O Estado de São Paulo (2020-06-18)

(Antfer) #1

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A6 Política QUINTA-FEIRA, 18 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


WILLIAM


WAACK


“B


ola no chão”, disse o gene-
ral Hamilton Mourão, o
porta-voz político do ti-
me dos militares no governo, refe-
rindo-se ao enfrentamento entre
Executivo e Judiciário, a questão
mais relevante e perigosa no mo-
mento. Ao sugerir como tratá-la, o
general recorreu a uma frase da fol-
clórica figura de Neném Prancha
(1906-1976), que foi roupeiro, mas-
sagista, técnico e filósofo do futebol
brasileiro: “A bola é de couro, o cou-
ro vem da vaca, a vaca come a grama,
então bola no chão”.
Mas também o time do outro lado,

o do STF, parece ter adotado uma frase
de outra figura folclórica do futebol bra-
sileiro, a do técnico Zezé Moreira (1907-
1998), que assim descrevia a vantagem
de jogar em casa mesmo contra equipes
consideradas muito mais fortes: “Lá em
casa até boi vira vaca”. De fato, o STF
está jogando em casa. E no ataque.
Não se trata apenas da questão dos
inquéritos que o Supremo dirige e que
são clássicos do “follow the money” pa-
ra chegar a quem organizou e financiou
ações contra instituições democráticas


  • a principal razão do nervosismo no Pla-
    nalto. Nem do formidável arsenal de me-
    didas com o qual o STF já vinha impon-


do limites ao Executivo, muito evidente
quando o Judiciário definiu o papel dos
entes da Federação na crise de saúde.
Ministros do Supremo, articulados a
uma vasta comunidade de operadores
no campo do Direito (acadêmicos, ad-
vogados, juízes, procuradores), derru-
baram com notável rapidez uma inter-
pretação do artigo 142 da Constituição
favorável a colocar as Forças Armadas
como uma espécie de “poder modera-
dor” entre os Poderes. “Isso é terrapla-
nismo constitucional”, resumiu o mi-

nistro Luís Barroso, trazendo a filoso-
fia de Neném Prancha para o campo
jurídico. Em outras palavras, sumiu a
justificativa “técnica” ou “constitucio-
nal” ou “legal” para qualquer interven-
ção política das Forças Armadas.
Pior ainda para o time do Planalto: o

do STF ganhou um reforço considerá-
vel com a postura do procurador-geral
da República – que o presidente tinha
constrangido em público, obrigando
Augusto Aras não só a ser “técnico” nas
suas ações, mas a parecer ser. E ser “téc-
nico” neste âmbito significa que a PGR
e o STF tocam juntos os inquéritos que
tanto irritam o Planalto e os militares.
Em termos das personalidades en-
volvidas na disputa, talvez a expressão
mais eloquente da grave tensão entre
os poderes Judiciário e Executivo este-
ja na evolução das posturas do presi-
dente do Supremo, Dias Toffoli, e do
ministro da Defesa, general Fernando
Azevedo, considerado entre seus pa-
res como uma brilhante cabeça políti-
ca. Então chefe do Estado-Maior do
Exército, Azevedo foi deslocado em
2018 para ser o principal assessor de
Toffoli, que havia acabado de assumir
a presidência do STF.
Naquela época, a ideia era promover
um esforço conjunto (militares e juí-
zes) para pacificar um delicado am-

biente pré-eleitoral. Hoje, Toffoli
enxerga “dubiedade” nas posturas
do chefe do Executivo frente às insti-
tuições democráticas. Enquanto
seu ex-assessor, atual ministro da
Defesa, assina uma nota com o presi-
dente da República e seu vice afir-
mando que as Forças Armadas “não
aceitam a tomada do poder por ou-
tro Poder por conta de julgamentos
políticos” – referência também aos
inquéritos do STF, da PGR e do TSE,
vistos no Planalto como ferramenta
política para derrubar um governo
eleito com 57 milhões de votos.
A natureza, o alcance e a profundi-
dade das crises de saúde pública e
econômica acuariam por si qualquer
governo brasileiro, mas o de Bolso-
naro se empenhou em agravar tam-
bém a crise política, com o resultado
de ter de jogar na defesa nas três.
Neném Prancha definia o futebol co-
mo um jogo muito simples: “Quem
tem a bola ataca, quem não tem, de-
fende”. A bola está com o STF.

BRASÍLIA


O presidente Jair Bolsonaro
adotou ontem um discurso
dúbio sobre a reação do gover-
no às decisões do Supremo
Tribunal Federal que têm
atingido seus aliados. Na pos-
se do ministro das Comunica-
ções, Fábio Faria, Bolsonaro
citou o “povo” como escudo,
na tentativa de blindar o go-
verno, mas à noite subiu o
tom e comparou o que vem pe-
la frente a uma “emboscada”.
Menos de 24 horas após ter di-
to que não poderia assistir ca-
lado a “abusos”, o presidente
oscilou entre a fúria e sinais
de paz na direção do STF.

