O Estado de São Paulo (2020-06-17)

(Antfer) #1

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H8 Especial QUARTA-FEIRA, 17 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Leandro Karnal


l]


DRIVE-IN

Evento que começa hoje com ‘Apocalypse Now – Final


Cut’ abre vendas para mais duas semanas, de 14 a 26/7


ESGOTA INGRESSOS E


GANHA MAIS DATAS


Luiz Carlos Merten


Começa a funcionar nesta quar-
ta, 17, o Belas Artes Drive-in no
Memorial da América Latina,
uma parceria da empresa distri-
buidora e exibidora com o centro
da cultura latina de São Paulo. Já
é um sucesso – todos os ingres-
sos colocados à venda para as
quatro semanas de programação
esgotaram-se. Face à demanda, o
Belas Drive-in abre agora as ven-
das para mais duas semanas, de
14 a 26 de julho. Os filmes mais
procurados desta primeira etapa
terão nova chance, e quem não
conseguiu comprar para ver Apo-
calypse Now
, Cinema Paradiso – es-
se, foi uma loucura –, Laranja Me-
cânica
, Mad Max – Estrada da Fú-
ria
, A Vida É Bela , O Fabuloso Desti-
no de Amélie Poulain
e Pulp Fiction


- Tempo de Violência já pode cor-
rer ao site de vendas cinebelasar-
tes.com.br/ingresso-online/.
Tem sido motivo de reflexão.
Ainda havia o célebre drive-in de
Brasília, que inclusive inspirou o
belo longa de Iberê Carvalho que
venceu Gramado em 2015, mas,
de maneira geral, esse tipo de sa-
la ao ar livre era um experimento
do passado. Com o isolamento
em tempos de pandemia, tanto o
cinéfilo mais atilado como o pú-
blico que só vai ao cinema para
comer pipoca e tomar refrigeran-
te vendo alguma coisa se mexer
na tela – brincadeirinha! – estão
ansiosos para sair de casa, para
ver filmes na tela grande, para so-
cializar. A flexibilização, em todo
o mundo, tem esbarrado em on-
das de segundo contágio. Todo
cuidado é pouco. A França pro-
gramou para reabrir suas salas na
próxima semana, e talvez tenha
de recuar. Aqui, ainda não tem
data, mas o drive-in, com toda se-
gurança, pode virar uma opção.
Sobreviverá à covid-19?
Pessoas dentro do carro, de
máscara, obedecendo a regras de
higiene e segurança, tudo nos
conformes. Dá para levar a pró-
pria pipoca e fazer piquenique –
dentro do carro. Toda essa festa
(re)começa na noite de quarta
com o “final cut”, a versão final
de Apocalypse Now. Desde que
surgiu o épico de Francis Ford
Coppola sobre a Guerra do Viet-
nã, em 1979, o filme tornou-se ob-
jeto de culto. Dividiu a Palma de
Ouro em Cannes com O Tambor ,
de Volker Schlöndorff. Ganhou
outra versão do diretor ( Apo-
calypse Now Redux
), uma tercei-
ra, com o “final cut”, mas nin-
guém garante que será mesmo a
final. Eleanor Coppola, mulher
do cineasta, realizou um docu-
mentário sobre as filmagens, O
Apocalipse de Um Cineasta
, e Elai-
ne Showalter fez uma análise
(em Anarquia Sexual ) que coloca
o leitor no verdadeiro coração
das trevas.
Coppola baseou-se no livro de
Joseph Conrad para contar a his-


tória do Capitão Willard, que pro-
cura o Coronel Kurtz, que enlou-
queceu e agora comanda uma
guerra dentro da guerra. Marlon
Brando, que faz o papel, aparece
no fim e quando as palavras ex-
plodem na tela – o horror, o hor-
ror –, fornecem o fecho para todo
o ensandecer que o espectador
viu. O ataque de helicópteros ao
som de A Cavalgada das Valquí-
rias , o napalm, as coelhinhas da
Playboy. Tudo é grande, desmesu-
rado, como a própria guerra que
assombrou Coppola, Michael Ci-
mino e Oliver Stone no cinema.
Mas Showalter fornece outra nar-
rativa sobre a aventura. Nas Fili-
pinas, que foram o epicentro da
produção, Coppola criou um im-
pério – o império de um cineasta.
Drogas, prostituição, abuso de
mulheres, de crianças, figuran-
tes que eram mercenários. Tudo
o que ela conta em seu livro é do-
cumentado, mas desafia a com-
preensão. O horror de uma filma-
gem insana. Apocalypse Now vi-
rou um daqueles filmes míticos.
A obsessão de um autor que não
se cansa de (re)fazê-lo. Um per-
pétuo work in progress. E nesta
noite, tudo vai (re)começar. As
imagens e os sons voltarão. Na
quinta, outro louco – no bom sen-
tido –, Caco Ciocler, vai colocar o
Brasil inteiro dentro de um ôni-
bus para refletir, em Partida , so-
bre o País dilacerado que colo-
cou Jair Bolsonaro no poder.
Guardadas as proporções, são
dois filmes sobre a jornada. O
rio, no primeiro, a estrada no se-
gundo. O barco, o ônibus. No fim
do caminho, a revelação. O louco

