O Estado de São Paulo (2020-06-17)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:C-5:20200617:
O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 17 DE JUNHO DE 2020 Especial H5


Aliás,


Luiz Costa Lima ]


Em fins de 1962, eu voltava da
Europa, onde principiara a estu-
dar literatura. No ano seguinte,
comecei minha curtíssima car-
reira universitária no Recife. Mal
completara um ano quando o
golpe de 1964 me aposentou. De-
vo haver sido o benjamin do AI-1.
Como nunca me filiara a algum
partido, entendo que assim suce-
dera porque trabalhara com Pau-
lo Freire, desde que o reitor insta-
lara o Serviço de Extensão Cultu-
ral (SEC) da Universidade Fede-
ral de Pernambuco (então do Re-
cife). Era nele que se preparava a
equipe dos professores para seu
sistema de alfabetização. Embo-
ra a situação política há anos esti-
vesse turva, não se esperava, a
menos para quem estivesse a par
do golpe, um rápido desfecho.
Na noite antes de 1.º de abril,
assistira a uma partida de fute-
bol, entre o Palmeiras e o Náuti-
co. Tomara um ônibus de volta.
Ao passar em frente à Faculdade
de Direito, espantou-me ver a
praça ocupada por soldados, dei-
tados, em posição de ataque. Ao
chegar em casa, telefonei para o
palácio do governo. Atendeu a ir-
mã de Miguel Arraes. Narrei-lhe
o que vira. Depois de consultar o
governador, Violeta me respon-


deu que ele acabara de falar com
Jango e tudo já estava tranquilo.
Da escada, próxima de onde eu
me encontrava, meu pai, enge-
nheiro e proprietário de terras,
retrucou que não era assim, que
seria preferível eu tomar o carro
e ir para a fazenda. Dormi preocu-
pado e de manhã cedo fui para o
SEC e daí para a praça do gover-
no. Já estava cheia de gente. Co-
mo se murmurava que o palácio
já estava ocupado, reuni-me a
um grupo de amigos e alguém su-
geriu que fôssemos para uma
próxima cidade de interior, para
começar a resistência. Fomos in-
terrompidos por um líder conhe-
cido, que havia participado da re-
sistência aos nazistas, que nos
perguntou que pretendíamos fa-
zer. Ante nossa resposta, ele re-
trucou: nada disso, já para casa.
Terá sido nosso anjo da guarda.
Ainda assim minha imaturida-
de se manifestava. Voltei para o
SEC, que se encontrava aberto.
Lá encontrei o romancista Gas-
tão de Holanda. Carregamos até
uma kombi da reitoria uma
máquina de impressão – já não
sei como se chamava – trouxe-
mos papel bastante, dispensa-
mos o motorista e seguimos pa-
ra a casa de um amigo, que sabía-
mos fora da cidade. Creio que
passamos parte da noite impri-
mindo folhetos de resistência,
até ouvirmos no noticiário que o
golpe estava dado, e as autorida-

des que haviam sido depostas
presas ou fugidas. Como não ou-
vira o conselho do velho pai, só
me restava voltar para casa.
A ansiedade de fazer alguma
coisa era substituída pela espera
que viessem me prender. Não
sei por quantos dias durou a es-
pera. Quando um carro do
exército veio me apanhar já ti-
nha preparado um pequeno pa-
cote. Nunca cheguei a usá-lo por-
que me foi tomado no primeiro
quartel a que me levaram. Por
quantos passei e por quantos me-
ses? Poucas coisas são deles re-
lembradas. Elas eram de vários
tipos: desde solitárias até as
mais comuns, com vários presos
ou com um comandante, como
o do quartel de Olinda, respeito-
so da integridade dos sob sua
guarda. De imediato, recordo
embora já se falasse da improvi-
sação de diversas torturas, que
não sofri nenhuma. Lembro de
um dos primeiros dias. Como
me tinham ensinado fazer situa-
ções semelhantes, procurava
cumprir meus exercícios, quan-
do notei uma sombra que parcial-
mente me cobria. Levantei o ros-
to e a interroguei. Tive como res-
posta que não bancasse o tonto;
que o exercício – no caso, era um
chamado de “marinheiro” – era
válido caso se tivesse uma boa
alimentação. Não o sendo, o me-
lhor era economizar forças. Se-
gunda lembrança: a única vez

que minha prisão coincidiu com
a de Paulo Freire foi em um quar-
tel de Olinda. Recordo o dia em
que me fora avisado que recebe-
ria uma visita. Não recordo por
que, no momento devido, isso já
não era possível. Paulo e outros
presos se encarregaram de dimi-
nuir para a visitante a sensação
de que algo não iria bem. Não sei
que êxito tiveram os saltos e ma-
caquices que faziam à janela
diante da qual o carro da visitan-
te passaria, como se a cumpri-
mentassem. Elimino outras pou-
cas, igualmente triviais.
Meses passados, convencido
de que não tinha mais nada a fa-
zer no Recife, embarquei para o
Rio. Tratava-se agora de sobrevi-
vência. Provavelmente, por ini-
ciativa de um antigo mestre do
secundário, o futuro tradutor da
Fenomenologia do Espírito , de He-
gel, Paulo Menezes, recebi o tele-
fonema de um padre, que se de-
clarava diretor do Departamen-
to de Sociologia da PUC (RJ).
Ele me convidava para lá ensi-
nar. (Há meses, eu era revisor da
Editora Vozes, em Petrópolis).
Como lhe manifestava minha
surpresa porque nada sabia espe-
cífico de sociologia, ele me res-
pondeu que pusesse os pés na
terra, porque se me indicasse pa-
ra o Departamento de Letras, pa-
ra o qual talvez me considerasse
mais habilitado, pouco depois se-
ria denunciado e posto para fora.

