O Estado de São Paulo (2020-06-18)

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 18 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


A DEPENDÊNCIA DE
CHEFS E PRODUTORES É
MÚTUA: UM PRECISA DO
OUTRO PARA EXISTIR

ONDE COMPRAR


Danielle Nagase e
Renata Mesquita


Sem pedir licença, o novo coro-
navírus chegou ao País e atingiu
em cheio a cadeia da comida.
Com restaurantes fechados, al-
guns operando somente para de-
livery, tanto os centros de distri-
buição de ingredientes quanto
os próprios produtores rurais
sentiram o impacto logístico e
econômico da pandemia.
Em meados de abril, “seu” Mo-
ri, um produtor de Ibiúna, no in-
terior de São Paulo, achou-se
com 12 mil pés de alho-poró, cer-
ca de três toneladas de inhame
em ponto de colheita e nenhum
comprador – os intermediários
que costumavam arrematar a
produção não apareceram na
propriedade.
Para ajudar a escoar as hortali-
ças encalhadas – seu Mori já ha-
via perdido a plantação inteira
de alface semanas antes –, a ad-
ministradora Karina Noguti,
que soube da história por acaso,
foi atrás de Mariana Pelozio,
chef do restaurante Duas Tere-
zas, do qual é cliente, para pro-
por uma campanha virtual. Ca-
da pé de alho-poró foi oferecido
a R$ 1 e 25 quilos de inhame a R$
65 – a retirada deveria ser feita
no restaurante. O post viralizou
e, em 15 dias, toda a produção foi
vendida. “Muita gente, inclusive
pessoas que estão fora do País,
comprou para doar. Só para o Ar-
senal da Esperança (entidade as-
sistencial para pessoas em situação
de rua)
encaminhamos 600 qui-
los de inhame e 1.500 alhos-po-
rós”, conta a chef.
Assim como Mariana, outros
chefs têm se mobilizado para aju-
dar a reparar o orçamento de
seus fornecedores, que sofrem
com queda brusca na demanda.
Antes mesmo de a quarentena
oficial ser decretada pelo gover-
no, o Corrutela fechou suas por-
tas e, desde então, o chef Cesar
Costa passou a disponibilizar
cestas com produtos variados
dos seus fornecedores. “Foi a
forma que encontrei para com-
plementar a renda do restauran-
te e, ao mesmo tempo, ajudar es-
ses grandes parceiros a conti-
nuar produzindo. É uma forma
de preservar e manter vivo o que
temos de mais precioso.”
A sustentabilidade e o produ-
to – orgânico, quase sempre –
são os pilares do restaurante.
Por mais de um ano, antes mes-
mo de a casa abrir as portas em
2018, o chef rodou o País em bus-
ca dos melhores fornecedores,
visitou grande parte deles, quan-
do não, ajudou a desenvolver a
produção – e criou uma rede de
dar inveja. “Me vejo como um
curador do que a pessoa está co-
mendo em casa”, afirma Costa.
Assim como ocorre no menu do
restaurante, quem pauta o que
vai na seleção da semana são os
produtores, ou melhor, os pro-
dutos da estação e em maior
oferta. Todas as segundas ele
posta no Instagram (@corrute-
la) o que irá compor a cesta: são
em média de oito a 10 legumes e
vegetais, mais duas hortaliças,
tudo orgânico, de produtores co-
mo Santa Adelaide, Santa Julie-
ta, Cooperapas e Fazenda Cubo.
O combo inclui um litro de lei-
te cru da Fazenda Atalaia e uma
surpresa da cozinha do chef, que
pode ser, como na cesta desta
semana, o fubá fresquíssimo
moído no moinho da casa, ou
uma barra de chocolate também
produzida do zero no Corrutela,
com cacau orgânico. “Não bas-
tasse, é uma alternativa mais se-
gura, tem muito menos gente
manipulando os produtos. Eles
saem da roça direto para o res-
taurante e do restaurante para a
casa do consumidor.” A cesta
completa sai por R$ 120 e as en-
tregas ocorrem todas às quar-
tas-feiras, num raio de 7 km do
restaurante, mas também é pos-
sível retirar no Corrutela.