Kurtz/Brando, o sábio Pepe Muji-
ca, presidente do Uruguai.
E, claro, os beijos de Cinema Pa-
radiso. O filme de Giuseppe Tor-
natore é sobre esse garoto e sua
relação com o projecionista do
cinema de sua infância. Ele cres-
ce, vira adulto, cineasta. No final,
emocionado, mas não mais que o
espectador, recebe o legado do
projecionista – uma antologia
dos beijos que o padre mandava
cortar, em nome da moral e dos
bons costumes, e ele guardou.
Na próxima etapa do Belas Dri-
ve-in, você já pode ir anotando os
destaques. Serão atrações de di-
retores como David Cronen-
berg, John Carpenter e Pedro Al-
modóvar, por meio de filmes co-
mo Videodrome – A Síndrome do
Vídeo , Christine – O Carro Assassi-
no e Mulheres à Beira de Um Ata-
que de Nervos e A Lei do Desejo.
Muito mais – Furyo, Em Nome da
Honra , de Nagisa Oshima, que te-
ve a ideia de contrapor dois gigan-
tes da música, David Bowie e
Ryuichi Sakamoto, em grandes
papéis dramáticos; Conta Comi-
go , de Rob Reiner, a história de
Stephen King que tem pontos de
contato com It – A Coisa e o Inte-
restelar , de Christopher Nolan.
Música? Buena Vista Social Club ,
de Wim Wenders. Humor? O
Gordo e o Magro em Filhos do De-
serto. Os drive-in estão virando
fenômenos da quarentena. No
Rio, em Porto Alegre, São Paulo,
onde existem outras opções. Pa-
ra tirar o cinema do streaming e
mantê-lo vivo, na tela gigantes-
ca. Muito importante – com segu-
rança.

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

FOX

F


oram duas epidemias no ano
em curso. A primeira, trágica,
foi de coronavírus. A segun-
da, sem vítimas, foi a das lives. Não
eram apenas médicos dando opi-
niões aguardadas sobre doenças ou
cantores famosos nos ajudando a
superar o confinamento. Todo
mundo decidiu falar para o mundo.
O anonimato virou a dor mais agu-
da do mundo da internet. Disputas
de likes e de fãs são fundamentais de
uma forma objetiva: transformam-
se em dinheiro. O argumento seria
objetivo e bom: desejo ser conheci-
do porque preciso de recursos mate-
riais. Ponto. “Monetizar” as inter-
venções na internet talvez seja o no-
vo “concurso do Banco do Brasil”.
Na minha geração, a instituição pú-
blica era um caminho indicado pe-
las mães de classe média para seus
rebentos. Aquelas senhoras que se
orgulhavam da aprovação dos filhos
no disputado concurso, hoje torna-
das avós, comentam que seu neto
tem um milhão de seguidores.
O ponto subjetivo das lives é
mais interessante. Ser conhecido

é existir. O anonimato é a morte dolo-
rosa em vida. Novidade? O grego He-
róstrato tocou fogo no Templo de
Diana, em Éfeso (atual Turquia), uni-
camente para... ser lembrado pela
posteridade. Virou uma doença que
atinge criminosos e terroristas, a
“síndrome de Heróstrato”, mal da-
queles que fazem atos violentos com
o objetivo de serem conhecidos. Se-
ríamos herdeiros dele? “Quem me ci-
ta me excita”, como li em uma página
da internet. Um novo Eros, uma velei-
dade, uma forma de tocar a eternida-
de possível do mundo atual, um ou
dois verões no hall da fama.
A fama é tudo, o anonimato, o vazio
angustiante. Fala-se de uma dor que
acometeria celebridades como mem-
bros do programa Big Brother : viram
estrelas supernovas no céu e, em pou-
cas semanas, escasseiam convites e o
trend topic vira a pergunta “quem é
ele”? “Ex-BBB”, ainda assim, parece
ser um purgatório preferível ao vácuo
do anonimato eterno.
As críticas à fama, claro, abundam
em quem não a possui. O desdém da
raposa pelas uvas inalcançáveis foi al-