“É igual a uma emboscada.
Tem que esperar o cara se aproxi-


mar, vem mais. Vem jogando
ovo, pedra. Chega mais, chega
mais (...) Não quero medir forças
com ninguém, (mas) continua
vindo”, afirmou Bolsonaro ao fa-
lar com apoiadores, no Alvorada,
pouco antes de participar ali mes-
mo do ato de arriamento da ban-
deira ao lado do comandante do
Exército, Edson Pujol. No dia do
julgamento da validade do in-
quérito das fake news e depois de
o ministro do Supremo Alexan-
dre de Moraes autorizar a quebra
de sigilo bancário de 11 parlamen-
tares bolsonaristas, o presidente
mandou recados à Corte.
“Não são as instituições que
dizem o que o povo deve fazer.
É o povo que diz o que as insti-
tuições devem fazer”, afirmou
Bolsonaro, sob aplausos, em ce-

rimônia no Planalto. Sentado a
poucos metros dele, o presiden-
te do Supremo, Dias Toffoli,
não aplaudiu de início, mas aca-
bou se rendendo.
“Temos de fazer valer os valo-
res da democracia para que con-
sigamos atingir o nosso objeti-
vo. Nosso povo espera liberda-
de. Temos uma Constituição.
Em que pese alguns de nós não
concordarem com alguns arti-
gos, temos o compromisso de
honrá-la e respeitá-la para o
bem comum”, disse Bolsonaro.
Na mesma linha, o novo mi-
nistro das Comunicações disse
que é preciso focar no combate
ao coronavírus. “É hora de paci-
ficar o País”, disse Faria, que foi
eleito deputado pelo PSD do
Rio Grande do Norte e é genro
do apresentador Sílvio Santos.
A cerimônia contou com inte-
grantes do Centrão, como os
presidentes do PSD, Gilberto
Kassab; do Republicanos, depu-
tado Marcos Pereira, e do Pro-
gressistas, senador Ciro No-
gueira. O Ministério das Comu-
nicações foi desmembrado da
pasta de Ciência e Tecnologia,
que continuará sob o comando
de Marcos Pontes. Responsável
pela publicidade do governo, a
Secretaria Especial de Comuni-
cação passou para o guarda-chu-
va da pasta dirigida por Faria.

‘Abuso’. Pouco antes da soleni-
dade, Bolsonaro se reuniu com
um grupo de militantes, nos jar-
dins do Alvorada. Ali, seu discur-

so era mais aguerrido. “Eu não
vou ser o primeiro a chutar o
pau da barraca. (Mas) eles estão
abusando. Isso está a olhos vis-
tos. O ocorrido no dia de ontem
(anteontem) , quebrando sigilo
de parlamentares, não tem em
história nenhuma vista em uma
democracia, por mais frágil que
ela seja”, disse o presidente, em-
bora essa prática já tenha sido
adotada várias vezes. “Então, es-
tá chegando a hora de tudo ser
colocado no devido lugar.”
Mesmo sem citar o STF, Bolso-
naro não deixou dúvidas sobre o
destinatário de suas mensagens,
tratando os magistrados por
“eles”. Não é de hoje que o presi-
dente se queixa de que decisões
da Corte e do Congresso inva-
dem atribuições do Executivo e
parecem feitas sob medida para
derrubá-lo. No último dia 27, um
dia depois de o Supremo fechar
o cerco contra o “gabinete do
ódio”, Bolsonaro fez ameaças e
disse que “ordens absurdas não
se cumprem”, agravando a crise.
Após a deflagração da opera-
ção de anteontem no inquérito
que investiga atos antidemo-
cráticos organizados por alia-
dos, no entanto, Bolsonaro fi-
cou em silêncio por algumas ho-
ras. Pressionado nas redes, po-
rém, falou em “abuso”. “Só pode
haver democracia onde o povo é
respeitado, onde os governados
escolhem quem irá governá-los
e onde as liberdades fundamen-
tais são protegidas.” / VERA ROSA,
JULIA LINDNER e JUSSARA SOARES

O STF no ataque


]
ANÁLISE: Carlos Melo

GABRIELA BILO/ESTADÃO

O governo está na defensiva
contra um adversário que se
sente jogando em casa

A


té por gestos e pensamentos, presi-
dentes da República devem prezar a
Constituição a que juraram defen-
der. Não podem fazer a interpretação que
lhes convém. De acordo com a lei, o guar-
dião da Constituição é o Supremo Tribunal
Federal. O título “supremo” não é mera fi-
gura de linguagem. É o STF quem arbitra o
jogo das leis. Para mudar isso, só por meio

de uma Constituinte – talvez.
Assim, o ministro do STF Alexandre de
Moraes tem autorizado sindicâncias que
atingem aliados do presidente, não por se-
rem aliados, mas por suspeitas e indícios de
estarem envolvidos com atos ilegais; não se
lhes questiona a liberdade de expressão
nem o direito de exercê-la, mas ações con-
cretas que poderiam ir de encontro à lei.
Moraes é experiente, tendo passado por vá-
rias esferas de poder, nesse campo. Sabe
qual ferida tocar e, pelo jeito, tem causado
muita dor e receio ao bolsonarismo.
Noutros governos, parlamentares, empre-

