O Estado de São Paulo (2020-06-14)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 A


UGO


GIORGETTI


Esportes


Ciro Campos


Entre negociações para redu-
zir salário, busca por linhas
de crédito e renegociação de
dívidas, os clubes brasileiros
de futebol pouco a pouco já
começam a se precaver para
um dos maiores impactos fi-
nanceiros de sua história. Se-
gundo estudo da consultoria
Ernst & Young obtido pelo
‘Estadão’, a paralisação do ca-
lendário causada pela pande-
mia deve fazer com que os ti-
mes nacionais tenham retra-
ção de quase R$ 2 bilhões em
comparação a 2019 e voltem
ao patamar financeiro simi-
lar ao de quatro anos atrás.

A provável disputa de jogos
com os portões fechados até o
fim do ano é a maior responsá-
vel pelo impacto. O estudo da
consultoria tenta medir o abalo
financeiro no futebol do País
dentro de dois cenários. No
mais otimista, a retração seria
de R$ 1,3 bilhão enquanto que
na pior estimativa, a cifra seria
de quase R$ 2 bilhões, algo
próximo de R$ 1,9 bilhão.
Os responsáveis pelo traba-
lho ressaltam que toda uma ca-
deia de receitas ligadas ao fute-
bol sofrerá duros golpes. O fato
de as partidas não terem públi-
co deve atingir os clubes não só
na bilheteria, como também na
diminuição de 40% do quadro
dos participantes nos progra-
mas de sócio-torcedor. Isso im-
plica diretamente na arrecada-
ção. Existe também uma previ-
são da queda de recurso vindo
do pay-per-view. A estimativa é
de que até 40% dos assinantes
de TV cancelem seus pacotes.
“Poucos clubes vão ter condi-
ções financeiras de se apresen-
tar de forma digna. Muitos te-
rão problemas. Na prática, a
pandemia não mudou nada,
mas acelerou processos. Quem
já estava mal, piorou rapida-
mente”, disse ao Estadão um
dos responsáveis pelo estudo,
Alexandre Rangel. “As transfe-
rências de jogadores também
vão ter desvalorização. Alguns
clubes como o Athletico-PR e o


Flamengo fizeram vendas na ja-
nela de janeiro e, por isso, se de-
ram bem. Quem apostou que
venderia atletas no meio do
ano, ficou em situação difícil.”
Desde a parada do calendá-
rio, em março, os clubes come-

çaram a se movimentar para es-
tancar o prejuízo. Das Séries A e
B do Brasileirão, somente o Red
Bull Bragantino não fez redu-
ções salariais nem demitiu fun-
cionários. Outros precisaram
cortar da própria carne e contar
com o auxílio da linha de crédi-
to de R$ 100 milhões oferecida
pela CBF na semana passada.
O panorama se torna preocu-
pante porque não há previsões
do recebimento de grandes re-
ceitas neste ano, principalmen-
te verbas oriundas de premia-
ções. A CBF costuma distribuir
aos campeões da Copa do Brasil
e Brasileirão mais de R$ 100 mi-
lhões. No entanto, como essas
disputas devem se prolongar
até o início de 2021, os clubes
terão de fechar a temporada

sem os recursos para bancar
despesas pesadas, como o 13.º.
“Até vejo que para alguns clu-
bes, talvez seja melhor que o
campeonato não retorne, por-
que pode ser até mais prejudi-
cial ter de jogar em estádio va-
zio e sem recursos”, disse outro
responsável pelo estudo, Pedro
Daniel. De acordo com um le-
vantamento da própria Ernst &
Young, o futebol é responsável
no Brasil por 155 mil empregos.
Muitos desses postos se encon-
tram ameaçados pela crise.

Caminhos. Enquanto o futebol
não tem data para retornar, os
dirigentes de times têm discuti-
do alternativas para a crise e a
solução mais palpável é o de ace-
lerar mudanças que já estavam

em marcha. Para especialistas
ouvidos pela reportagem, a
transformação em clube-em-
presa, investimento em ações
de marketing e a possibilidade
de renegociação de dívidas do
Profut (Programa de Refinan-
ciamento Fiscal do Futebol Bra-
sileiro) são alguns caminhos.
Para o advogado especializa-
do em direito esportivo Vantuil
Gonçalves Júnior, do escritório
Trengrouse e Gonçalves, em
termos jurídicos os clubes vão
precisar tomar medidas radi-
cais, até por estarem anterior-
mente com números ruins.
Uma das possíveis opções é ava-
liar brecha até para pedir recu-
peração judicial, já que alguns
projetos ligados à vida financei-
ra do clube ainda estão em anda-

