O Estado de São Paulo (2020-06-14)

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A6 Política DOMINGO, 14 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ELIANE


CANTANHÊDE


A


nota conjunta do presidente
Bolsonaro, do vice Mourão e
do ministro da Defesa, gene-
ral Fernando Azevedo e Silva, é uma
clara ameaça e está em sintonia com
o secretário de Governo da Presi-
dência, general Luiz Eduardo Ra-
mos, que disse à revista Veja que é
“ultrajante” falar em golpe militar,
para em seguida ressalvar: “Mas não
estica a corda”. A frase ficou no ar.
Faltou completar: senão...
O que significa “não esticar a cor-
da”? Enquanto a resposta não é cla-
ra, soa como advertência a um meni-
no levado, desobediente: “Ou você

se comporta, ou vai ficar de castigo,
levar uma palmada”. O que nos remete
às ameaças de “ruptura” e de AI-5, já
alardeados por ninguém menos que o
filho do presidente da República, que
orna a parede da sala de jantar com a
imagem de uma metralhadora.
Nos remete também às “consequên-
cias imprevisíveis” citadas pelo gene-
ral Augusto Heleno contra uma deci-
são do STF e encampadas pelo general
Fernando – que é o primeiro militar a
ocupar o Ministério da Defesa e desfi-
lou num helicóptero com Bolsonaro
para saudar manifestações contra o Su-
premo e o Congresso. Outros milita-

res de alta patente prestigiaram atos
assim, como o próprio Ramos, que é da
ativa. Do alto da rampa do Planalto,
mas ele estava lá.
Quanto à nota, Bolsonaro e os dois
militares dizem que as Forças Arma-
das estão sob autoridade suprema do
presidente e não cumprem “ordens ab-
surdas, como a tomada de poder”. E
ressaltam: “Também não aceitam a to-
mada de poder por outro poder da Re-
pública, ao arrepio das leis, ou por con-
ta de julgamentos políticos”. Nova-
mente, faltou: senão...

É preciso especificar, ou decifrar, o
que significa dizer que as FA “não acei-
tam” isso ou aquilo. No caso, a tomada
do poder pelo Executivo (um auto-gol-
pe) ou por um “outro poder”. E vem o
dedo em riste: um outro poder que pos-

sa fazer “julgamentos políticos”. Vale
para o Judiciário, citado literalmente,
já que responsável por julgamentos. E
vale para o Congresso, que faz julga-
mentos legal e legitimamente políti-
cos, como o que sofreu Dilma Rousseff.
Em resumo, portanto, temos que o
presidente, o vice e o ministro da Defe-
sa anunciam ao País que não aceitam
julgamentos do STF, do TSE e do Con-
gresso. Não por que eventualmente
contrariem a Constituição e as leis,
mas os que ameacem suas posições e
interesses. E isso é álcool na fogueira
de manifestações antidemocráticas.
É uma situação delicada, a ser tratada
com maturidade institucional e firme
consciência democrática, num momen-
to em que o Supremo investiga a acusa-
ção do ex-ministro Sérgio Moro de in-
tervenção de Bolsonaro na Polícia Fe-
deral, o TSE analisa oito ações contra a
chapa Bolsonaro-Mourão, STF e CPMI
acumulam dados sobre fake news que
podem chegar ao Planalto e, na presi-
dência da Câmara, pousam 30 pedidos

de impeachment de Bolsonaro.
Com trocas de informação, pedi-
dos de vista daqui e dali e declara-
ções variadas contra impeachment,
as instituições se autodefendem
das ameaças de “ruptura” e acumu-
lam arsenal. O TSE deu sinal verde
para embolar as investigações sobre
fake news num mesmo processo: no
TSE, denúncias de uma máquina de
robôs para disparar mentiras na
campanha de 2018; no STF, a rede
de ataques contra ministros, suas fa-
mílias e a própria instituição.
Quem ameaçou primeiro, porém,
tem armas, arsenal literalmente
mais letal. E é aí que essa guerra se
torna assimétrica e nos arrepia. De
um lado, a democracia, com apoios e
uma resistência difusa, mas atuante,
na sociedade civil. Do outro, as ar-
mas – e não só das FA. Onde Bolsona-
ro quer chegar? Até onde as nossas
Forças Armadas se sujeitam a ir? E
qual a força da munição do Supremo,
do Congresso e do TSE para resistir?