O lucro não foi o que motivou
o chef Luiz Filipe Souza a colo-
car no ar a página do Mercato
Evvai. “Se eles (os fornecedores)
não estiverem vivos quando is-
so tudo passar, nós também não
estaremos”, diz. “Grande parte
do menu é pensada em cima des-
ses produtos, não tem como

substituí-los. Os ingredientes e
o restaurante foram se forman-
do juntos, preciso deles tanto
quanto eles precisam de mim.”
No mercado online, em cartaz
no iFood, é possível encontrar
desde meles nativos brasileiros,
que compõem, por exemplo, o
pão de mel do menu-degustação

Oriundi, cogumelos porcini do
Sul do Brasil, salumerias, quei-
jos e azeites, tudo de pequenos
produtores. Os preços são com-
postos apenas para bancar o cus-
to da lojinha, assim como a taxa
do aplicativo e a embalagem. “O
mais legal, além de ajudar a es-
coar a produção desses fornece-

dores, é que ainda consigo fazer
produtos de primeiríssima quali-
dade chegarem na mão dos clien-
tes, para que eles conheçam, de
fato, cada um deles.”

Fora do tradicional. Na página
do delivery do Borgo Mooca, res-
taurante ítalo-experimental do
chef Matheus Zanchini, além
dos pratos que mudam semanal-
mente, estão listados produtos
dos seus fornecedores para se-
rem comprados por gramas.
Tem o guanciale produzido pela
Maria Fumaça, salames e queijos
de produtores como Belafazen-
da e Pardinho – que, muitas ve-
zes, não são de fácil acesso ao
consumidor final. “É uma situa-
ção de ganha/ganha, meu cliente
complementa a refeição com um
ingrediente diferente e de muita
qualidade, e meu fornecedor con-
tinua na ativa”, diz Zanchini.
Montar uma mercearia den-
tro da Albero dei Gelati sempre
esteve nos planos de Fernanda
Pamplona, mestre gelataia e só-
cia da casa. “Com a crise causa-
da pela covid-19, sentimos que
era hora de co-
locar o projeto
em prática pa-
ra tentar pre-
servar nossos
fornecedo-
res”, conta Fer-
nanda. “Al-
guns deles che-
garam a comentar que estavam
pensando em parar a produção.
Depois de toda a curadoria que
fizemos para escolher as maté-
rias-primas dos gelatos, isso se-
ria muito ruim pra gente.”
Num cantinho da gelateria,
uma estante de madeira e uma
geladeira comportam seis cate-
gorias de produtos, os mesmos
usados como matéria-prima pa-
ra os gelatos. Há mel da Heborá,
castanhas da cearense Matury,
grãos da Isso é Café, chocolates
da Raros Fazedores de Chocola-
te, além dos vinhos italianos or-
gânicos. Os queijos, fresquíssi-
mos, vêm da Fazenda Terra Lím-
pida, em Cássia dos Coqueiros,
no interior de São Paulo. “Eles
produzem na quarta-feira e eu
mesma busco na quinta”, conta
Fernanda. Tem ricota, stracchi-
no, mussarela...
Os produtos são repassados
aos clientes com uma pequena
margem para ajuda nos custos.
“Não é hora para pensar em lu-
cro. Precisamos nos unir para
sobreviver”, acredita Fernan-
da. Além da venda in loco – as
duas unidades da gelateria es-
tão abertas para take away –, dá
para comprar pelo Rappi.

Leve três, pague um frete. Pa-
ra além dos restaurantes, produ-
tores também têm se articulado
conjuntamente na tentativa de
promover suas vendas no vare-
jo. Eugênio e Márcia Basile, da
MBee, contam que até antes da
pandemia, a venda de meles pa-
ra restaurantes e hotéis repre-
sentava 70% do faturamento da
empresa. Hoje, com a maioria
dos estabelecimentos fechados,
a parcela corresponde a 5% da
receita. “Sem os restaurantes, ti-
vemos que nos reinventar e
transferir nosso foco para o con-
sumidor final”, conta Eugênio.
Em busca de novos comprado-
res para o site, eles criaram a aba
“Mercadinho de Artesanais” na
loja online da empresa. Além
dos meles e de outros produtos
da marca, o cliente pode arrema-
tar itens de outros produtores
artesanais parceiros, como o do-
ce de leite de vacas Jersey da
Goldy, de Itu (SP), o azeite extra-
virgem da Olibi, de Aiuruoca
(MG), e o café especial da Aro-
mas de Bragança, e pagar um úni-
co frete. Com a iniciativa, as ven-
das online
cresceram
20%.
As parcerias