mento na Câmara, como é o ca-
so do clube-empresa e da sus-
pensão das parcelas do Profut.
“A pandemia acelerou o pro-
cesso de modernização dos clu-
bes. Será preciso pedir algum ti-
po de ajuda no Legislativo. A si-
tuação exige medidas drásticas.
Vejo até como possível oportu-
nidade para que se consiga fa-
zer acordos de recuperação judi-
cial com credores”, explicou.
Um dos responsáveis da
Ernst & Young, Gustavo Hazan,
considera que é hora para clu-
bes acelerarem mudanças. “A
adoção do fair-play financeiro,
da profissionalização e projeto
do clube-empresa podem ser
impulsos para dar segurança ao
investimento externo. Algo di-
ferente precisará ser feito.”

Os estádios brasileiros estão
em condição ainda mais desola-
dora na pandemia. O problema
tirou as duas principais fontes
de renda desses locais: os jogos
de futebol e os grandes shows.
Seus gestores admitem a corri-
da por novas opções de uso.
Um estudo da consultoria


BDO prevê que os estádios dos
20 times que disputaram a Série
A do Brasileiro em 2019 tenham
perda de receita bruta de até R$
79 milhões. Alguns estádio obri-
gam hoje hospitais de campa-
nha, casos do Pacaembu e do
Maracanã, por exemplo. As are-
nas multiúso do Brasil construí-

das nos últimos anos e voltadas
à expansão desse tipo de negó-
cio gerada pelas obras da Copa
de 2014 têm sofrido. “Se o time
consegue retomar o calendário
e ter receitas com transmissão
e patrocínio, uma arena não
consegue faturar porque depen-
de do público”, explica Carlos
Aragaki, coordenador da Câma-
ra de Contadores do Instituto
dos Auditores Independentes
do Brasil (Ibracon) e especialis-
ta em de finanças do futebol.
Na opinião dele, as arenas pre-

cisam de novas formas de negó-
cio e se preparar para uma reto-
mada lenda do setor. “Não signi-
fica que ao fim da pandemia, o
torcedor vai voltar de forma ins-
tantânea. É possível que sem
uma vacina para o novo corona-
vírus, o público continue a evi-
tar aglomerações e não retorne
a estádio, show, cinema, teatro
e outras opções”, comenta.
O estádio brasileiro que mais
recebe shows, o Allianz Parque,
encontrou como alternativa o
cinema drive-in. Neste mês, o

estádio do Palmeiras vai liberar
campo para receber 300 carros.
Dos veículos, as pessoas assisti-
rão a filmes, como na década de


  1. “A gente nunca se preocu-
    pou com aglomeração, mas te-
    mos de pensar nisso. Vamos
    criar um jeito para o público ter
    excelente experiência, mas de
    dentro dos seus carros”, disse o
    diretor de marketing e inova-
    ção da arena, Márcio Flores.
    Além do drive-in, o Allianz re-
    negocia contratos de 96 clien-
    tes dos 160 camarotes. O objeti-


vo é ter novos acordos seja para
extensão do vínculo ou descon-
to para não perder os parceiros.
A Fonte Nova vive situação
igual. “A gente vem trabalhan-
do na captação de eventos que
devem ocorrer em 2022/23”, dis-
se ao Estadão o presidente do
estádio, Dênio Cidreira. A admi-
nistração da Arena Castelão,
em Fortaleza, admite que no
momento tem cortado custos e
a Arena das Dunas, em Natal,
estima que a crise provocou
queda de 80% nas receitas. C. C.

BARCELONA VOLTA COM
GOLEADA PELO ESPANHOL

E-MAIL: [email protected]

FUTURO

Finanças dos clubes. Estudo a que o Estadão teve acesso aponta encolhimento do futebol brasileiro e quatro anos de retrocesso


Arenas buscam opções


para se reinventar


]Líder antes da paralisação do Cam-
peonato Espanhol, o Barcelona retor-
nou o torneio com uma goleada so-
bre o Mallorca por 4 a 0, ontem, no

estádio Iberostar. Os gols foram ano-
tados por Vidal e Braithwaite, no pri-
meiro tempo, e Alba e Messi, no se-
gundo. O time catalão chegou aos 61
pontos e abriu cinco do Real Madrid,
que entra em campo hoje para enfren-
tar o Eibar, no Santiago Bernabéu.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Morumbi. Alguns clubes, como o São Paulo, vão perder muito com arrecadação, já que não existe previsão para o retorno das torcidas aos estádios

ALBERT GEA / REUTERS

Q


uando o Campeonato Brasi-
leiro surgiu em sua primeira
edição de 1.971, ele já tinha
se esboçado durante vários anos an-
teriores. Primeiro o Rio- São Paulo,
depois alguns torneios que acres-
centavam clubes de outros Estados,
até que se estabeleceram mais ou
menos 12 times se enfrentado e sur-
gindo uma espécie de campeão bra-
sileiro. Alguns clubes acrescentam
até hoje, referendados pela CBF, a
seus títulos de campeão brasileiro,
títulos obtidos antes de 71, um ates-
tado de que já havia torneios brasi-
leiros pelo menos em princípio.