sários e operadores políticos passaram por
processos semelhantes; foram presos justa-
mente por terem agido fora da lei. O que
contou com o entusiasmo do então deputa-
do e de seus aliados, que ora se encontram
sob o mesmo rigor, o rigor da lei. Mas, agora,
tudo parece causar desconforto e até desa-
lento ao presidente, temeroso de ver ruírem
as redes de enfrentamentos às instituições
e a imprensa paralela criadas em seu favor e
em sua proteção. Além disso, os processos
podem chegar ao Tribunal Superior Eleito-
ral e colocar em risco o próprio mandato.
O que Bolsonaro poderia contra isso? Es-

perar que os envolvidos, não ele, recorram
contra o que considerarem ilegal, nos ter-
mos da lei. Politicamente, acionar o Legisla-
tivo para alterar a legislação, uma vez que
tenha maioria para fazê-lo – o que não tem.
Recorrer à “força bruta”, dentro da lei, não
pode. E, se não pode, melhor não insinuar.
Presidentes da República podem muito,
mas não tudo. Milhões de votos não lhes
dão a voz do “povo”, apenas responsabilida-
de perante a lei. São eleitos, não ungidos.

]
CIENTISTA POLÍTICO. PROFESSOR DO INSPER

lO governador do Distrito Fede-
ral, Ibaneis Rocha (MDB), disse
que a Polícia Militar tinha meios
para impedir o ataque ao Supre-
mo ocorrido no fim de semana.
“Um foguetório daquele, hoje em
dia com as inteligências e tudo,
era para se saber. E outra, aque-
les fogos duraram mais de 15
minutos. Onde a Polícia Militar
estava nessa hora?”, questionou.
Ele afirmou ainda que continuará
impedindo atos antidemocráticos
na capital federal. “Não vou admi-
tir baderna.” / DANIEL WETERMAN

Corte quebrou


sigilo de Temer


e parlamentares


Sob o simples


império da lei


‘Onde a PM estava?’,


questiona Ibaneis


Bolsonaro mantém


discurso dúbio após


ações contra aliados


A apoiadores, presidente classificou quebra de sigilo de deputados


como ‘abuso’; na frente de Toffoli, falou em respeito à Constituição


Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA

Antes de quebrar o sigilo bancá-
rio de um senador e dez deputa-
dos bolsonaristas, o Supremo
Tribunal Federal (STF) já havia
adotado a mesma medida con-
tra parlamentares em exercício
de mandato e contra o ex-presi-
dente Michel Temer. Ao falar
com apoiadores, ontem, na saí-
da do Palácio da Alvorada, o pre-
sidente Jair Bolsonaro disse
que a quebra de sigilo de parla-
mentares “não tem história ne-
nhuma vista em uma democra-
cia, por mais frágil que ela seja”.
Entre as autoridades que já ti-
veram dados bancários vascu-
lhados por decisão da Corte es-
tão os senadores Renan Calhei-
ros (MDB-AL), Fernando Col-
lor (PROS-AL) e Jader Barba-
lho (MDB-PA), além dos depu-
tados Aécio Neves (PSDB-MG)
e Gleisi Hoffmann (PT-PR).
A decisão do ministro do STF
Alexandre de Moraes pela que-
bra do sigilo bancário dos parla-
mentares bolsonaristas, aten-
dendo a um pedido da Procura-
doria-Geral da República, é a “di-
ligência mais natural possível”
para pessoas públicas, disse o
procurador regional da Repúbli-
ca Blal Dalloul. “Diligências des-
se porte não constituem, de for-
ma alguma, novidades numa de-
mocracia fortalecida.”
Em fevereiro de 2018, o minis-
tro Luís Roberto Barroso autori-
zou a quebra do sigilo bancário
do então presidente Michel Te-
mer no inquérito que investiga-
va irregularidades na edição do
decreto dos portos. A medida
havia sido pedida pelo delegado
da Polícia Federal Cleyber Mal-
ta. Na época, Temer divulgou
uma nota informando que soli-
citaria ao Banco Central os ex-
tratos de suas contas bancárias
e que não tinha “nenhuma preo-
cupação com as informações”.

Lava Jato. Em 2016, o minis-
tro Teori Zavascki determinou
a quebra do sigilo bancário do
então presidente da Câmara,
Eduardo Cunha (MDB-RJ), na
Lava Jato. Teori também ado-
tou a medida contra Collor na
apuração sobre desvios na Pe-
trobrás. Já o então senador Aé-
cio Neves teve o sigilo quebrado
por ordem do ministro Marco
Aurélio Mello em 2017. Na épo-
ca, o ministro considerou indis-
pensável o acesso às informa-
ções para rastrear a origem e o
destino de recursos suposta-
mente ilícitos nas investigações
em torno da delação da JBS.

Fábio


Faria


assume


pasta


O deputado
Fábio Faria
(PSD-RN)
tomou posse
ontem como
ministro das
Comunicações.
Ele defendeu
um “armistício
patriótico”
diante dos
presidentes do
Supremo, Dias
Toffoli, e da
Câmara,
Rodrigo Maia,
além de líderes
do Centrão.

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