupas e uso de máscara.
Seria importante destinar um ba-
nheiro para uso exclusivo do pacien-
te com covid-19. Nos casos de ba-
nheiro compartilhado, os cuidados
com a limpeza do espaço são funda-
mentais após a utilização pela pes-
soa com a enfermidade. / G.J.
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