O Estado de São Paulo (2020-06-16)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 16 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Gilberto Amendola


Se tem alguém com autoridade
para falar de hino é a Fafá de Be-
lém. A cantora marcou seu no-
me na história política do País
ao participar dos comícios pe-
las Diretas Já, ocorridos entre
1983 e 1984. Na ocasião, empres-
tou a voz para canções emble-
máticas como Menestrel das Ala-
goas e, claro, para o Hino Nacio-
nal.
Não à toa, a reportagem do Es-
tadão foi saber da própria Fafá
qual seria o hino da quarentena,
a música que melhor represen-
taria este momento de pande-
mia da covid-19 e de isolamento
social. “Alinhamento Energético
é premonitória. Quando me
mostraram essa canção no ano
passado, alguma coisa me tocou
na alma. Hoje, essa música é o
que foi o Menestrel das Alagoas
nas Diretas Já”, afirmou.
Aqui, um trecho da letra: “Se
você achou que ano passado foi
intenso/ Cê não sabia de nada,
inocente/ Cê não sabia de nada/
Se você jurou que seu projeto ia
vingar/ Cê não sabia de nada,
inocente/ Cê não sabia de nada/
Que fase louca/ Que fase doida/
Que ano é esse?/ O que é que
vem depois?/ Eu tô exausta, eu
tô perdida/ Já me disseram que
só começou...”.
A composição é da cantora Le-
trux (nome artístico de Letícia
Pinheiro de Novaes) e foi escri-
ta em 2016. Ela foi gravada pela
Fafá no álbum Humana, lança-
do ainda no início de 2019 –
bem antes de qualquer sinal de
coronavírus. “A voz da Fafá, a
interpretação dela, é singular,
pontual, eu babo. Acho que ape-
sar de ser uma pessoa dada co-
mo otimista, eu sempre fui cons-
ciente que o mundo estava se
encaminhando para um lugar
terrível. A história do mundo é
horrível, desgraçada, se a gente
não respira e acha umas hori-
nhas para alegria, é tristeza na
certa. Todo ano eu achava que
alguma coisa, um projeto meu
ia vingar e todo ano vinha uma
porradinha, então essa música
veio desse lugar, esperando um
eterno Godot, e respirando nos
intervalos”, contou Letrux.
A apresentadora e radialista
Roberta Martinelli também
lembrou da canção de Letrux.
“É um hino da quarentena que
eu canto todo dia. É uma compo-
sição que, a cada fundo do poço
alcançado, ganha um novo sen-
tido”, disse Roberta. Ela tam-
bém destaca uma outra canção
em tempos de coronavírus:
“Em dias mais otimistas, o hino
é Amanhã, do Guilherme Aran-
tes. As duas juntas (Alinhamen-
to Energético e Amanhã) dão a
real cara do isolamento. São al-
tos e baixos, dias de esperança e
outros que estamos prestes a pi-
rar”, completou.
A letra de Guilherme Arantes
é mesmo clássica: “Amanhã se-
rá um lindo dia/ Da mais louca
alegria/ Que se possa imagi-
nar...”. Aliás, Amanhã também é
a escolha da cantora Vanessa da
Mata. “É uma canção cheia de
esperança, pop, bonita e bem
feita”, afirmou.
Já o cantor e compositor Mau-
rício Pereira elegeu Jeca Total,
de Gilberto Gil, como o hino
dessa quarentena: “Jeca Total
deve ser Jeca Tatu/ Presente,
passado/ Representante da gen-


te no Senado/ Em plena sessão/
Defendendo um projeto/ Que
eleva o teto salarial no ser-
tão...”. “Ela me conta do abraço
da quantidade louca de informa-
ção e possibilidades com a igno-
rância bruta da gente, o baixo-
ventre, justamente num mo-
mento em que todo mundo

acredita que tem uma opinião
definitiva sobre tudo. Como se,
mansamente, melancolicamen-
te, o Gil cantasse pra nós a fór-
mula da nitroglicerina”, expli-
cou Pereira.
A apresentadora Sarah Olivei-
ra foi buscar em clássicos da Le-
gião Urbana, as canções que