Assim, minha retomada docente
deu-se como professor de socio-
logia da comunicação de massa.
Era por certo um clima hostil,
embora a convivência com uns
poucos alunos restaurasse um
tanto do clima que perdera. Fora
deste contato, contudo, nada ha-
via de animador. Lembro a pro-
pósito o encontro com um pro-
fessor suíço (ou francês), em visi-
ta ao Rio, a quem fui apresenta-
do pelo então conselheiro cultu-
ral da embaixada francesa. Ele se
propusera me encontrar porque
acreditara oportuno fazer-me sa-
ber do que ouvira ao estar com o
reitor da PUC. Sendo interroga-
do quem conheceria ao menos
de referência, o reitor teria se le-
vantado e, dirigindo-se a seus ar-
quivos, debruçou-se sobre uma
de suas pastas e leu para ele.
Com referência a mim, um alu-
no havia delatado que podia ser
uma figura perigosa porque, pe-
la maneira como costuma se ex-
pressar, não se percebe qual sua
posição po-
lítica.
Foi sob es-
ta atmosfera
de suspeita e
delação, com
um número
mínimo de
amigos, em
que era difícil confiar-se em al-
guém que não fosse há muito co-
nhecido, que me mantive até
conseguir, por volta de 1973, dou-
torar-me pela USP, em teoria da
literatura e literatura compara-
da. Ali, o embate não era com
sombras e metralhadoras, con-
quanto pudesse ser não amisto-
so. Isso, no entanto, era um pe-
queno acidente pessoal a não im-
pedir que a ditadura se mantives-
se em pleno valor. Objetivamen-
te, que diferença faria que eu fos-
se doutor e tivesse um salário
melhorado na universidade em
que ensinava se os cuidados
com o que se dissesse ou fizesse
tinham de se manter em nível
elevado?
Entre finais de 1970 e ao longo
da década seguinte, desenro-
lam-se acontecimentos decisi-
vos para mim. Sua importância
decorre de independerem da ce-

na política. Nomeio em primei-
ro lugar o encontro ocasional
com o romanista alemão Wolf
Dieter Stempel, produto de sua
conferência sobre os formalis-
tas russos. Nossa conversa se de-
senrolou tão bem que ela me pro-
porcionou uma bolsa do Serviço
de intercâmbio cultural alemão
(Daad), com alguns meses para
conhecer o que se fazia em Kons-
tanz. Aí, por sua vez, tive a opor-
tunidade de conhecer Hans Ulri-
ch Gumbrecht, em seu início de
carreira. Cheio de iniciativas co-
mo sempre foi, Sepp Gumbrecht
teve fôlego para idealizar os coló-
quios de Dubrovnik, cidade da
então Iugoslávia, que me puse-
ram em contato com vários cole-
gas estrangeiros. Um deles,
Wlad Godzich, então professor
nos Estados Unidos, alertou-me
para concurso que se abria na
University of Minnesota. Haven-
do vencido, pensei, em fins de
1982, que podia me despedir de
meu país. Na verdade, para mim
apenas se abria
um outro cam-
po de experiên-
cia. A universida-
de americana
que conheci es-
tava aquém do
que pensava.
Comparada à
nossa miséria política e apenas
menor financeira, era por certo
um oásis, longe contudo de ser o
local em que cogitasse reservar a
vida. Dois anos em seguida, re-
nunciei à permanência (tenure)
à que teria direito de pleitear e
voltei para meu país. Pouco de-
pois, o pesadelo de 31 anos se des-
fez. Ainda renunciei à permanên-
cia em Quebec e Berlim, e aqui
tenho estado.
Nunca havia cogitado em pas-
sar minha experiência para o pa-
pel até constatar que, desde
2018, se armava um novo pesade-
lo. Em artigo de dezembro de
2018, o chamei de tsunami so-
cial. Será que a comunicação da
experiência de alguém é passível
de ajudar que seja desfeito?

]
LUIZ COSTA LIMA É HISTORIADOR E
CRÍTICO

O MUNDO DIZ NÃO AOS AVANÇOS


DE GOVERNOS AUTORITÁRIOS


RESISTIR

História*


COM REFERÊNCIA A MIM,
UM ALUNO DELATOU
QUE PODIA SER PERIGOSO
PELA MANEIRA COMO
COSTUMAVA ME EXPRESSAR

ACERVO ESTADÃO ACERVO ESTADÃO

Golpe. João Goulart brinda com ministros Jair Dantas Ribeiro ( E ) e Silvio Frota ( D ) em 1964 Tomada. Grupo da Vila Militar chega às linhas guarnecidas em Rezende, em abril de 1964

Memória. Protesto contra a ditadura militar, na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, em março de 2019, data que marcou os 55 anos do golpe que derrotou a democracia em 1964


LUCAS REZENDE

Crítico literário que foi preso durante a ditadura militar reflete sobre o atual


momento e se pergunta se essa experiência pode ajudar as novas gerações

Free download pdf