O Estado de São Paulo (2020-06-17)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-4:20200617:
H4 Especial QUARTA-FEIRA, 17 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Aliás,


Elias Thomé Saliba ]


“Não rir, nem chorar, nem de-
testar, mas sim compreender”.
Este conhecido bordão de Spi-
noza é hoje o conselho mais
útil para milhares de pessoas
que se informam apenas por
meio das redes sociais, deixan-
do de lado aqueles esquecidos
conselheiros: os livros. Se pen-
sarmos no atual declínio dos re-
gimes democráticos, na polari-
zação política que expele ódio
pela diferença e na dissemina-
ção de notícias falsas – tudo o
que corrói por dentro a cultura
do plurarismo e da tolerância
–, talvez o conselho seja ainda
mais útil. Mas não é fácil se
aventurar por dezenas de títu-
los que tratam do tema, pelos
mais diversos ângulos, do declí-
nio dos regimes democráticos
às ameaças, retóricas ou reais,
do autoritarismo alojado no in-
terior dos mesmos regimes.
Se é necessário começar, me-
lhor escolher aqueles autores
os quais, ainda bem jovens, fo-
ram testemunhas e, depois, in-
térpretes do fim dos fascismos
e da ascensão das democracias.
Umberto Eco tinha 11 anos
quando ganhou seu primeiro
prêmio em concurso cujo tema
obrigatório para os jovens fas-
cistas era “Devemos morrer pe-
la glória de Mussolini e pelo
destino imortal da Itália?”. “Ga-
nhei”, escreve Eco, “porque eu
era um garoto esperto!”. Em
1945, com 13 anos, cruzou com
um dos primeiros soldados
americanos a chegar em Milão:
um negro sorridente que lhe
deu um gibi de Dick Tracy e o
seu primeiro chiclete, que o me-
nino, à noite, colocava na água
para durar mais. Viu as primei-
ras fotos do Holocausto e co-
nheceu o significado do fato
mesmo antes de conhecer a pa-
lavra. Ele conta tudo isto em O
Fascismo Eterno
(Record) texto
de conferência realizada em
1995, notável pela concisão e
primorosa pelos prognósticos.
Para Eco, o fascismo não pos-
suía nenhuma quintessência,
era uma nebulosa de instintos
obscuros e de pulsões insondá-
veis, cuja única estratégia era
uma obsessão da conspiração –
possivelmente internacional


–, o culto da ação pela ação, cen-
trada na ideia de “não há luta
pela vida, mas antes vida para a
luta”: um culto do heroísmo es-
treitamente ligado ao culto da
morte – que o herói fascista es-
pera impacientemente provo-
cando, na verdade, a morte dos
outros. Afora isto – que guarda
ainda estranha atualidade – o
fascismo italiano não criou
mais nada, segundo Eco, a não
ser, segundo sua ironia ferina,
“uma liturgia da moda que fez
mais sucesso no exterior que
Armani, Benetton ou Versace.”
Outra testemunha intérprete
é Madeleine Albright, que so-
freu dois exílios: quando crian-
ça sua famí-
lia fugiu,
em 1939, da
invasão ale-
mã, da en-
tão Checos-
lováquia pa-
ra a Ingla-
terra; vol-
tou com
sua família
em 1945 e
foi forçada
a sair nova-
mente, por
conta da
persegui-
ção stalinista, exilando-se nos
Estados Unidos. Professora em
Georgetown, tornou-se a pri-
meira mulher a virar secretária
de Estado, na presidência Clin-
ton. Hoje, com 85 anos, publi-
cou Fascismo: um Alerta (Edito-
rial Crítica), no qual ela procu-
ra responder questões cru-
ciais, como “por que tanta gen-
te em posições de poder vem
tentando minar a confiança po-
pular nas eleições, nos tribu-
nais, na mídia e na ciência? “E,
por que, afinal de contas, a esta
altura do século 21, voltamos a
falar de fascismo? A resposta
da ex-embaixadora dos EUA
na ONU é ríspida, direta ao
ponto: “A razão única é Donald
Trump: se pensarmos no fascis-
mo como uma ferida do passa-
do que estava quase sarada, co-
locar Trump na Casa Branca
foi como arrancar o curativo e
futucar a cicatriz.” Assim, em
quase todo o livro, direta e im-
placável – definindo o fascis-
mo menos como uma ideolo-
gia e mais como um projeto de
tomar e controlar o poder –, for-
nece retratos bens delineados
de Mussolini, Hitler, Franco –

