O Estado de São Paulo (2020-06-19)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:B-8:20200619:
B8 Economia SEXTA-FEIRA, 19 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


PEDRO


DORIA


S


eja pelo inquérito de fake news ,
seja pelo que investiga as ori-
gens dos atos antidemocráti-
cos, o STF pegou o caminho reco-
mendado por nove entre dez espe-
cialistas que lidam com noticiário
falso: siga o dinheiro. Se tudo der cer-
to e aqueles responsáveis por finan-
ciar a falsificação da realidade para
desorientar o eleitor forem pegos e
responderem pelo crime, outros
pensarão duas vezes. Mas as mudan-
ças tecnológicas nos obrigam a enca-
rar duas questões cruciais difíceis pa-
ra o futuro da democracia brasileira.
O primeiro é um ponto em geral

pouco compreendido a respeito de
fake news. O problema não são as notí-
cias falsas per se. Elas causam dano
pontual, mas o impacto maior está no
conjunto e no ambiente que permite
sua distribuição.
Este é um ponto que o físico Augusto
de Franco, um geek de democracia que
mergulhou no tema a ponto de conhe-
cê-lo com profundidade ímpar, chama
atenção. Em toda história deste ciclo
democrático que se iniciou na Inglater-
ra do século 17, tivemos sempre uma
esfera pública. Um ambiente comum
no qual as opiniões sobre os temas rele-
vantes da sociedade eram debatidos.

Panfletos no século 18, conversas nos
cafés do 19 ou as ondas de rádio e TV no
20, o debate sempre teve como premis-
sa um conjunto comum de fatos a res-
peito do qual todos concordavam.
O que as plataformas de mídias so-
ciais e apps de mensagens criaram, nes-
te século 21, são várias esferas públicas.
Não uma ou duas – várias. Cada comuni-
dade de interesses comuns tem a sua
própria, acompanhada de premissas par-
ticulares e seu conjunto de fatos. Em es-
sência, a sociedade se dividiu em tribos e
cada uma vive numa realidade própria.

É por isso que fake news muitas vezes
soam absurdas por completo a um gru-
po e, no entanto, parecem plausíveis a
outro. Este ambiente de várias esferas
públicas é o que viabiliza guerras cultu-
rais, choques de valores profundos nos

quais nos metemos. Jair Bolsonaro, cá
no Brasil, é um presidente minoritário.
Chegou ao Planalto levado por pouco
mais de um terço dos eleitores aptos e
hoje conta com, de acordo com a maio-
ria das pesquisas, algo mais próximo
do um quarto dos brasileiros. E caindo.
Se há várias esferas públicas, porém,
cada qual com sua visão muito particu-
lar da história recente do país, cada
uma num contínuo espanto perante a
‘cegueira’ de todos os outros que não
pertencem à tribo, uma pergunta se
impõe. Será possível voltar a eleger um
presidente razoavelmente consensual
como foram, em suas primeiras elei-
ções, Fernando Henrique e Lula? E, se
estamos para encarar um futuro de pre-
sidentes minoritários, será que a demo-
cracia aguenta o tranco? O problema
não é apenas brasileiro.
A manipulação de notícias falsas po-
de ser contida com a aplicação da lei.
Mas a fragmentação da realidade é
bem mais complicada.
De qualquer forma, cá no Brasil tere-

mos outro debate pela frente. E tem
a ver com liberdade de expressão.
Na segunda metade do século 20, os
EUA formaram uma visão bastante
tolerante com opiniões mais radi-
cais. A Europa, não. A diferença está
no fato de que os europeus reconhe-
ceram em si um bug cultural.
Populistas e demagogos que ex-
ploram preconceitos longevos, prin-
cipalmente o antissemitismo, em
momentos de crise são capazes de
mobilizar as massas e promover e
por em risco a democracia. Não é
paranoia. Aconteceu agora, na Hun-
gria, onde Viktor Orbán assumiu po-
deres totais. Sua ascensão começou
explorando justamente este veio,
apontando para o investidor Geor-
ge Soros como, no passado, os nazis-
tas apontaram para os banqueiros
da Casa Rothschild.
Cá no Brasil temos também o nos-
so bug cultural, que volta e volta e
põe em risco a democracia. É o cha-
mamento por intervenção militar.

Negócios


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


ENTREVISTA


Bruno Romani


A indústria do turismo foi uma
das primeiras a sentir o impac-
to da crise causada pelo corona-
vírus – estimativas alertam para
um encolhimento de até 30%
no setor global. O cenário é
bem diferente do que imagina-
va o Airbnb, um dos principais
nomes do setor no mundo. No
começo do ano, previa-se que a
empresa abriria o capital, mas a
nova realidade mostrou-se
mais dura: o Airbnb demitiu
25% de seus funcionários, inclu-
indo gente no Brasil.