Na verdade, o que havia lá era um
certo Brasil, do sudeste e do sul. O go-
verno da ditadura civil militar de 64
sempre procurou submeter atividades
que julgava importantes ao centralis-
mo do poder tão caro, aliás, à qualquer
ditadura. Via com bons olhos a sempre
crescente adesão de novos clubes a es-
ses torneios pré campeonatos brasilei-
ros. Finalmente decidiu entrar em
campo de uma vez e foi instituído o
torneio nacional envolvendo todas ou
quase todas as regiões do Brasil.
À maneira ditatorial, o torneio foi
instalado sem levar em conta a desse-
melhança das regiões e as característi-

cas de cada uma delas. Decretado o
campeonato entrou-se nele sem mais
discussões. O início foi caótico com
um número alto de times, os mais dís-
pares possíveis, como ocorre hoje com
a Copa do Brasil, herdeira mais visível
do Brasileirão dos primeiros tempos.
O governo da ditadura tinha, porém,
muitos anos pela frente para poder,
aos poucos, ir aparando arestas até
que, quando a ditadura termina, havia
um campeonato brasileiro definitiva-
mente instalado, com problemas cá e
lá, mas já solidificado na imaginação
dos torcedores. O controle e o centra-
lismo de poder que a ditadura preten-
dia desde o início foi plenamente bem
sucedido e aceito por todos.
Passamos a aceitar um campeonato
brasileiro sem levar em conta que ele
nunca foi exatamente um campeonato
brasileiro. É só olhar os títulos, e quem
os conquistou. São paulistas, cariocas,
gaúchos, mineiros e depois disso para
um clube aqui outro ali, muito rara-
mente. Até hoje é mais ou menos as-

sim. Há progressos? Sim, há, mas ainda
longe de ser uma constante. Pois bem,
esse ilusório Brasil que todos aceita-
mos, naturalizamos e nem falamos
mais sobre ele, está ameaçado pela pan-
demia. A pandemia é um fenômeno
que expõe o que realmente somos.
Não temos nenhuma unidade, não
somos iguais em nada. Cada Estado é,
não só abissalmente diferente dos ou-
tros, como multiplicam-se as diferen-

ças no interior deles mesmos. Diferen-
ças entre cidades, no interior das cida-
des, entre bairros, no interior dos bair-
ros, entre ruas. É um desfilar de com-
pleta e total desigualdade. É também
uma exposição de certos mitos.
Por exemplo a pujança de São Paulo.
Epicentro da epidemia, escora-se no
número de habitantes para justificar

seus numerosos casos. Esse argu-
mento, perde um pouco de força
quando se lembra que a China tem
inúmeras cidades com tanto ou
mais população do que São Paulo e
hoje não há praticamente nenhum
caso mais de covid-19 no país. Por-
tanto, a razão pode ser outra: escan-
dalosa desigualdade social que nada
tem a ver com o número de habitan-
tes. Tem a ver com anos de atraso,
desprezo, indiferença, incúria e
péssima administração publica.
Num país assim é possível ainda
pensar e organizar um campeonato
brasileiro? Creio que não podemos
organizar sequer uma disputa de ti-
mes varzeanos de bairros, pois par-
te de um bairro pode estar fora da
quarentena e outra parte não. Seria
difícil ainda reorganizar o Paulista.
O time de Ribeirão Preto, hoje, esta-
ria fora, já que a cidade regrediu pa-
ra um estágio mais perigoso da doen-
ça. Ribeirão, cidade rica, próspera,
grande centro científico. Pois é...

Alexandre Rangel
Profissional da Ernst & Young

‘Poucos clubes vão
ter condições de se
apresentar de forma
digna. A pandemia
acelerou processos’

DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO - 3/12/

Cenário prevê retração de R$ 1,9 bi


A pandemia é um fenômeno
que expõe o que realmente o
Brasil é: diferente em tudo

Um país unido?

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