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @ECANTANHEDE
ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E
SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Tânia Monteiro / BRASÍLIA


Na portaria do Palácio do Pla-
nalto, o presidente Jair Bolso-
naro prometeu, na última se-
gunda-feira, espaço na agen-
da do Ministério da Saúde a
uma mulher que anunciava a
cura da covid-19 à base de
alho cru. O número de mor-
tos pela pandemia se aproxi-
mava dos 40 mil. Das diretri-
zes do governo na área às au-
diências do dia a dia da pasta,
entre piadas e canetadas, Bol-
sonaro passou a acumular, na
prática, a função de ministro.
Desde o início do avanço da
doença, dois titulares deixa-
ram o cargo por não cumpri-
rem suas ordens contra o iso-
lamento social e a defesa do
uso da cloroquina no trata-
mento dos pacientes, subs-
tância sem comprovação
científica, e um terceiro virou
pária na comunidade científi-
ca ao tirar do site oficial plani-
lhas de vítimas.

O ortopedista Luiz Henri-
que Mandetta foi afastado do
comando do ministério por de-
fender o isolamento social e re-
jeitar o uso da substância pro-
posta por Bolsonaro. O substitu-
to, o oncologista Nelson Teich,
ficou apenas um mês na cadeira
por manter o discurso de Man-
detta. Já o atual ministro interi-
no, general Eduardo Pazuello,
não tem experiência no setor.
Mas justamente ele era do “ban-
co de talentos” do Exército,
área em que Bolsonaro sempre
recorre quando precisa de um
“solucionador de problemas” e
“gestor”, que na linguagem da
caserna também podem signifi-
car “cumpridor de ordens”.
Ao executar tarefas determi-
nadas pelo Planalto, que seus
antecessores se recusaram, Pa-
zuello bateu de frente com seg-
mentos da saúde e enfrenta
críticas por atrasar e impedir a
divulgação dos dados da covid-
19 e mudar a forma de contabi-
lizar as vítimas da pandemia,
como queria Bolsonaro. A me-
dida antidemocrática, conside-
rada um crime de responsabili-
dade por juristas, levou empre-
sas jornalísticas, incluindo o
Estadão , a se unirem para dar
transparência às informações
de contaminados e mortos.
A “missão” de Pazuello de
acatar determinações que vão
contra autoridades internacio-
nais da saúde é uma contradi-
ção com base num episódio re-
cente. No mês passado, quando
o ministro Celso de Mello, do
Supremo Tribunal Federal, en-
caminhou à Procuradoria-Geral
da República pedido de parti-
dos para recolher o celular de
Bolsonaro, no âmbito das inves-
tigações de possível interven-
ção do presidente na Polícia Fe-
deral, militares do governo pro-
pagaram uma máxima dos quar-


téis: “ordem absurda não se
cumpre”. No caso da pandemia,
as ordens de Bolsonaro não são
consideradas diferentes disso.
“Mudar metodologia? Para
que isso, se as secretarias esta-
duais não mudaram e continua-
rão a usar a metodologia ante-
rior?”, questionou o ex-minis-
tro da Saúde do governo Dilma
Rousseff, senador Marcelo Cas-
tro (MDB-PI). “Isso cria instabi-
lidade, insegurança na popula-
ção que não acredita mais nos
números do Ministério da Saú-
de e só aumenta a desconfiança
com a falta de transparência.”
Apesar de o ministro interi-
no, que é tratado pelo presi-
dente como efetivo, ter passa-
do sem traumas por uma saba-
tina de quatro horas no Con-
gresso, na semana passada –
para explicar a nova metodolo-
gia –, a conta de sua atuação na
Saúde já chegou às Forças Ar-
madas. Desde o fim da ditadu-
ra, os militares construíram
uma imagem de técnicos que
atuam com números. Ele aca-
bou com a transparência da di-
vulgação do número diário de
mortos na pandemia.
O ex-ministro da Secretaria
de Governo, general Santos
Cruz, afirmou que o governo
mudou a metodologia sem fa-
zer consultas prévias à comuni-
dade científica e explicar a to-
dos o motivo. “Se quer mudar
por questões técnicas, sem pro-
blemas. Mas tem de avisar an-
tes. Isso é regra básica. Pode
ser que o novo método seja
bom. Mas, o fato é que primei-
ro tem de informar e explicar
a metodologia para a comu-
nidade médica e científi-
ca e só depois mu-
dar”, disse ao Esta-
dão. “Não é pro-
blema se a me-

todologia está certa ou errada.
É que, se inverte a ordem, você
gera confusão e uma confusão
dessa não é boa para o gover-
no, nem para o Ministério,
nem para as Forças Armadas, e
muito menos para a popula-
ção, que precisa ter confiança
na informação”, ressaltou.
Santos Cruz avalia que a
“confusão” e as “desconfian-
ças” ficam ainda maior quando
toda a questão está politizada
e autoridades vinculam uma
decisão de governo de divulga-
ção dos dados ao horário de
exibição de um jornal televisi-
vo. “Isso não tem sentido, não
tem cabimento. A maneira co-
mo foi feita gera desconfiança
e descrédito”, criticou. “O as-
sunto já está extremamente po-
litizado. O medicamento foi
politizado, o vírus foi politiza-
do. Quando se tem excesso de
politização e se faz uma altera-
ção dessas, você dá margem a
tudo que é especulação.”
A confusão a que Santos
Cruz se refere é sobre a presen-
ça de militares da ativa no go-
verno porque, naturalmente,
acaba-se “confundindo o pos-
to do ministro ( que é general da
ativa ) com assuntos de gover-
no”. Um general da ativa ouvi-
do pela reportagem, na condi-

