O Estado de São Paulo (2020-06-16)

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H6 Especial TERÇA-FEIRA, 16 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


N


ão me leve a mal se trago
aqui, como notícia fresca,
uma novidade que em breve
vai fazer dois anos. Não me leve a
mal – me leve a bem, pois, diferente-
mente de você, há por aí uma fartura
de leitores que ainda não descobri-
ram o Portal da Crônica Brasileira,
tesouro que o Instituto Moreira Sal-
les pôs na praça literária em 12 de
setembro de 2018. Você, que já este-
ve lá, sabe que não vai exagero na
palavra tesouro: trata-se de um bem
organizado baú contendo quase 3
mil crônicas, em sua maioria inédi-
tas em livro, escritas por mestres do
gênero, entre eles Rubem Braga,
Paulo Mendes Campos, Rachel de
Queiroz, Otto Lara Resende, Antô-
nio Maria, Fernando Sabino e Clari-
ce Lispector.
Juro que não vou ficar frustrado
se você, tendo lido como novidade
o parágrafo acima, decidir abando-
nar neste ponto a minha prosa para
mergulhar, sem mais tardança, na-
quele fornido baú, cuja chave, ano-
te aí, é cronicabrasileira.org.br. Lon-
ge de me sentir rejeitado (e até pode-
ria, quem sabe, pois esta coluna tem
número redondo, é a de número
500 que escrevo no Estadão), lá es-
tarei, não na imerecida condição de
cronista do Portal, mas nas funções
de orgulhoso recepcionista, esten-

dendo para você um tapetinho que se
pretende acolhedor e, se não é pedir
demais, sedutor, para um programa
que, com ou sem quarentena, é garan-
tia de prazer.
Renovada a cada início e meio de
mês, a coluna que escrevo ali se chama
Rés do Chão. Como ninguém é obriga-
do a conhecer esta expressão, há mui-
to em desuso entre nós, peço licença
para citar a mim mesmo, trazendo
aqui um naco do que escrevi na estreia
do Portal da Crônica Brasileira: rés do
chão, do francês rez-de-chaussée, sig-
nifica, diz o dicionário Houaiss, “pavi-
mento de uma casa ou edifício que fica
ao nível do solo”, ou, mais simplesmen-
te, “andar térreo”. Lugar por onde se
entra, portanto, a não ser, claro, que
você seja um daqueles que dispõem de
heliponto no topo do prédio. “Rés do
chão” teria, assim, muito a ver com o
vestíbulo de algo como o Portal da
Crônica Brasileira. Mas há mais: rez-
de-chaussée, ainda hoje de uso corren-
te onde impere a língua francesa, teve
outrora, informa o dicionário Larous-
se, o significado adicional de “folhe-
tim, artigo impresso nos baixos de
uma página”.
Ou seja: foi ali, na parte inferior de
uma página de jornal, que nasceu, no
século 19, o feuilleton, o folhetim (pri-
meiro nome da crônica ao chegar ao
Brasil, em 1852), palavra que designa-

va uma seção de amenidades, espécie
de parque de diversões onde pudesse
o leitor se distrair da insipidez, tantas
vezes amarga, do noticiário da im-
prensa. Não é por acaso, assim, que se
intitula Conversa ao Rés do Chão o tex-
to de Antonio Candido que vem a ser,
provavelmente, o melhor e mais subs-
tancioso estudo já escrito no Brasil
sobre a crônica, ali apresentada, com
felicidade, como uma “conversa apa-
rentemente fiada”.
*
Criado por iniciativa da escritora El-
via Bezerra, então coordenadora de Li-
teratura do Instituto Moreira Salles, o
Portal nasceu do desejo de franquear a
públicos mais largos, e não somente a
pesquisadores, o acesso a milhares de
crônicas existentes em acervos ali con-
servados, entre eles os de Otto Lara
Resende, Paulo Mendes Campos e Ra-
chel de Queiroz. No mesmo objetivo,
buscou-se atrair para o projeto outras
instituições detentoras de acervos de
cronistas – a começar pela Fundação
Casa de Rui Barbosa (que agora lumi-
nares da cultura bolsonária querem re-
duzir a museu), onde estão guardados,
entre outros, os acervos de Rubem Bra-
ga e de Fernando Sabino. Procurou-se
incorporar também o que, à margem
de instituições, estava nas mãos de her-
deiros de alguns dos autores.
No caso de Antônio Maria, cronista

que morreu sem livro publicado, sua
enorme produção no gênero nem com
a família ficou: as milhares de crôni-
cas que escreveu, várias delas antológi-
cas, se acham dispersas nos muitos jor-
nais e revistas nos quais colaborou.
Parte foi catada ali e posta em livros
por amigos seus, e mais adiante ren-
deu novas seletas, organizadas pelo
jornalista e cronista Joaquim Ferreira
dos Santos, autor de uma biografia do
escritor pernambucano. De Antônio
Maria, a cuja obra não se deu ainda a
justa importância, há muito nada res-
ta nas livrarias – motivo a mais para
mergulhar, urgentemente, nas deze-

