O Estado de São Paulo (2020-06-18)

(Antfer) #1

Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO


Quando, no futuro, a humanida-
de for relembrar imagens de
2020, a máscara estará presente
em fotos de família, vídeos e ar-
quivos de televisão. A máscara vi-
rou item obrigatório – e impor-
tante medida de prevenção con-
tra propagação do novo coronaví-
rus – em escritórios, shoppings,
escolas, universidades, parques,
equipamentos culturais. Isso
mudará a maneira como iremos
nos comunicar?
De acordo com o psicólogo Ma-
teus Donia Martinez, o ser huma-
no já usa, no sentido metafórico,
máscaras sociais de acordo com
os papéis que desempenha, seja
na família, trabalho ou em rela-
cionamentos com amigos – o
que inclui a forma de falar, de se
vestir, de se posicionar diante
dos mais diferentes assuntos e
até em posições corporais –, que
servem para preservar a indivi-
dualidade e para proteção em
um ambiente desconhecido.
Agora, com o acessório concreto
obrigatório, haverá mais uma ca-
mada, que vai encobrir nossas ex-
pressões e poderá separar as pes-
soas em novos grupos.
“O uso da máscara poderá vi-
rar uma norma social ou um códi-
go de conduta. Mostra responsa-
bilidade e empatia com o outro,
o cuidar de quem está ao seu re-
dor”, diz Martinez. O psicólogo
afirma que a adesão ou não da
máscara e o modo como ela será
usada criarão novos agrupamen-
tos que se mostrarão quando as


atividades sociais de fato volta-
rem ao normal. “É ela que nos
tornará circulável.”
Para o professor da Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da
USP Vinicius Romanini, a interfe-
rência na comunicação é inevitá-
vel, pois a máscara esconde ex-
pressões ou gestos faciais, por on-
de se dá boa parte da comunica-
ção intersubjetiva, sobretudo
sua dimensão emocional e afeti-
va. “Muitas vezes, aproximamos
as mãos do rosto ou mesmo toca-
mos partes dele em associação
com gestos faciais. Tudo isso é
desaconselhado agora, o que ge-
ra frustração e um déficit comu-
nicacional.” A solução, segundo
ele, é ser mais explícito naquilo
que se quer comunicar. “As pes-
soas com máscaras precisam
usar mais a linguagem oral, falar
mais abertamente o que antes
era dito implicitamente. O que
antes era um sorriso silencioso
agora precisa ser uma risada so-
nora, ou então uma declaração
aberta, do tipo ‘que engraça-
do!’”, explica.
Morando há cinco anos em
Montijo, cidade na área metropo-
litana de Lisboa, o carioca Felipe
Barbosa Soares, de 33 anos, que
trabalha em uma loja de telefo-
nia celular, conta que o período
de adaptação de medidas sanitá-
rias contra o coronavírus foi com-
plicado, com máscara, viseira, lu-
vas. Os clientes estranharam:
queriam ultrapassar a faixa que
os distanciavam do balcão, recla-
mavam que não podiam chegar
mais perto. “Você sai do seu nor-
mal, precisa falar mais alto para

ser compreendido. O atendimen-
to passou a ser mais demorado.”
Para o psicólogo Mateus Do-
nia Martinez essa fase de adapta-
ção requer paciência, seja nos re-
lacionamentos pessoais ou pro-
fissionais. “A boca, nosso conta-
to do mundo interno com o exter-
no, terá uma barreira. Por isso, as
pessoas precisarão fazer um es-
forço extra para se expressar de
forma mais clara, tornar a comu-
nicação mais acessível ao outro e
ser mais receptivo.”

Tecnologia. Já a antropóloga
Ana Laura Gam-
boggi acredita
que a relação das
pessoas no pós-
pandemia será
muito mais calca-
da na tecnologia.
“As plataformas
digitais de comu-
nicação permitiram que reu-
niões de organizações e corpora-
ções diversas seguissem ocorren-
do. Provavelmente, boa parte
das reuniões não voltará a ser pre-
sencial, o que irá afetar a forma
como as organizações existem
espacialmente e se relacionam
com seus colaboradores.” A mes-
ma análise é feita pelo professor
Vinicius Romanini: se o distan-
ciamento se prolongar por mui-
to mais tempo, a internet será o
lugar de socialização para mui-
tos e isso pode acelerar um pro-
cesso que já existia.
E qual a consequência disso tu-
do? Segundo Romanini, é o “es-
friamento” das relações sociais,
algo contra a natureza de países

como o Brasil. “Os espaços públi-
cos tendem a se tornar áreas ca-
da vez mais neutras do ponto de
vista da interação e comunica-
ção social. Já não se ouve mais
‘Bom dia!’ falado de forma efusi-
va, os feirantes já não gritam suas
ofertas nas feiras livres, os vende-
dores já não se aproximam das
pessoas para convidá-las a en-
trar e conhecer sua loja. Esses
comportamentos mais comedi-
dos são mais comuns em socieda-
des como a da Alemanha ou a do
Reino Unido, mas, em países lati-
nos, vão contra a naturalidade da
comunicação nor-
malmente feita.”