mas sobretudo, de algumas fi-
guras que ela conheceu de per-
to, como Putin, Erdogan, Or-
bán, Maduro, Duterte, Kim
Jong-un e, claro, Trump. Mas
os retratos são meros gatilhos
para uma detalhada cartogra-
fia histórica, já que uma defini-
ção abstrata de fascismo seria
como descrever uma pessoa
através de um único instantâ-
neo fotográfico: Albright mos-
tra como os cenários mudam e
o olhar do observador se altera
conforme os conceitos históri-
cos acompanham o camaleôni-
co processo dos fascismos, con-
vertendo-os – como disse certa
vez E. P. Thompson – em “famí-
lias inteiras de ca-
sos especiais”.
Já David Runci-
man, em Como a
Democracia che-
ga ao Fim (Edito-
ra Todavia), e
Yascha Mounk,
em O Povo contra
a Democracia
(Cia. das Le-
tras), partem de
diagnósticos
muito semelhan-
tes, com a dife-
rença que
Mounk enfatiza
a ascensão paralela do populis-
mo: o retorno daquela reivindi-
cação de representação exclusi-
va do povo, sem tolerar a oposi-
ção ou respeitar a necessidade
de instituições independentes,
como a Justiça ou a Imprensa.
Runciman, mais bem-humora-
do, afirma que devemos evitar
uma visão da história à moda
de Benjamin Button, em que tu-
do que é velho torna a rejuve-
nescer. Os dois autores argu-
mentam que ainda somos cati-
vos da paisagem do século 20
onde buscamos imagens do co-
lapso democrático: tanques
nas ruas, violência, repressão e
ditadores caricatos; mas, en-
quanto procuramos os sinais fa-
miliares de sua falência, nossas
democracias já estão fracassan-
do por motivos que desconhe-
cemos. Hoje, a escala da violên-
cia política não é mais o que foi
para as gerações anteriores –
ainda existe, é claro, às mar-
gens da política e nos recôndi-
tos da imaginação de cada um,
sem jamais assumir o centro
do palco. Ela é o fantasma des-
sa história. No passado, a pro-
babilidade de uma catástrofe ti-

nha um efeito mobilizador,
mas hoje tende a nos deixar pa-
ralisados pelo nosso medo. A
revolução da informática tam-
bém alterou por completo os
termos operacionais da demo-
cracia: dependemos de com-
partilhamentos de informa-
ções que escapam tanto ao nos-
so controle como à nossa plena
compreensão. Runciman acer-
ta ao atenuar as previsões de
Yuval Harari quando este prog-
nostica o verdadeiro fim da his-
tória, porque esta equivaleria à
extinção da iniciativa humana
como determinante da mudan-
ça social: “Mas, para chegar-
mos a esta utopia, ainda preci-
samos ir daqui até lá”, conclui
ele, com pertinência. O proble-
ma de Runciman é que, no epí-
logo do livro, ele imagina um
final mirabolante, descreven-
do as eleições americanas de
2053, com um chinês eleito pre-
sidente com a promessa de en-
frentar o poder das gigantescas
empresas de tecnologia!
Mounk é mais comedido nas
possíveis soluções e aposta nu-
ma saída ética, retirada em par-
te da filosofia do estoicismo:
nunca faremos a coisa certa se
sempre calcularmos (e nos en-
colhermos) demais em face do
resultado provável dos nossos
atos; sempre nos engajaremos
em lutas discutíveis, por moti-
vos imperfeitos –, mas deve-
mos nos inspirar na coragem
dos estoicos para defender os
valores democráticos que tan-
to prezamos.
Com exceção naturalmente
de Eco, que escreveu no século
20, todos os autores tocam, em
algum momento, nos impac-
tos da revolução digital no der-
retimento dos valores demo-
cráticos. Mas nenhum vai tão
longe quanto Giuliano Da Em-
poli, em Os Engenheiros do Caos


  • uma detalhada abordagem
    dos bastidores dos universos
    digitais de Trump, Boris John-
    son ou Erdogan, nos quais cada
    novo dia nasce com uma gafe,
    uma polêmica, uma boutade
    ou a eclosão de um escândalo.
    Mal se está comentando um
    evento, e esse já é eclipsado
    por um outro, numa espiral
    quase infinita que catalisa a
    atenção e satura a cena midiáti-
    ca. “A dinâmica da web é a dinâ-
    mica do boato”, definiu Bea-
    triz Sarlo, décadas atrás. Por
    trás das aparências extrema-
    das deste populismo histriôni-
    co, esconde-se o trabalho feroz
    de dezenas de ideólogos e cien-
    tistas especializados em Big Da-
    ta, criadores de bolhas digitais,
    sem as quais os líderes do novo
    populismo jamais teriam che-
    gado ao poder. Como as redes
    sociais, a nova propaganda se
    alimenta cruamente de emo-
    ções negativas, pois são essas
    que garantem a maior partici-
    pação, daí o sucesso das fake
    news e das teorias da conspira-
    ção. O twitter virou o Velho
    Oeste. Mas, a roda pode girar
    ao contrário e transformar tu-
    do o que está aí, segundo a ex-
    pressão de Manuel Castells,
    em “redes de indignação e espe-
    rança”. É claro que as ações
    dos engenheiros do caos – den-


