Estado de Minas (2020-06-14)

(Antfer) #1
FEMININO& MASCULINO
8


ENTREVISTA/MÁRCIAHADAD


Mineiraabandona vida ecarreiranoBrasil depois de casamento comitaliano e


se redescobreajudandomulheres etransexuais em situaçãod evulnerabilidade


Mediadoraintercultural,
58anos

‘‘


AAqquuii,,


ttrraabbaallhhaammooss


eemmrreeddee,,uunnss


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PRAZER EM


AJUDAR


Conteumpoucodesua família.
SoufilhadeEliasHadad,médicopsi-
quiatra,edeBeatriz, quesemprecuidou
dafamília,etenhodoisirmãos.Fuiuma
criançamuitolivre,brincavanaruacom
meuirmãoqueéumanomais velhoe
erameumelhoramigo.Minhas brinca-
deiraserammais masculinas,gostavade
correr,subiremárvores,emeudiverti-
mento parairritarminhairmãerapular
omuroechegar nacasadosvizinhosan-
tesdela.Gostavadeesporte,masparei
porproblemas nacoluna.


Gostava de estudar?
Sim,queria fazermedicinaeser cardio-
logista,masem1977sofriumgravíssi-
moacidentedecarronoqualquase
morri, perdi doisamigos,umficoupa-
raplégicoeoutro,tetraplégico.Minha
irmãtambémestavanoacidente.Nun-
camais fuiamesmapessoa,pormui-
tosanosvivi umgrandesentimento de
culpaportersobrevivido.Nocursinho,
umamigosugeriu queeufizesseturis-
mo,egosteidaideia.Foramquatro
anosmaravilhosos,emqueconheci
pessoascomquemaindahoje,quando
viajo paraoBrasil,nosencontramos.


Sempretrabalhoucomturismo?
Sempre,comeceiemumhotel,depois
fuitrabalharemagência deviageme,
conhecioWaldoPinto,queeradiretor
lá efoi apessoamais importante nami-
nhavidaprofissional,devomuitoaele.
Oturismofoiparamimumrelaciona-
mentodeamor.Naquelaépoca,todo
mundose conhecia.Euorganizavagru-
poseosacompanhavaaoexterior,o
trabalhoeraenorme,masmerealizava
profissionalmente.


Quandoecomo conheceu seu marido?
Meumaridose chamaAlfonso,nosco-
nhecemosemBournemouth,naIngla-
terra.Em1986,fuiconvidadaparaum
famtourparaconhecerumaredede
hotéisnaÁustria.Depois,decidifazer
umcursodeinglêsemBournemouthe
éramoscolegasdeclasse.Namoramos
porcincoanosenoscasamosem1991.


Oque afez largartudo aqui eirpara
aItália?
AescolhadevivernaItáliafoiunica-
mente econômica.Nãotínhamoscon-
diçõesdenosmanter aqui,masele po-
dianosmanter naItália.


Sua adaptaçãofoi difícil?
Nãofoifácil, sempreameieamominha
pátria.Tivequecomeçartudodenovo.
Voltei aestudar,tivequefazercursos
profissionaisparaterumtítulodeestu-
doquetivesseumreconhecimentona
Itália.Nãofoifácil. Semprefuiumamu-
lhermuitosegura,confiante,porcausa
domeutrabalho.Quandochegueieper-
cebiquenadadoqueeutinhafeitono
Brasiltinhareconhecimento aquinaItá-
lia,entreiemumtipodedepressão.Fa-
lavacommeumarido,“massãoapenas
12 horasqueseparamoBrasildaItália,
porquenadatemvalor?Porqueminha
vidanãotemreconhecimento?”. Foium
períodomuitotristeparamim,pois
semprefuiumamulherindependente
enaquelemomentoeunãoconseguia
mereconhecer, parecia umpesadeloe
eunãoviaahoradeacordar.


Conseguiufazeramizades?
Fizalgumasamigaseamigosetodos
sãopreciosos,possoconsideraralgu-
mascomoirmãs.


ISABELATEIXEIRA DACOSTA

Profissional deturismodasmais requisitadasdacidade,Márcia Beatriz MoreiraHadadamavaseutrabalho.Efoi emuma
viagemdetrabalhoqueconheceuoitalianoAlfonso,seapaixonaram,namoraramesecasaram.Porumasimplesquestão
deoportunidademelhordetrabalhoparaele, decidiramseradicarnaItália,emvezdeficarnoBrasil,efoi aí que
começaramasdificuldadesnavidadeMárcia.Tevequecomeçardozero,literalmente,porquenenhumdeseusestudosfoi
reconhecidononovopaís,eemfunçãodissoelaacaboufazendoestágios,conhecendopessoasedescobrindoumanova
profissãoqueacativoueparaaqualsededicouintegralmente:mediadoraintercultural.Explicando,ela ajudamulherese
transexuaisvítimaseviolência domésticaedetráfegosexual.ConheçamMárcia Hadad.