ção de anonimato, lembrou
que o general Pazuello não foi
para o Ministério da Saúde in-
dicado pelo Exército ou para
cumprir missão militar. Foi pa-
ra lá, escolhido pelo presidente
da República, pelo seu perfil de

“gestor eficiente”, para tentar
destravar a logística da pasta.

Militarização. Oficial da ativa,
Pazuello também levou para o
setor a conta de ter militariza-
do a Saúde. São 20 oficiais que
atuam em sua assessoria, a
maior parte também da ativa.
Carimbou, assim, a acusação da
oposição de que ele é o general
que transformou o Ministério
da Saúde num quartel.
Quando tentou emplacar um
civil, o amigo Carlos Wizard,
viu Bolsonaro mandar seu siste-
ma de informações paralelo in-
vestigar as relações do empresá-
rio com o governador de São
Paulo, João Doria (PSDB), seu
inimigo. Depois disso, Wizard
desistiu do convite.
Antes de chegar à pasta da
Saúde, Pazuello comandava a
12ª Região Militar, em Manaus.
Da turma de 1984 da Academia
Militar das Agulhas Negras, foi
diplomado oficial das Forças
Especiais, uma elite na Força.
Em 2016, nos jogos Olímpicos,
ele comandou a Base de Apoio
Logístico do Exército e a coor-
denação logística das Tropas
no evento, onde manteve con-
tato mais próximo com o então
comandante Militar do Leste,
atual ministro da Defesa, ge-

neral Fernando Azevedo e Sil-
va. Também teve ligação com o
general Augusto Heleno Ribei-
ro, hoje ministro do Gabinete
de Segurança Institucional. Em
2018, o então presidente Mi-
chel Temer o nomeou coman-
dante da Operação Acolhida,
em Roraima, ação humanitária
para atender venezuelanos que
migravam para o Brasil. De-
pois, assumiu a Secretaria de
Fazenda na intervenção federal
no Estado, entre dezembro da-
quele ano e fevereiro de 2019.
Diante da crítica generaliza-
da, governadores se esforçam
para manter o diálogo. Nesse
contexto, Pazuello foi elogia-
do pelos representantes dos
secretários estaduais e munici-
pais de saúde, com quem tem
se reunido virtualmente. A ava-
liação é que ele executa a libe-
ração de equipamentos e re-
cursos. A sua atuação foi reco-
nhecida pelo governador do
Maranhão, Flávio Dino (PC-
doB), forte opositor de Bolso-
naro. No Twitter, Dino escre-
veu na terça-feira passada: “Re-
gistro e agradeço o envio, pelo
Ministério da Saúde, de mais
de 30 respiradores ao @Gover-
noMA, nos termos de diálogo
que mantive, na semana passa-
da, com o ministro Eduardo
Pazuello”.
A atuação do general não é
marcada apenas por críticas. Há
espaço também para o bom hu-
mor. No mesmo dia 9, Pazuello
explicou que as regiões Norte e
Nordeste tendem a sofrer mais
com a pandemia por influência
do Hemisfério Norte. Memes
de cidades nordestinas com “ne-
ve” inundaram as redes sociais.
Internautas do Rio Grande do
Norte propuseram a candidatu-
ra de Mossoró para sede dos Jo-
gos Olímpicos de Inverno.

Guerra assimétrica: um lado
tem as leis e a Constituição,
o outro tem armas

PERFIL


Militar. General Pazuello,
ministro interino
da Saúde

Esticando a corda


l Politização da doença
“O medicamento ( para
tratamento do coronavírus )
foi politizado, o vírus foi
politizado. Quando se tem
excesso de politização e se
faz uma alteração dessas
( mudança na contagem de
casos ), você dá margem a
tudo que é especulação.”
General Santos Cruz
EX-MINISTRO DA SECRETARIA
DE GOVERNO

JOÉDSON ALVES/EFE - 9/6/

Gestor. O general Pazuello se formou na turma de 1984 da Academia Militar das Agulhas Negras, e foi escolhido para tentar destravar a logística da pasta

No ‘quartel’ da Saúde e sob ordens do chefe


Ministro interino, general


Eduardo Pazuello


militarizou pasta e se


destaca como executor


de tarefas do presidente


Eduardo Pazuello, general do Exército e ministro interino da Saúde


ANDRE DUSEK/ESTADÃO - 21/5/
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