mais representam este momen-
to. “Eu fiz um especial sobre Le-
gião Urbana para o Minha Can-
ção, meu podcast do Estadão e
programa da Rádio Eldorado,
que foi um soco, canções como
Teatro dos Vampiros e Perfeição
são atuais demais. Parece que
Renato escreveu hoje”, disse.
“Teatro dos Vampiros diz ‘quan-
do me vi, tendo que viver comi-
go apenas e com o mundo’ ou
‘os assassinos estão livres, nós
não estamos’”, completou.
Sarah também destacou a le-
tra de Perfeição, que, segundo ela,
é de “tirar o ar”: “Vamos come-
morar como idiotas/ A cada feve-
reiro e feriado/ Todos os mortos
nas estradas/ Os mortos por falta
de hospitais/ Vamos celebrar
nossa justiça/ A ganância e a difa-
mação/ Vamos celebrar os pre-
conceitos/ O voto dos analfabe-
tos/ Comemorar a água podre/ E
todos os impostos/ Queimadas,
mentiras e sequestros...”.
Particularmente, Sarah tam-
bém tem recorrido ao álbum
Transa, de Caetano Veloso e a
faixa You Don’t Know Me. “Cae-
tano escreveu no exílio e está
reverberando em mim, como
nunca”, afirmou. Eis um tre-

cho: “Feel so lonely/ The world
is spinning round slowly/ The-
re’s nothing you can show me
from behind the wall”.
A quarentena também tem si-
do um período de inspiração pa-
ra muitos artistas. O cantor e
compositor Zeeba, por exem-
plo, lançou Tudo Que Importa
neste período. “É uma canção
que fala sobre estar perto de
quem realmente importa. É
quando a gente perde as coisas é

que a gente dá valor, disse o au-
tor dos versos ‘posso até sonhar/
Quando existe alguém/ Pronto
pra viver por perto, vem’.”
Eduardo Bologna, instrumen-
tista, compositor e produtor
musical, procurou identificar
quais são as características que
podem transformar uma can-
ção em algo imprescindível nes-
ta quarentena. “Percebi que te-
nho ouvido muitas canções
com uma característica mais

descritiva, tipo lugares e perso-
nagens marcantes. Sabe aquele
lance de descrever uma paisa-
gem e você se sentir dentro da
cena, observando e ao mesmo
tempo interagindo com aque-
las pessoas? Acho que tem tudo
a ver com este período de afasta-
mento social”, explicou.
“Tem uns caras que são mes-
tres nisso, né? Leonard Cohen,
Chico Buarque, os caras do The
Band... não sei se consigo expli-
car muito bem, mas pegue The
Weight, do grupo The Band, por
exemplo, você vê um quadro,
um filminho passando. Tem is-
so em Cotidiano (Chico Buar-
que), em Sky Blue Sky (Wilco),
em Jockey Full Of Bourbon, Hold
On e Telephone Call From Istam-
bul (Tom Waits). Mas se eu tiver
que escolher uma só, tipo hino,
vou deixar uma que tem delica-
deza e elegância, o que está fal-
tando nos dias de hoje: You Can
Never Hold Back Spring, de Kath-
leen Brennan e Tom Waits. Por
algum motivo, essas canções
têm causado mais efeito do que
o normal nestes dias de quaren-
tena”, completou Bologna.

Internacional. O cantor e ator
Tiago Abravanel lembrou de
um sucesso da cantora inglesa
Dua Lipa, o Don’t Start Now.
“Foi uma música que represen-
tou muito. Eu e meu marido fica-
mos muito em cima do Big Bro-
ther Brasil e a música tocou mui-
to no programa.” No BBB, a
música ganhou mais destaque
quando a participante e cantora
Manu Gavassi inventou uma co-
reografia para ela. A performan-
ce ficou conhecida como “tam-
borzin, tamborzin”.
A cantora Paula Santisteban
foi buscar na música instrumen-
tal o equilíbrio para os dias de
quarentena. “Brad Mehldau é o
pianista que mais gosto de ou-
vir tocar, sempre que estou pre-
cisando de equilíbrio e de olhar
um pouco pra dentro, conver-
sar comigo mesma o escuto to-
car. Deve ser porque ele tem um
equilíbrio perfeito entre mão di-
reita e esquerda e entre técnica
e sensibilidade. Nestes tempos
por detrás das janelas, é como
uma bebida certa, um livro cer-
to, uma oração ou um abraço.
Essa música especificamente,
Bewitched, Bothered and Bewilde-
red, eu amo mais do que todas.”
Felipe de Paula, programa-
dor musical da Rádio Eldorado,
escolheu um artista para repre-
sentar os dias de quarentena.
“Sempre fui fã do Prince, mas
ele ganhou um significado
maior para mim nesta quarente-
na. Acabei redescobrindo sua
discografia e a importância dele
na música pop. Um disco que
me chamou muito a atenção foi
Sign O’ The Times, de 1987. É tão
rico e diverso na sonoridade e
nos temas que ele trata que po-
deria ter sido lançado hoje.”
“A faixa-título, Sign O’ The Ti-
mes – uma canção pesada, profé-
tica, que prova que mesmo pas-
sados 33 anos a gente não apren-
deu quase nada com nossos er-
ros”, completou Felipe.
“Just stop your crying/ It’s a
sign of the times/ Welcome to
the final show/ Hope you’re wea-
ring your best clothes/ You can’t
bribe the door on your way to
the sky (Apenas pare de chorar/
É um sinal dos tempos/ Bem-vin-
do ao show final/ Espero que vo-
cê esteja vestindo suas melho-
res roupas/ Você não pode su-
bornar a porta no seu caminho
para o céu...)”, cantou Prince.