  • com foco no
    consumo do-
    méstico – de-
    ram origem a
    coproduções,
    como o recém-lançado presun-
    to artesanal da Cold Smoke, cu-
    ja peça de pernil passa por sal-
    moura com ervas frescas e mel
    MBee, e as geleias da Dona Do-
    ceira (jabuticaba, mexerica
    com pimenta e acerola), todas
    adoçadas com mel, prometidas
    para entrar no site ainda essa
    semana.
    Na mesma toada, a mestre
    queijeira Heloisa Collins, do Ca-
    pril do Bosque, encontrou na
    parceria com outros pequenos
    produtores da Mantiqueira o
    atrativo que buscava para mon-
    tar suas cestas – o estoque da
    queijaria estava abarrotado de
    queijos produzidos para uma fei-
    ra de artesanais, cancelada por
    causa da quarentena.
    Em vez de montar combos
    com variações de queijos de ca-
    bra – voltados para um público-
    alvo bastante específico –, prefe-
    riu reunir produtos de diversas
    marcas da região (embutido, ge-
    leia, chutney, café, queijos de lei-
    te de vaca e de ovelha), aumen-
    tando as chances de fisgar o con-
    sumidor. O frete é único (R$ 30)
    com entregas às quartas, quin-
    tas e sextas-feiras para toda a ci-
    dade de São Paulo.


lVendo seu WhatsApp disparar
de mensagens com pedidos de
indicações de onde encontrar
ingredientes e produtos de quali-
dade durante a quarentena, a em-
presária catalã Joana Munné,
que comanda a agência especiali-
zada em produções gastronômi-
cas Síbaris, viu na demanda uma
oportunidade de ajudar os dois
lados da cadeia, produtores e
consumidores. Reuniu em um só

espaço a Dispensa Sibarita, co-
mo chamou a plataforma, produ-
tos de diferentes produtores e
marcas, como uma grande lista
de fornecedores.
O site (sibaris.com.br/dispen-
sa-sibarita) estreou ontem e já
conta com mais de 30 marcas,
que, em alguns casos, até então,
eram apenas encontradas em
mercados especializados ou for-
necendo para restaurantes – en-
tre eles, cafés, meles, azeite, ar-
roz, queijos, embutidos, peixes
frescos, pães, fermentados, vi-
nhos e orgânicos. Sem taxas ou
intermediários, a Dispensa tem
apenas o intuito de facilitar o

acesso do consumidor final a es-
ses pequenos produtores, unindo
as duas pontas da rede gastronô-
mica e, assim, incentivar o consu-
mo e a valorização dos produtos
nacionais. “Qualquer forma de
incentivo ao maior consumo de
produtos artesanais brasileiros é
bem-vinda neste momento, e tor-
ço muito para que essa tendên-
cia, da valorização do local, per-
maneça após a pandemia”, afir-
ma Joana. A plataforma estará
em constante atualização, e os
produtores que tiverem interesse
em participar podem mandar
uma mensagem para o Insta-
gram @agenciasibaris.

PERTO

Chefs e pequenos produtores somam forças e criam mercadinhos


para que produtos cheguem mais fácil na casa dos clientes


CAPRIL DO BOSQUE
CESTAS DE PRODUTORES
ARTESANAIS DA MANTIQUEIRA
PEDIDOS: CAPRILDOBOSQUE.COM.BR
CORRUTELA


CESTA COM 10 LEGUMES E VEGETAIS,
2 HORTALIÇAS, 1 LITRO DE LEITE (R$ 120)
PEDIDOS: 3032-2443 OU
[email protected] (ENTRE-
GA TODAS AS QUARTAS-FEIRAS)

DISPENSA DEL BORGO
PRODUTOS: QUEIJOS E EMBUTIDOS
PEDIDOS: GOOMER.APP/BORGO-MOOCA
MERCADINHO DE ARTESANAIS MBEE
PRODUTOS: MÉIS, DOCE DE LEITE, PÃO

DE MEL, GELEIAS, CHOCOLATES, CAFÉ,
AZEITES, QUEIJOS, PRESUNTO, GHEE
PEDIDOS: LOJAMEBEE.COM.BR (BRASIL)
OU 97230-1642 (SÃO PAULO)
MERCATO EVVAI

PRODUTOS: QUEIJOS, COGUMELOS CON-
GELADOS, AZEITE, MEL, ITENS DE SALU-
MERIA, VINHOS
PEDIDOS: IFOOD
MERCEARIA DA ALBERO

PRODUTOS: QUEIJOS, CASTANHAS, MEL,
CHOCOLATE, CAFÉ E VINHOS
PEDIDOS: RAPPI OU TAKE AWAY
R. JOAQUIM ANTUNES, 391, PINHEIROS
AL. TIETÊ, 198, JARDIM PAULISTA

ARTESANAIS MAIS


Comer*


Despensa de chef. Cesta do Corrutela traz ingredientes dos fornecedores do restaurante

BRUNO GERALDI

CESAR COSTA

CONEXÕES:


ESTREITANDO


A CADEIA


Mercearia. Cantinho dentro da Albero dei Gelati reúne produtos de fornecedores, os mesmos usados como matéria-prima para os gelatos da casa

Paladar

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