O Estado de São Paulo (2020-06-17)

(Antfer) #1

Gilberto Amendola


“Para os artistas, a pandemia
tem sido um baque. Existe pou-
co apoio. E sei de gente passan-
do necessidade. Se você vê um
cantor famoso, entende que ele
ainda tem um caminho, uma
forma de se manter. Mas não
existe só artista famoso. Para o
artista em geral, está difícil.
Muita gente ficou sem traba-
lho. Mas a gente vai sobreviver.
A gente sempre resistiu e sobre-
viveu”, disse a atriz e diretora
de teatro Valéria Del Pietro, 70
anos, uma das moradoras do Pa-
lacete dos Artistas, localizado
na Avenida São João, no centro
de São Paulo.
Resistência é mesmo uma
boa palavra para descrever os
moradores do Palacete. Inau-
gurado em 2014, o imóvel tem
50 unidades e atende aproxima-
damente 60 pessoas por meio
do programa de Locação Social
da Secretaria Municipal da Ha-
bitação (Sehab). Seus morado-
res são, prioritariamente, ido-
sos que exerceram carreira ar-
tística e participaram de entida-
des do setor, como o Sindicato
dos Artistas, Ordem dos Músi-
cos e outras.
A Companhia Metropolita-
na de Habitação de São Paulo
(Cohab-SP) adquiriu o prédio,
que era o antigo Hotel Cineas-
ta, em 2011. Para morar nele, os
artistas precisam ser indica-
dos pelas associações de clas-
se, ter autonomia e pagar uma
pequena taxa de cerca de 10%
de suas rendas.
A reportagem do Estadão foi
visitar o Palacete e conversar
com alguns deles que vivem por
lá. São cantores, diretores, atri-
zes e produtores que possuem
contribuições relevantes ao uni-
verso cultural, mas que passam


longe dos holofotes da mídia,
dos serviços de streaming ou
das lives patrocinadas. São artis-
tas conectados com o ofício e o
suor cotidiano de produzir arte
em um País como o Brasil.
Valéria, por exemplo, foi dire-
tora e coordenadora de Proje-
tos de Teatro na Febem, onde
dirigiu Num Lugar de La Mancha

- Amores e Aventuras de Dom Qui-
xote
, baseado no clássico Dom
Quixote
, de Miguel de Cervan-
tes. Agora, durante o isolamen-
to social, ela tem amadurecido a
ideia de um projeto envolvendo
textos de Simone de Beauvoir.
“A gente não para. Tenho obede-
cido a quarentena e só saio para
ir ao médico uma vez por mês.
Mas, apesar do isolamento, me
mantenho ativa”, disse.
Para ela, o mais difícil duran-
te a pandemia
tem sido a mu-
dança na roti-
na do próprio
Palacete.
“Aqui, nós te-
mos uma con-
vivência e
uma vivência
de comunidade muito intensa.
Aos domingos, por exemplo, al-
guns moradores se reuniam em
um almoço. Por ora, isso é im-
possível. Os almoços de domin-
go fazem muita falta”, contou.
No mesmo andar de Valéria,
vive o cantor Raimundo José, 77
anos. Nascido em Minas Ge-
rais, começou a cantar aos 10
anos em corais e programas in-
fantis. Já em São Paulo, fez o cir-
cuito da noite, cantando em tea-
tros, bares e boates. Da turma
de nomes como Agnaldo Timó-
teo (José foi assessor de Timó-
teo durante o primeiro manda-
to do cantor como vereador em
São Paulo), Nelson Ned e Clara
Nunes, chegou a vender 500 mil