tre os quais, entre muitos, o pa-
radigma é Steve Bannon –, não
explicam tudo, pois se alimen-
tam de dois ingredientes que
nada têm de irracionais: o res-
sentimento de alguns meios
populares, fundamentado so-
bre a realidade de profundos
contrastes econômicos e so-
ciais; e uma máquina de comu-
nicação superpotente, original-
mente concebida para fins co-
merciais, mas doravante trans-
formada em instrumento privi-
legiado de todos aqueles que,
ao largo das instituições demo-
cráticas, têm por meta multipli-
car o caos.
Seria ingenuidade procurar
soluções a partir destas leitu-
ras, mesmo porque em História
também vale o bordão de Spino-
za, com o acréscimo de que fa-
zer as perguntas certas também
já é uma forma de respondê-las.
Todos os autores, apesar das di-
ferentes sondagens, só apon-
tam um caminho para defender
a democracia: a união de todos
os opositores, urgente, pois
quando hesitam e deixam de tra-
balhar unidos já é tarde demais
para superar a impotência. Para

quebrar tal quadro, ainda mais
deprimente com a atual pande-
mia, nada melhor que uma cer-
ta dose de bom humor. E ela nos
chega através de Instruções para
se Tornar um Fascista, de Miche-
la Murgia (Editora Ayiné), uma
formidável inversão irônica su-
gerindo regras de como atingir
o perfil ideal de um fascista
adaptado aos novos tempos di-
gitais. Sugere, por exemplo, nu-
ma das primeiras regras, que
após o povo já estar educado pa-
ra se reconhecer num chefe, o
segundo estágio é manter o con-
senso por meio de uma comuni-
cação eficaz e o mais banal possí-
vel: “Banal, bem banal, vocês en-
tenderam?”– escreve a autora.
No terceiro estágio, alfineta,
“basta acionar a formidável ar-
ma da conspiração, já que o ini-
migo improvável é muito mais
odiável do que aquele que pode-
mos encontrar toda manhã na
padaria.”

]
É HISTORIADOR, PROFESSOR
TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE
OUTROS LIVROS, DE ‘RAÍZES DO
RISO’ (COMPANHIA. DAS LETRAS)

História*


CRISE

A PERIGOSA SEDUÇÃO


DO TOTALITARISMO


AMANHÃ VAI
SER MAIOR
Autora:
Rosana
Pinheiro
Machado
Ed.: Planeta
192 págs., R$
39,90, R$ 24
em e-book

INSTRUÇÕES
PARA SE
TORNAR UM
FASCISTA
Autora:
Michela Murgia
Trad.: Julia
Scamparini
Editora: Âyiné
132 pp., R$ 42

O POVO
CONTRA A
DEMOCRACIA
Autor:
Yasha Mounk
Editora: Cia.
das Letras
413 págs.,
R$ 39,90 em
e-book

FASCISMO –
UM ALERTA
Aut.: Madeleine
Albright
Tradução:
Jaime Biaggio
Editora: Crítica
385 págs., R$
55,90, R$ 8,91
em e-book

TORMENTA –
O GOVERNO
BOLSONARO
Autora:
Thaís Oyama
Editora:
Cia. das Letras
272 págs., R$
54,90, R$ 30
em e-book

10 LIVROS SOBRE A POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

UMBERTO ECO TINHA 11
ANOS AO GANHAR PRÊMIO
EM CONCURSO JUVENIL
SOBRE MORRER PELA
PÁTRIA E POR MUSSOLINI

Com a democracia em risco, multiplicam-se livros sobre


os perigos do radicalismo e da intolerância política


MADELEINE ALBRIGHT
DEFINE O FASCISMO
COMO UM PROJETO DE
CONTROLAR O PODER

OS ENGENHEI-
ROS DO CAOS
Autor: Giuliano
da Empoli
Tradução:
Arnaldo Bloch
Ed.: Vestígio
192 págs., R$
44,90, R$ 18,66
em e-book

TIZIANA FABI/AFP

O FASCISMO
ETERNO
Autor:
Umberto Eco
Tradução:
Eliana Aguiar
Ed.: Record
64 págs., R$
34,90, R$ 18,55
em e-book

O CADETE E
O CAPITÃO
Autor: Luiz
Makhlouf
Carvalho
Editora:
Todavia
256 págs., R$
54,90, R$ 29
em e-book

Neofascistas. Militantes radicais de direita fazem a saudação ao ‘Duce’ na cripta do ditador italiano em Predappio, no norte da Itália, repetindo o gesto que saudava Mussolini no passado


A ELEIÇÃO
DISRUPTIVA
Aut.: Juliano
Corbellini e
Maurício Moura
Ed.: Record
168 págs.,
R$ 39,90,
R$ 26,91 em
e-book

COMO A
DEMOCRACIA
CHEGA AO FIM
Autor: David
Runciman
Trad.: Sérgio
Flaksman
Ed.: Todavia
272 pp., R$ 64,90,
R$ 35,91 e-book
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