nas de textos dele à disposição no Por-
tal da Crônica Brasileira.
*
Inédita em livro, enorme quantida-
de de crônicas oferece ao leitor o char-
me adicional de leitura em reprodu-
ções de recortes de jornais e revistas,
às quais, muitas vezes, não faltam
tons de papel envelhecido. E mais: fre-
quentemente, emendas e anotações
na caligrafia dos autores, sendo possí-
vel imaginá-los de caneta e tesoura
em punho, no dia mesmo em que bota-
ram os olhos na cria recém-chegada às
bancas. Rubem Braga, mais que seus
colegas de Portal, não deixava de regis-
trar, num primeiro recorte, as sucessi-
vas republicações daquela crônica. Pe-

na que não seja possível proporcio-
nar o mesmo prazer visual a quem
visite o Portal com o celular ou
iPad. Para estes, foram providencia-
das transcrições das crônicas.
Cada um dos autores, cujo time
vai aumentando – os seis do início
já são dez –, tem ali um texto de
apresentação, uma cronologia de vi-
da e obra e uma caricatura no traço
tão especial de Cassio Loredano. O
Rés do Chão, que tem muito a dever
à imaginação e ao rigor da pesquisa-
dora Katya de Moraes Perez, busca
ser um chamarisco quinzenal para
crônicas selecionadas a partir de de-
terminado assunto. O mais recen-
te, por exemplo, Dores da Criação,
fez foco no ofício de escrever. Sau-
dade, sonho e solidão, para ficar-
mos numa inicial, já renderam con-
versa – ilustrada, como sempre,
com fotos garimpadas no vasto e
precioso acervo do Instituto Morei-
ra Salles.
Sem prejuízo das indicações no
Rés do Chão (do qual todas as edi-
ções ficam disponíveis), você pode,
no Portal, fazer a sua própria sele-
ção por tema, existindo para isso
um dispositivo de busca. Não é o
seu caso, felizmente, mas saiba que
o ciúme é objeto de sete crônicas. O
amor, que protagoniza em 55, dá de
goleada na morte, com 42; mas a
tristeza, lamento informar, bate a
alegria por 15 a 12. Três textos falam
de ditadura, e tudo o que se espera é
que não venha um Capitão Corona
botar lenha na fogueira.

Luiz Carlos Merten


De onde saiu a ideia maluca de
colocar o Brasil, com suas con-
tradições, dentro de um ôni-
bus? De fazer um filme sem ro-
teiro, mas com uma ideia (legíti-
ma) na cabeça? Retrospectiva-
mente, Caco Ciocler é o primei-
ro a admitir que as chances de
que Partida não desse certo
eram enormes, mas deu certo.
Partida estreou na Mostra do
ano passado. Integra a seleção
do Cine Drive-in que o Belas Ar-
tes inaugura no Memorial da
América Latina, a partir da quar-
ta, 17. Passa na quinta, 18, quan-
do também chegará ao strea-
ming, nas plataformas Now, Vi-
vo Play, Oi Play, Petra Belas Ar-
tes e Looke.
Tudo isso é muito simbólico.
O filme, a estreia no cinema, o
destino final nas plataformas
que estão substituindo as salas
nesse período de pandemia.
Por conta do isolamento, Caco
conversa com o Estadão pelo
telefone. Lembra que Partida
nasceu como um experimento e
que, nesse sentido, o mais difícil
foi o que antecedeu a gravação.
Não havia patrocínio, a trupe se-
ria ao mesmo de personagens e
técnicos. Mas antes de tudo ha-
via um sonho. “Sempre quis fa-
zer uma viagem de carro ao Uru-
guai para passar o Ano-Novo
com (o presidente) Pepe Mujica.
Havia o que, para mim, era uma
lenda, que ele morava num sítio
e recebia as pessoas. O Brasil es-
tava naquela escalada de radica-
lização. (Jair) Bolsonaro deto-
nava todo mundo. Nunca estive-
mos tão divididos nas redes so-
ciais. Amigos e parentes racha-
dos. Quando Georgette Fadel
começou com aquele plano de
se candidatar a presidente, co-
mecei a pensar que seria a com-
panheira de viagem ideal. Ela
iria dirigindo o carro e eu captan-
do com a câmera o pensamento
político dela, porque a intenção
era essa. A maioria, como se ma-
nifestava, estava confusa, então
parecia necessário construir
um pensamento político emba-
sado. A gente estava discutindo
de qualquer jeito. Se agredindo,
ofendendo. A ideia inicial de
Partida, o ponto de partida, era
colocar uma ordem.”
No início era só uma curiosida-
de de Caco Ciocler pelo pensa-
mento da amiga e atriz Georget-
te Fadel, mas aí começaram a
pensar num filme e, se era para
ser filme, precisava de outra câ-
mera, de gente para cuidar do
som. O carro ficou pequeno.
“Não tínhamos patrocínio, nem
nada para oferecer às pessoas.


