O Estado de São Paulo (2020-06-14)

(Antfer) #1

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H10 Especial DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


DE SORRISOS


DELIVERY


Distantes dos pacientes em razão da pandemia de covid-19, Doutores


da Alegria levam a interação com as crianças para o mundo virtual


C


ursei uma escola america-
na, onde todos os dias colo-
cávamos uma mão sobre o
lado esquerdo do peito e declará-
vamos nossa lealdade à bandeira
dos Estados Unidos da América e
à republica que ela representava,
com liberdade e justiça para to-
dos. Para ser completa, faltava à
declaração um adendo de duas pa-
lavras: “inclusive negros”. No Sul
dos Estados Unidos, negros eram
não só discriminados e proibidos
de andar nos bancos da frente dos

ônibus com os brancos e frequentar
os mesmos lugares públicos, mas
muitas vezes caçados e assassinados
por esporte. Nos estados do Norte
também havia segregação, inclusive
nas escolas onde todos os dias decli-
návamos nossa devoção à liberdade
e à justiça, mas aí o crime maior era a
hipocrisia, não o linchamento.
Os Estados Unidos passaram boa
parte da sua história convencidos de
que eram uma criação do iluminis-
mo europeu, um produto das melho-
res intenções da Europa. Desde sua

origem como nação existe esta cons-
ciência da América como uma expe-
riência social, uma depuração dos
ideais democráticos que o velho e
viciado mundo não deixava crescer.
A Constituição americana é o primei-
ro contrato explícito para uma socie-
dade de iguais na história, e seus sig-
natários – leitores, muitos deles, de
Locke, Montesquieu, etc. – sabiam
que estavam inaugurando uma repú-
blica inédita nas suas pretensões. To-
dos os outros mitos que têm forma-
do a auto-estima americana desde
então – o da terra da oportunidade, o
do cadinho de raças, o do altruísmo
na conquista e tolerância na vitória –
partem destas primeira ideia da
América como um novo começo,

uma Europa regenerada, salva dos
pecados da história. Na hipocrisia
da declaração repetida de lealdade
ao que não existe esta ilusão sobrevi-
ve.
Thomas Jefferson e os outros pais
da república eram aristocratas ru-
rais e a maioria tinha escravos. Os
negros devem sua libertação à luta
econômica entre o sul agrícola, o
norte em vias de industrialização e o
oeste pastoril, embora na história
sentimental do país o fim da escrava-
tura seja atribuída cem por cento
aos bons sentimentos. Isto quer di-
zer que desde o momento da sua ori-
gem até as guerras judiciais pelos di-
reitos civis nos anos sessenta do sé-
culo XX, a república conviveu, com

algum desconforto mas sem maio-
res prejuízos à sua auto-estima,
com uma raça oprimida em seu
meio, antes e depois da abolição. Di-
ga-se em defesa dos ideais jefferso-
nianos que a igualdade dos negros
foi conseguida na lei – isto é, na teo-
ria da sociedade – antes de chegar,
aos poucos, à sociedade.
A integração tem sido lenta e di-
fícil, como prova o caso George
Floyd e suas repercussões. Não
sei se a declaração de lealdade à
bandeira continua a ser exigida
dos alunos americanos. Mas duvi-
do que a menção de liberdade e
justiça para todos não seja recebi-
da, hoje, com pelo menos alguns
sorrisos irônicos.