Teve filhos?
Tenhoumafilha, Giulia,hojecom 24
anos.Giuliapraticamente mesalvou, me
deuumaforçaincrível.Depoisdeseu
nascimento,comeceiamededicaràvi-
daprofissional evenceraquinaItália.Ela
fazbiotecnologiamédica,estudano
HospitalSanRafaelle, deMilão.

Sente saudades da família?
Sinto muitafalta daminhafamília,meus
paissãominhaforça,umacasaprecisa
decolunas parase manter empé,meus
paissãominhas colunas.Sóentendiessa
importância quandovimmoraraquina
Itália.Meusirmãosestãosemprepresen-
tesnaminhavidaeprincipalmente no
meucoração.OBrasilparamimécomo
meurespiro,precisoir aoBrasilduas ve-
zesporano,éfundamental.

ConseguiutrabalharnasuaáreanaItália?
Umdoscursosprofissionaisquefizna
Itália foinaáreadoturismo.Fui chama-
dapara fazerumaentrevistanoescritó-
rioderepresentaçãodaAmericanAirli-
nes,foitudobem,deveriacomeçares-
se trabalhonodiaseguinte aodaentre-
vista,masrecebiumtelefonemainfor-
mandoqueoresponsável doescritório
tinhacontratadoumaamiga.

Oque fazia?
Comodisse,estudavamuitoparaterre-
conhecimentonopaís,enosmeuses-
tudosacabeifazendomuitotrabalho
voluntário,quefaçoatéhoje.Fizcurso
demediadoraintercultural,etinhaque
fazermuitosestágios.

Foiassim que conheceu aONG na qual
você trabalha?
Sim,umdosestágiosfoiemumainsti-
tuiçãodaPrefeituradeTurim,defor-
maçãodejovens,eláconheciaSilviaAi-
ralle. Oestágioeraparafazerumapes-
quisasobreimigração,equandoaca-
boumeofereciparacontinuarvolunta-
riamente.Quandoprecisounovamen-

te,elamecontratou.Comomeumari-
dotrabalhavanosfinsdesemana, Silvia
melevavaparapassear.Nostornamos
grandesamigas.Nofinal docurso,abri-
mosumaassociaçãocultural queensi-
naitalianoparaestrangeiras,ecomeça-
mosatrabalhar fazendoparceriascom
outrasassociações. Umadas parceirasé
oCentroInterculturaledelleDonneAl-
maMater,queajudamulheresetran-
sexuais.Comeceilá hámais de 20 anos
eestouatéhoje,emesmosendoremu-
nerada,acabofazendohorasextrasco-
movoluntária,porquemuitasvezes
souprocuradaemcasaenãodeixode
ajudaraquemmeliga. Estetipodetra-
balhonãopodeserburocrático,quan-
doalguémaprocuraéporqueprecisa
deajudaenãopodemospedirparali-
garamanhã.Enfrento todosostiposde
problemas dasmulheres,desdeapren-
deralínguaitaliana, aviolência domés-
ticaouotráficosexual.

Começouatuandocommulheres?
Comeceitrabalhandocomcriançasre-
fugiadas,masnãoconseguiterodistan-
ciamento necessário,aíentendimeusli-
mites,eviquepoderia serútilparamu-
lheresepessoasLGBT,porqueconsigo
ajudaredormirquandochegoemcasa.
Sópercoosonoquandovejo queapes-
soaestácorrendoriscodemorte,eaíba-
to naportadaspessoasquepodemme
ajudar.Comodisse,aquitrabalhamos
emrede,unsajudandoosoutros,sóas-
simconseguimosajudarumserhuma-
no,poissãováriasasnecessidades.Já
ajudeimulheresafugiremdecasa,esou
conscientedequecorroriscos.Uma
mulherbrasileiravítimadeviolência é
completamente diferente deumamu-
lher doMarrocos.Abrasileiraconsegue
trabalhar,adoMarrocosprecisaprimei-
roaprenderalíngua,porqueelaéisola-
dadomundopelomarido,trancada
dentrodecasa,étotalmente dependen-
te eissoésuacultura.Nãopodemostra-
taramulhercomocategoria, mascomo

indivíduo,equandoasajudamoselas
têmqueserprioridadeatéomomento
denãocorreremmais risco.Aíacabao
assistencialismoeelastêmqueassu-
miravida.Meumaridosemprese
preocupoucomomeutrabalho.Um
dia,pergunteiaele segostaria deme
ajudaremumafuga, eledissequesim.