Sorrir com os
olhos. Quando
viu na imprensa
que um médico
americano coloca-
ra uma foto em
seu crachá para melhorar a comu-
nicação com os pacientes de co-
vid-19, Emílio Bueno, diretor do
hospital e maternidade Madre
Theodora, em Campinas (SP),
propôs que seus colaboradores fi-
zessem o mesmo. Cada um esco-
lheu a própria foto do crachá, ago-
ra em tamanho bem maior do
que os pequenos e burocráticos
identificadores. “Essa humaniza-
ção é importante para a recupera-
ção dos pacientes”, diz Bueno.
Um dos enfermeiros do Ma-
dre Teodora, Igor Schneider, es-
colheu uma foto de um momen-
to de lazer, para transmitir segu-
rança e alegria aos pacientes, al-
go que os equipamentos de segu-
rança, como máscaras, capace-

tes, luvas e avental podem es-
conder, conferindo-lhe uma
aparência mais robótica. “Ou-
tro dia chegou um paciente mui-
to mal, prestes a ser entubado.
Ele segurou na minha mão, pe-
gou no meu crachá, olhou mi-
nha foto e disse ‘como você é for-
te’. Isso lhe deu conforto, con-
fiança em mim”, conta, afirman-
do que o caso teve um final feliz.
“Quando usamos máscaras,
aprendemos a sorrir com os
olhos, e isso, às vezes, é melhor
do que dar uma gargalhada.”
A dermatologista Cibele Has-
mann comunga da mesma ideia:
é preciso sorrir, mesmo de más-
cara. Ela decidiu lançar um desa-
fio em suas redes sociais. Com as
hashtags #ismile #eyesmile, pe-
diu que as pessoas postassem fo-
tos usando máscaras, mas que es-
palhassem sorrisos com os
olhos. A campanha ganhou ade-
são, primeiramente, dos pais de
Cibele, depois, de companheiros
de profissão e, agora, ela já rece-
be fotos de pessoas que não co-
nhece, mas que ficaram sensibili-
zadas pelo apelo. “Parece que o
rosto se resumiu ao terço supe-
rior, não vemos mais a boca, na-
riz, bochechas um dos outros.
Mas olhos também sorriem. Pen-
so que podemos continuar a dis-
tribuir simpatia com eles”, diz.

Leitura labial. Para muitos, po-
rém, um sorriso, embora seja im-
portante, não é o suficiente para
que a comunicação seja feita de
maneira satisfatória. O uso das
máscaras gera contratempos pa-
ra surdos e deficientes auditivos

que usam a leitura labial para se
comunicar. O professor de histó-
ria Joelson Adonias, que leciona
por meio de Libras (Língua Brasi-
leira de Sinais) no Instituto San-
ta Teresinha, especializado em
surdos, diz que, de fato, a boca
coberta dificulta quem apenas
usa a leitura dos lábios. “No caso
de Libras, o foco principal está
nas mãos, apesar de usarmos o
rosto, por exemplo, quando que-
remos indicar a palavra ‘cheio’.
Mas, para quem depende de ver
os lábios, a comunicação fica pre-
judicada”, afirma.
A professora de Libras Daniela
Cury, de 42 anos, que é surda, diz
que, neste novo normal, tarefas
básicas como ir à farmácia ou ao
supermercado se tornaram uma
“agonia” e acentuam um proble-
ma já existente: a limitada comu-
nicação entre os ouvintes com os
surdos. “Normalmente, eu já te-
nho de pensar em todas as possi-
bilidades para tentar me comuni-
car. Plano A, Libras; Plano B, lei-
tura labial, Plano C, escrever em
um papel”, lembra. Para Daniela,
o ideal seria que profissionais do
comércio e da área da saúde ado-
tassem o uso de máscaras com
material transparente na região
da boca. “É uma ótima solução.
Aliás, é bom deixar claro: nós
(surdos) não somos limitados, é a
sociedade que nos limita”, diz.
De acordo com o infectologis-
ta Moacyr Silva Júnior, da Socie-
dade Israelita Albert Einstein,
não é possível prever por quanto
tempo ainda teremos de usar as
máscaras. “Mas será por um lon-
go período”, garante.

COMUNICAÇÃO EM UM MUNDO COM


MÁSCARAS


NA


Caderno 2


Spike Lee revê participação de negros no Vietnã PÁG. H5


Especialistas analisam novas formas de interação


Irônica.
Geralmente as
sobrancelhas
se distanciam,
uma para cima
e outra para
baixo; os olhos
expressam
sarcasmo, um
‘meio sorriso’

Espanto.
Os olhos são
bem abertos,
sobrancelhas
bem altas

Gargalhada.
Olhos mais
fechados,
sobrancelhas
altas,
músculos
faciais bem
contraídos

Zangada
/irritada.

A sobrancelha
comprime
os olhos,
o nariz fica
enrugado,
os olhos
brilham,
vermelhos


Rindo.
Semblante
descontraído;
olhos
se comprimem
porque os
músculos
faciais se
movimentam
para cima
por causa da
bochecha, que
levanta com o
sorriso


RELAÇÃO DAS
PESSOAS SERÁ MAIS

CALCADA NA
TECNOLOGIA

Séria.
O semblante
é firme, com
os olhos
sem nenhuma
expressão e
músculos
faciais
relaxados

QUARENTENA


Triste/abatida.
O semblante é
caído, os olhos
ficam para
baixo, pesados

NETFLIX/EFE

MARCOS MÜLLER/ESTADÃO

%HermesFileInfo:H-1:20200618:H1 QUINTA-FEIRA, 18 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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