Verissimo


Caio Nascimento


Depois de mais de um milhão e
meio de intervenções em hospi-
tais ao longo de três décadas, a
ONG Doutores da Alegria se
reinventou para continuar des-
pertando sorrisos em crianças
durante a quarentena. O grupo
de 72 palhaços, que atua em São
Paulo, Rio e Recife, estreou o De-
livery Besteirológico, uma série
de mais de 40 vídeos curtos fei-
tos em casa e publicados no You-
Tube e grupos do WhatsApp.
As gravações incluem brinca-
deiras e formas lúdicas de expli-
car para os pequenos a impor-
tância de se proteger do novo
coronavírus, lavando as mãos,
usando máscara e passando ál-
cool em gel. Segundo o diretor
artístico Ronaldo Aguiar, que
se transforma no palhaço Dr.
Charlito, essa é uma forma de
continuar garantindo às crian-
ças internadas o acesso à cultu-
ra e ao brincar.
“As brinquedotecas estão fe-
chadas por causa da pandemia
e isso nos preocupa, porque a
humanização ressignifica os
hospitais desde a década de



  1. Esses lugares viraram es-
    paços de brincadeira também”,
    explica ele, que trabalha na
    Doutores de Alegria há 17 anos.
    “Agora, o foco é entreter as
    crianças pela internet para asse-
    gurar a elas o direito à infân-
    cia”, completa.
    A ideia vem surtindo efeito:
    segundo Aguiar, os vídeos já ti-
    veram mais de 59 mil interações
    e 3,5 milhões de visualizações
    desde o início do isolamento.
    Sarah Martins, de 5 anos, é uma
    das que se divertem com as pa-
    lhaçadas. A menina está interna-
    da com leucemia linfóide aguda
    no Instituto de Tratamento do
    Câncer Infantil (Itaci), em São
    Paulo, e não recebe visitas des-
    de abril por ser do grupo de ris-
    co da covid-19, devido à baixa
    imunidade. Assim, uma das for-


mas de ela amenizar a falta da
família e o tédio é rindo com os
Doutores da Alegria.
“Eu vim para cá porque fiquei
com um bichinho no sangue.
Quando recebo coisa para brin-
car, sinto muita felicidade”, diz
a menina. “Ela se diverte. É mui-
to importante que os palhaços
continuem levando felicidade
para as crianças, porque a at-
mosfera é muito pesada. Mes-
mo a distância, eles conse-
guem transmitir calma e paz”,
diz a mãe, Ariane Martins, que
se isola no hospital com a filha
desde o começo da quarentena
para evitar o risco de contágio
pelo coronavírus.
Além do Delivery, os Douto-
res da Alegria começaram há
pouco tempo o projeto piloto
Consultório Besteirológico On-
line, no qual o palhaço faz cha-
madas de vídeo ao vivo para os
pacientes. Fora isso, a ONG es-
tá preparando para este mês a
festa virtual São Joãozinho, im-
provisando em casa barracas
de quermesse para brincadei-
ras juninas online.
“Antes fazíamos isso presen-
cialmente. Agora, vamos nos
reinventar para que a criança-
da, mesmo internada e no meio
da pandemia, não esqueça do

contexto cultural do nosso
País”, explica Ronaldo Aguiar.

Mensagem e cultura. O alto-
astral dos palhaços não é ape-
nas para animar pacientes
diante de um momento difícil.
Por trás de cada artista fanta-

siado existe um cidadão so-
nhador e preocupado em for-
mar uma criança sensível à ar-
te, sem que os problemas de
saúde a impeçam de ter aces-
so à cultura que existe fora
do hospital.
“Quando a criança brinca de

presidente, médico, rei, ela
cria perspectivas futuras e um
leque de possibilidades na vida
dela. A criança em contato
com a arte deixa de ser limita-
da. Ela se projeta para além da
situação que está vivendo. En-
tão é importante que isso che-
gue na área da saúde, assim co-
mo chega nas escolas”, analisa
Aguiar.
Nesse sentido, o diretor ar-
tístico explica que os doutores
atuam exclusivamente em hos-
pitais públicos, com famílias
mais pobres. “Na maioria das
vezes, trabalhamos com pa-
cientes que nunca tiveram
acesso a alimentação e educa-
ção de qualidade, então muda
muito o formato do discurso
da criança na brincadeira. Mui-
tas delas têm o primeiro conta-
to com a arte quando são inter-
nadas no hospital. Então o nos-
so trabalho se faz necessário,
mesmo que a distância.”

LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

l]


Hospital cria


kits para manter


brincadeiras


Difícil


Preparo. Ronaldo Aguiar vira Dr. Charlito nas transmissões

FOTOS VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO

Dr. Charlito. Diretor artístico do grupo, o ator Ronaldo Aguiar, 43 anos, criou cenário divertido em seu apartamento para fazer os números para as crianças


Quem passa hoje pela brinquedo-
teca do Instituto de Tratamento
do Câncer Infantil (Itaci) não en-
contra mais crianças se divertin-
do. A sala, onde eles podiam es-
quecer das dores da quimiotera-
pia, se tornou um lugar silencio-
so, de luzes apagadas. Mas, en-
quanto o isolamento perdurar, is-
so não será um empecilho para
os profissionais da saúde: o calor
dos sorrisos escondidos por trás
das máscaras foi trocado pela em-
patia do olhar.
Como não pode mais frequen-
tar a brinquedoteca, Sarah Mar-
tins, de 5 anos, se contenta em
passar o dia pintando, brincando
de boneca e vendo vídeos no
quarto, onde passa a maior parte
do tempo sob uma maca. As ativi-
dades fazem parte dos kits re-
creativos entregues aos pacien-
tes toda semana pela equipe
médica, a fim de preservar a saú-
de mental das crianças e dos
acompanhantes.
Segundo a terapeuta ocupacio-
nal que integra o projeto, Maria-
na Franco, se não fosse a iniciati-
va, as cerca de 30 crianças inter-
nadas no Itaci não teriam o direi-
to de brincar durante o isolamen-
to. “Organizamos os materiais hi-
gienizados para evitar o risco de
contágio, pensando na questão
lúdica e no desenvolvimento cog-
nitivo delas, de acordo com faixa
etária e questões intelectuais.”
Lucas Padela, de 15 anos, é
um dos que sentem a importân-
cia desse trabalho. Portador do
Transtorno de Déficit de Aten-
ção e Hiperatividade (TDAH),
está internado há oito meses
com linfoma de Burkitt – cân-
cer linfático com forte poder de
propagação pelo corpo – e não
recebe visitas desde o início da
quarentena. “Sinto saudade da
minha mãe, Sandra. Sinto falta
de voltar para casa e ouvir a voz
dela”, diz. Como ela trabalha
em horários fixos, quem fica
com ele é o pai, o autônomo Do-
nizette Voga.
O adolescente teve ainda de
passar semanas sem andar devi-
do a um acesso venoso no pé, fei-
to em decorrência da dificuldade
de encontrar veias no seu braço.
“Os dias estão chatos. Fico aqui
deitado, mas feliz quando tra-
zem brinquedos.” Donizette
também sente os efeitos positi-
vos dos kits. “Ficar trancado no
quarto durante uma guerra con-
tra o câncer é difícil. Mas não nos
intimida. Nosso único medo é
sentir medo. Não temos medo.
Nos apoiamos na fé e no traba-
lho humanizado do hospital para
seguir em frente.”
A psicóloga do Itaci, Juliana
Gonzalez, analisa que cada pa-
ciente lida de uma forma diferen-
te com a pandemia. Aqueles que
são mais sensíveis ao câncer,
emocionalmente falando, ficam
mais angustiados no dia a dia; ou-
tros confundem o isolamento
com abandono. “Depende da vi-
vência de cada um. Tem criança
que sente mais dificuldade de en-
tender o motivo de não poder en-
contrar os parentes.” /C.N.

Atualização: com a recente flexi-
bilização da quarentena, os pacien-
tes entrevistados foram autoriza-
dos, em junho, a passar um fim de
semana em casa para depois volta-
rem ao hospital.

NA WEB
Vídeo. Confira o
trabalho online do
Dr. Charlito

bit.ly/drs-alegria
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