Cada um que se incorporava ti-
nha a sua demanda, a sua histó-
ria. O carro virou ônibus e o fil-
me que não tinha roteiro come-
çou a virar, de alguma forma,
também a história dessa trupe, o
que foi uma coisa muito bonita.
E eu virei o diretor disso tudo.”
Georgette continuava no cen-
tro, mas Caco, que já tinha expe-
riência de direção – um curta e
um longa –, sentiu que talvez
não desse certo. “Todo mundo
pensava muito igual. Era preciso
alguém para expressar o outro
lado.” Foi quando entrou em ce-
na outro amigo,
Léo Steinbruch.
“O Léo trouxe
a dinâmica que a
gente precisava.
Georgette e ele
brigavam feito
cão e gato, mas a
grande lição que a
gente tirou do experimento po-
de parecer banal, mas foi que o
ódio não constrói. Eles diver-
giam em tudo, mas convergiam
no afeto. Desligava a câmera e,
mesmo que continuassem bri-
gando, se provocando, eram
abraçados.” Georgette também
está em casa, isolada. Estava
com três projetos de espetáculos
para este ano, todos travados pe-
la covid-19. Um era com Caco –
Língua Brasileira, de Felipe Hirs-
ch, baseado na obra de Tom Zé,
falado em 16 línguas. Outro, no
qual assina o texto, Capô, é sobre
três mulheres que vão ao fim do
mundo atrás da nova utopia. E o
terceiro, Cecília, que também es-
creveu, sobre uma mulher isola-
da num apartamento e que come-
ça a se comunicar com os vizi-

nhos por meio de rachaduras nas
paredes. Apartamento, rachadu-
ras. Parece metáfora do que esta-
mos vivendo, mas só se fosse pre-
monição. A ideia nasceu antes.
Quando Partida estreou na
Mostra, Caco achou que o filme
talvez tivesse ficado defasado. O
Brasil parecia mais calmo, mas
agora, em plena pandemia, “com
esse desgoverno”, ele sente que
ficou atual de novo. Georgette
nunca teve esses vacilos. “Para
mim, esse filme foi sempre repre-
sentativo daquilo que a gente vi-
via e continua vivendo, agora
pior, porque tudo que a gente te-
mia aconteceu, e redobrado.” Es-
tá confinada no sítio. Segue can-
didata a presidente? “Para mim,
o importante agora é a formação
de uma frente que nem precisa
ser só de esquerda, uma frente
democrática para permitir que
esse País respire de novo, erradi-
cando essa gente que não tem ou-
tra narrativa senão o ódio.” No
filme, a trupe chega ao Uruguai,
encontra o Mujica. “Foi uma coi-
sa linda, ele é um homem doce.”
E Caco: “É um sábio. Faz uma
análise da situação do mundo
que não apenas é válida, como fi-
cou mais abrangente. Precisa-
mos nos mobilizar para salvar o
Brasil, o planeta.”
No ônibus, houve de tudo.
Momentos de tédio, de tensão,
de dúvida. E se nada desse cer-
to? Um dia, depois da gravação
de uma daquelas discussões in-
tensas, Caco brincou com o ami-
go: “Como é que se sente como
o vilão da nossa história?” E o
Léo: “Que vilão, cara? Sou o he-
roizão”.
A peça de Felipe Hirsch deve
estrear depois da pandemia, Ca-
co está no ar na re-
prise da novela
Novo Mundo. “Me
chamaram para
fazer um tipo de
médico, mas o
personagem mu-
dou muito. Guar-
do a lembrança
de que foi uma novela feliz, com
uma equipe muito bacana. Vai
continuar como a história de
Dom Pedro II, com o Selton (Mel-
lo), mas daquele elenco sobram
só o dono do hotel e a mulher, já
velhinhos.” Sobre o “experimen-
to”, diz: “Fiz o curta Trópico de
Câncer e o longa Esse Viver Nin-
guém me Tira, que foi uma enco-
menda. Partida é meu primeiro
longa autoral, e vejo que já tem
muita ficção no jeito como a gen-
te trabalhou. Dirigi e atuei na no-
va temporada da série Unidade
Básica, estou à frente de um pro-
jeto para ajudar artistas caren-
tes. Você não imagina a quanti-
dade de artistas com dificulda-
des, coisa de fome, cara. Depois
disso tudo, quero me aprofun-
dar no cinema fazendo ficção.”

Humberto Werneck


Ônibus. Na viagem, diretor conta que houve de tudo: tensão e afeto que ajudaram a criar a narrativa de que ódio não constrói

ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

PARA RUMOS


DEMOCRÁTICOS


l]


Baú de encantos


ALENTO

Inspiração. O plano da atriz Georgette Fadel era de se candidatar à presidência

‘SEMPRE QUIS IR AO

URUGUAI PARA
PASSAR ANO-NOVO

COM O MUJICA’

Com ou sem quarentena,
vale mergulhar nos encantos
do Portal da Crônica Brasileira

Road movie de Caco Ciocler mostra trupe de artistas


em busca de José Mujica como inspiração de presidente


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