cópias com a canção Santo For-
te. “Clara Nunes batia na porta
de casa para comer o feijão da
minha mãe”, revelou.
O cantor garante que está
cumprindo a quarentena e to-
mando todos os cuidados. “Se
saio na rua , uso máscara, álcool
em gel e lança chamas. Vou me
defendendo e me protegendo”,
brincou. “Aqui no Palacete, esta-
mos sendo muito responsáveis,
tanto que não tivemos nenhum
caso no prédio”, completou.
Antes da pandemia, José fa-
zia apresentações no Piccolo
Teatro, na rua Avanhandava,
com repertório clássico da
música brasileira ( Chão de Es-
trelas , Lábios Que Beijei, Rosa ...)
e sonetos de Shakespeare tra-
duzidos para o português.
“Neste momento, os artistas es-
tão algema-
dos, sem tea-
tros, com um
momento cul-
tural decaden-
te. Mas é natu-
ral que a gen-
te se comece a
se coçar. Eu já
estou pensando em um disco,
nos arranjos, nas orquestra-
ções”, disse.
Ainda no Palacete, encontra-
mos o diretor, produtor e ator
Sebastião Apollonio, 77 anos.
Profissional com mais de 200
espetáculos no currículo, diz
“sentir falta do teatro”, mas não
“vê problema de ficar em casa”.
“Agora, por mais aposentado
que eu esteja, é preciso traba-
lhar e ganhar dinheiro. Espero
convites para depois do fim da
pandemia”, completou.
Apollonio acredita que o tea-
tro nunca mais será o mesmo
depois da quarentena. “Os espe-
táculos nunca mais serão como
eram. Público de teatro é escla-

recido, não vai lotar as casas de
qualquer forma. Vamos ter que
ter paciência e aguardar as coi-
sas acontecerem. O artista pre-
cisa ser mais consciente do que
os outros. Do contrário, não pre-
cisa ser artista”, disse.
Como ator, Apollonio atuou
ao lado da atriz Leila Diniz e em
inúmeros espetáculos de Tea-
tro de Revista. Perguntado so-
bre a inspiração que a covid-19
pode trazer para futuras cria-
ções artísticas, ele ponderou.
“Eu preferiria não lembrar da
covid, mas no Brasil tudo vira
piada. O Teatro de Revista é jus-
tamente para fazer graça. En-
tão, pode ser que saia alguma
coisa daí.”
O irmão de Apollonio, o ator e
diretor Cesar Teixeira, 64 anos,
também é morador do Palacete.
Influenciado pelo irmão mais
velho, fez carreira no teatro, ci-
nema e algumas participações
na televisão. “Dias antes de co-
meçar o isolamento, fiz um
transplante de fígado. Preciso
respeitar a quarentena e só saí
de casa para ir ao hospital”, dis-
se. “Mas entendo que esse é um
momento difícil para toda a clas-
se artística. As ‘vacas magras’
do artista são muito longas. Vai
ser muito difícil”, completou.
Diferentemente dos outros
moradores, Teixeira tem um
plano B. “Você vai ficando
mais velho e entende que não
dá mais para se aventurar. A
gente tem que comer, sobrevi-
ver. Artista fica muito tempo
sem trabalho e dinheiro, é mui-
ta insegurança”, comentou.
Por isso, Teixeira começou a
trabalhar com jardinagem.
“Claro que ainda sou ator. Mas
não tenho novos projetos de
teatro. Quero voltar com a jar-
dinagem. Hoje, me interessa
mais o jardim”, afirmou.

NA


QUARENTENA


PALACETE


DE ARTISTA


RESISTÊNCIA É A PALAVRA
PARA DESCREVER
OS MORADORES
DO PALACETE

Cinema


‘Furyo’, no Belas Artes Drive in PÁG. H8


Como vivem cantores,


atores, produtores


afetados pela pandemia


Lembrança. O cantor Raimundo José e seus discos de vinil

Futuro. Para dramaturgo Apolônio, teatro não será o mesmo

Moradia social. Residem no Palacete dos Artistas idosos da classe artística que hoje passam longe dos holofotes da mídia


FOTOS TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Força. Diretora Valéria del Pietro: ‘Vamos sobreviver’

FOX

%HermesFileInfo:H-1:20200617:H1 QUARTA-FEIRA, 17 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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