vo de muitas reflexões de Esopo a La
Fontaine. Racionaliza-se a frustração.
Sim, nossos ataques falam de nós e de
nossas dores. Em inglês usa-se a ex-
pressão “sour grapes” para o amargor
profundo do cacho não degustado.
Ainda que levemos em conta o de-
mônio de olhos verdes do ciúme e da
inveja, o que é a fama? É dinheiro, já
vimos. Assim como alguns juízes per-
doam o “crime famélico” (a vítima
rouba para comer), os gregos pode-
riam ter ignorado o ato incendiário de
Heróstrato, pois ele buscava a mesma
perenidade dos que tinham construí-

do o templo que seria uma das sete
maravilhas do mundo antigo. Como
condenar no terrorista o idêntico im-
pulso do arquiteto? A morte de Lady
Di foi atribuída, pelo irmão enlutado,
aos tabloides sensacionalistas que
não permitiam que a infeliz princesa
tivesse vida privada. Ele comentou
que era irônico que a mulher que ti-
nha o nome da deusa caçadora (Dia-
na) fosse a mais caçada do mundo de
então. O público concordou e ficou
horrorizado com a fúria dos paparaz-

zi que lutavam por fotos indiscretas
que o mesmo público horrorizado
consumia avidamente. Hipnose de
dois lados, espelho duplo, comida e
fome em um looping. O Templo de
Diana foi queimado por um louco por
notoriedade e Diana Spencer lutou pa-
ra chegar à fama e queimou-se porque
havia devotos da deusa da caça traves-
tidos de caçadores.
Ganharemos em profundidade per-
cebendo que o site de fofocas precisa
de três ângulos para formar a figura
equilátera: a entidade pública que bus-
ca (com sofreguidão) o néctar da fa-
ma; o público faminto que deseja ver
para saber e para criticar e, por fim, o
repórter/fotógrafo/editor que identi-
fica a dupla necessidade e contata os
polos que reclamam. O triângulo do
jogo da fama é um polígono estável.
Uma constante? Atribuir o mal ao
vértice oposto: “Eles não me deixam
em paz” complementa “esta gente só
quer flashes” e “o público tem direito
à informação e eu ao dinheiro”.
A fama nunca incomoda. Claro que
sim. Uma vez, em um programa de
televisão, Sidney Magal me confes-
sou que não pode mais dormir em um
voo. Não importa a duração de via-
gem, se ele cochilar, virará vídeo no
YouTube. Como cantor profissional
há décadas fazendo sucesso, Magal

precisa de imprensa e de público.
Não existe um botão on/off da cele-
bridade. Bruna Lombardi disse, cer-
ta feita, que levara seu cachorro ao
veterinário. O animal sangrava e
ela estava angustiada. Algumas pes-
soas queriam selfies quando ela en-
trou no consultório. É difícil equili-
brar o triângulo.
Reflito e acho que não tem solu-
ção. Cada parte gostaria de enqua-
drar a outra em algum cercadinho
de controle. Todos (celebridade,
fã, imprensa) são humanos com ca-
rências e necessidades. Circulando
entre eles, uvas verdes e maduras.
Por um instante, o famoso quer
anonimato e paz; o anônimo anela
haurir do prestígio com a fama, e o
paparazzo quer ganhar dinheiro
com ambos. Todos, conhecidos ou
obscuros, sofremos de “síndrome
de Heróstrato”. Tantas coisas a co-
nhecer em nós e lutamos para des-
cobrir a vida alheia. Talvez, como a
personagem Kurtz de Coração das
Trevas (Joseph Conrad), o horror
do mundo distante distraia sua es-
curidão interna. Em resumo, auto-
conhecimento ajudaria a raposa,
melhoraria a qualidade da uva e, de
sobra, tornaria o texto de La Fontai-
ne melhor. Esperança para o inver-
no que se aproxima.

DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

‘Furyo – Em
Nome da
Honra’.
David Bowie
no filme de
Nagisa
Oshima

O triângulo


Tantas coisas a conhecer
em nós e lutamos para
descobrir a vida alheia

Memorial. Programação vai reunir de filmes épicos até estreias nacionais
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