Caderno 2


1000 filmes do Merten


TIAGO ABRAVANEL DIZ
QUE ‘DON’T START
NOW’, DE DUA LIPA,
LEMBRA ESTA FASE

HINOS


A cantora Fafá de Belém aposta em ‘Alinhamento Energético’, de Letrux, e


a apresentadora Sarah Oliveira opta por ‘Perfeição’, da Legião Urbana


DA QUARENTENA, ESCOLHIDOS


POR ESPECIALISTAS


C


omo toda semana, é dia de
VOD, de indicações de fil-
mes para ver em casa, no
streaming. Poderia ser um dia de in-
dicações temáticas, com filmes so-
bre crimes.
Um dos primeiros filmes sonoros
de Alfred Hitchcock, Murder/Assassi-
nato, de 1929, e meio século mais tar-
de, em 1979, outro de Bertrand
Blier, Coquetel de Assassinos. Para
contrapor a tantos crimes e assassi-
natos, que tal um filme leve e diverti-

do? Um Reencontro, de Lisa Azuelos,
pode muito bem ser essa alternativa.

Assassinato
No seu terceiro longa-metragem so-
noro, o mestre do suspense Alfred
Hitchcock já brincava de aparecer no
próprio filme. Mas demora – mais ou
menos uma hora – para passar pela
cena do crime. A história, adaptada
de uma peça de teatro (Enter, Sir
John, de Clarence Dane e Helen Simp-
son). Uma atriz vira suspeita ao ser

encontrada junto ao corpo da amiga,
que foi assassinada. Para complicar,
não se lembra de nada. O espectador
logo deduz que a loira não é culpada,
mas, então, quem matou? Trata-se de
um raro filme do diretor construído
em torno a essa pergunta. A caçada na
cúpula do Museu Britânico, o desfe-
cho no circo. Já era um Hitchcock se-
nhor dos seus meios. E para marcar o
som, ele usa logo os acordes da Quin-
ta Sinfonia de Beethoven.
Disponível no Mubi.

Coquetel de Assassinos
Buffet Froid, no original. O roteirista
e diretor francês Bertrand Blier diri-
ge o pai, Bernard Blier, e também
Jean Carmet e o jovem Gérard Depar-
dieu nessa história sobre um trio
meio inesperado. Um assassino, um
inspetor de polícia e um bobão. O pri-
meiro conseguirá enganar os outros
dois? Blier filho recebeu o Oscar por
Preparez Vos Mouchoirs no ano ante-
rior (1978). Na França, foi sempre
muito considerado, queridinho do
público e da crítica. Mas no Brasil seu
humor – aqui, beirando o surrealis-
mo – nunca entusiasmou as plateias.
Quem sabe agora?
Disponível no Mubi.

Um Reencontro
Elsa e Pierre, que são interpreta-
dos por Sophie Marceau e Fran-
çois Cluzet. Na ficção da diretora
francesa Lisa Azuelos, o casal faz
de tudo para a relação dar certo,
mas as coisas estão sempre conspi-
rando. Para começar, ele já é casa-
do – com a diretora do filme! Só
que o que poderia virar um drama
pesado é tratado por Lisa como co-
média. E leve. De cara, Pierre diz a
Elsa: “Há tristeza em seus olhos,
que bonito!”. A ideia é a de um rela-
cionamento de pessoas maduras,
que precisam fazer escolhas. Só is-
so já tira o filme da rotina.
Belas Artes a la Carte.

Letrux. ‘Que fase louca/ Que fase doida/ Que ano é esse?’

MARIANA FALCÃO

Vanessa da Mata. Cantora escolheu ‘Amanhã’, de Guilherme Arantes: ‘É uma canção cheia de esperança, pop e bonita’

AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO

Hitchcock comanda indicações

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