Ecomo foi?
Expliqueiqueamulhernãopodiasa-
berqueeleera meumarido,quedeve-
ríamossermuitorápidos,poisavizi-
nhançapoderia informar aomaridode-
la,queeraviolento.Fomosemumaci-
dadepertodeTurim,estacionamos
próximodacasadasenhora,elameavi-
souquandoomaridosaiudecasa,eem
poucosminutosenchemoscincosacos
grandesdelixocomas roupas,ecorre-
mosparaocarro,colocamosossacos
noporta-malasefomosembora.Che-
gandoemTurimcompramosmalas.
Acompanheiasenhoraemumacasa
refúgioenodia seguinte elavoltoupa-
ra oBrasil(nessecasoespecifico,ajudei
umabrasileiraemparceria comopro-
jetoRientroVolontario Assistito(Retor-
noVoluntario Assistido).Oprojetoco-
bria ocustodapassagem,umaajudafi-
nanceiraparaaviagemepararecome-
çarnopaísdeorigem.

Do que você tem mais medo?
Temomais pelaminhafilha, quealgu-
macoisapossaacontecercomelapor
vingançaporpartedesseshomens,
mesmoporquejá tivequedeporem
tribunal váriasvezes.

ComoelasficamsabendodaAssociação?
Pelobocaaboca.Éumaassociaçãocul-
turaldemulheresparamulhereseofe-
recemosvárioscursos,comodelíngua
italiana, deassistência familiar,oficinas
decostura,detrabalhosmanuais,te-
mospsicólogoseadvogados.Muitos
maridos,inclusiveosárabes,deixam
suasmulheresfrequentaremaescola

porquesótemmulher.Quandoelasco-
meçamaviver commulheresdeoutras
culturaspassamacompararasuavida,
ecomeçamosconflitosfamiliares.Agi-
mosquandoelaspedemajuda.Não
convencemosninguémdequeestá
sendovítimadeviolência,elatemque
sentir.Issoéseriíssimoedegranderes-
ponsabilidade.Muitasmulheres,de-
poisdedenunciaromarido,acabam
voltandoparaeleporrazõeslógicas–o
maridoeafamíliasãoasúnicasrefe-
rênciasqueelatemnaquelepaís;se
saem,estãodiantedodesconhecido.
Todacasadeapoiotemregrasdesco-
nhecidas.Édifícil edelicado.

Eeste trabalhoem rede?
Fazemosparceriascomváriasassocia-
çõeseONGsporquecadaumadelas
atuaemumafrente diferente,precisa-
mosdecasarefúgio,deensinar umtra-
balho,dedocumentos,deempregoem
outracidadeeatémesmoemoutro
país,demoradia,transporte,roupas,ali-
mentação,etc.Estaredeéfundamental
paraconseguirmosrealizartodasas fa-
sesdoprocessocomsegurança.Traba-
lhotambémemoutrasassociações.
UmadelaséaAssociazioneMamre,na
qualatuocomomediadoraetnoclínica.
Láeutrabalhocompsicólogoseantro-
pólogosnacurapsicológicaeemocio-
nal. Trabalhamossomente comestran-
geirosoucasaisemqueumdoscônju-
geséestrangeiro.

Vocêtambémlutacontraotráficosexual?
Sim,esteéoutro tipodeproblemamui-
to grave,otráficodesereshumanospara
omercadodaexploraçãosexualedotra-
balhoemgeral.Estamosfalandodeorga-
nizaçõescriminosas,eoperigoparaes-
saspessoaseparaostécnicosqueaju-
damégrande.Geralmente, sãomulheres
brasileiras quetrazemmulhereseaté ho-
mossexuaisoferecendotrabalhoemsa-
lõesdebeleza.Elastrabalhamindoor,ea
primeiracoisaquefazemésequestraros
passaportes.Eobrigamessaspessoasase
prostituírem.Registramaimageme
ameaçammandá-lasparaas famíliasno
Brasil.Aassociaçãoondetrabalhofaz
partedeumgrupodeassociaçõesque
atuamnoterritório nacional paraajudar
mulheres,homens,pessoasLGBTnotrá-
ficodesereshumanos.Eumeocupo
mais daspessoasLGBT,principalmente
transexuaisqueestãonomercadose-
xual.Paramim,astranssãoaspessoas
quemais sofremcomaviolência ediscri-
minação,eelastrabalhamnasruas.

Você mudoumuitodepois que passoua
fazeresse trabalho?
Muito.Hoje,meuprazeréficaremcasa,
porquetrabalhocompessoasquenão
têmcasa.Nossosvaloresmudam.Nãote-
nhomais preconceitodenada,nemcor,
nemsexo, nemreligião,nemcultura.

Já pensouem escrever um livrocontan-
do suas experiências?
Duasamigasmefalamsempreque
precisoescrevermeuscasos,nãoporse-
reminteressantes,masporquepodem
serúteisparamuitaspessoas.

Quaissãos eusplanosfuturos,tantopro-
fissionaisquanto pessoais?
Hoje,gostaria denãoterresponsabili-
dadenavidadaspessoas,às vezessinto
quemuitasesperamumasoluçãopara
avidadelas.Nãosouasolução,sei que
possoserútil,masadecisãodepende
delas,nãopossodecidirporelas,émui-
ta responsabilidade.

ARQUIVOPESSOAL
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