Por aqui, o comando da em-
presa está nas mãos de alguém
que já passou por outras crises
em empresas de tecnologia.
Leonardo Tristão estava no
Google na crise de 2008, e pas-
sou outros quatro anos no Face-
book. Ainda assim, ele conside-
ra que a pandemia é a pior crise
pela qual já passou na carreira.
Mesmo com os desafios e in-
certezas, ele afirma que as pes-
soas não vão parar de viajar,
mas a maneira de como turismo
vai se desenvolver no momento
pós crise é diferente. Talvez se-
ja a hora de esquecer Paris ou
Londres – e quem sabe curtir
um destino mais próximo, co-
mo uma chácara em Sorocaba.

lComo foram os últimos três
meses para o Airbnb no Brasil?
Difíceis e complexos, como pa-
ra todos. A pandemia é algo
que a nossa geração nunca viu.
Por sermos globais, monitora-
mos o impacto desde janeiro.
Quando o vírus chegou à Euro-
pa, foi o alerta de que não seria

algo restrito à China. Nosso pri-
meiro momento foi de respei-
tar e ter sintonia com as orien-
tações das autoridades sanitá-
rias. Criamos o protocolo de
cancelamento, favorecendo o
isolamento social. E mudamos
nosso foco para entender os ca-
sos de uso do Airbnb. A ativida-
de não parou e vimos sinais de
segmentos que até cresceram
durante o confinamento.

lHouve tendências de cresci-
mento detectadas? Quais?
Estadias de longa duração, aci-
ma de 28 dias, na mesma cida-
de em que a pessoa mora – em
especial, por locais maiores
em centros urbanos. Houve
crescimento de reservas de ca-
sas com 3 quartos ou mais du-
rante a pandemia. Em abril, es-
se tipo de estadia cresceu 34%
em relação ao mesmo período
de 2019. Em maio, o crescimen-
to foi de 42%. Ou seja, as pes-
soas estão usando o Airbnb pa-
ra fazer isolamento. Fizemos
um trabalho para que a comu-
nidade adotassem políticas
mais flexíveis e preços mais
atrativos para reservas longas.

lQual é a expectativa de retoma-
da de negócios no País, dado que
cada Estado lida com a pandemia
de uma forma e que talvez ainda
não tenhamos chegado ao pico?
Se olharmos o comportamen-
to do consumidor, vemos três
tendências que fazem parte da
retomada. Alguns sinais já apa-
recem aqui. Um é o turismo do-
méstico ultralocal. Cidades
perto dos grandes centros ou
de onde a pessoa vive são a bo-
la da vez. As pessoas não vão
parar de viajar. Elas vão procu-
rar fazer viagens de carros e já
vemos isso nos EUA. No Bra-

sil, estamos medindo o interes-
se em viajar no volume de bus-
cas na plataforma e isso já cres-
ceu, quando olhamos para o ve-
rão de 2021. Isso leva ao que
chamo de descentralização do
turismo. Haverá menos turis-
mo de massa e mais em cida-
des fora do eixo de turismo. A
terceira tendência é aspecto
de limpeza e higienização. Ve-
mos cada vez mais hóspedes
tentando entender do anfi-
trião questões de limpeza.

lHaverá menos estrangeiros
visitando o Brasil?
Acho que é cedo para cravar is-
so. Se for pelo câmbio, existe
uma facilidade muito maior
dos estrangeiros virem. Temos
uma desvalorização que já che-
gou a 40%, então está barato Se

o Brasil fizer o trabalho direito
e arrumar casa na retomada,
acho que o câmbio favorece.

lMesmo barato, ser o epicentro
global da pandemia não parece
muito encorajador...
Estamos falando de um período
curto. Se a gente falar de Réveil-
lon, não consigo ter sinais. Espe-
ramos que até lá, o pico tenha fi-
cado para trás. Se tiver uma se-
gunda onda, é outro cenário.

lO Airbnb vai entrar no mercado
imobiliário tradicional de aluguel,
como faz o QuintoAndar?
Não podemos especular. Hoje,
os aluguéis estendidos de curta
temporada cresceram, mas não
saem do nosso modelo. Isso não
indica que o Airbnb irá entrar
num mercado mais tradicional.

lO sr. já esteve em outros gran-
des empresas de tecnologia, co-
mo Facebook e Google e passou
por crises. Essa é a pior delas?
Sem dúvidas. É a crise mais di-
fícil, porque não é de um país
ou de um segmento. Quando
existe uma crise, uma recessão,
você sabe que ela vai passar –
vai durar dois, três trimestres.
Há projeções de modelo que
mostram possíveis sinais de re-
tomada, comportamentos de
consumo. Agora, é diferente.
Cada dia parece um ano. É pre-
ciso entender e diagnosticar co-
mo priorizar o foco estratégico,
porque tem um componente
de incerteza e as empresas pre-
cisarão se adaptar muito rápi-
do. O nosso planejamento não
é anual. É mensal, porque todo
dia tem uma dinâmica nova.

O empresário Nevaldo Rocha,
fundador do Grupo Guarara-
pes, dono da Lojas Riachuelo,
morreu na noite de quarta-fei-
ra, 17, em Natal, aos 91 anos. O
grupo teve origem em 1947, em
uma loja que Nevaldo abriu
com o irmão, Newton. O cresci-
mento da rede se deu ao longo
de décadas, culminando na
compra da Riachuelo, em 1979.
Uma das principais redes de


confecções no País, ao lado de
Renner e C&A, a Guararapes se
diferencia das concorrentes pe-
lo formato verticalizado de
seus negócios. Ao contrário das
rivais, que compram roupas de
fornecedores terceirizados, a re-
de da família Rocha é dona das
fábricas que produzem as rou-
pas, dos caminhões que fazem a
logística, das lojas e também da
financeira responsável pelo cre-
diário ao consumidor.
A partir dos anos 1980, a se-
gunda geração dos Rocha come-
çou a participar da gestão. Foi
nessa época que a Riachuelo
passou a juntar o produto de
preço competitivo à informa-
ção de moda. Nos últimos 15

anos, a rede tem realizado vá-
rias parcerias com estilistas fa-
mosos, fazendo a “ponte” entre
o popular e o luxo. Mesmo de-
pois de ter repassado o coman-
do para a segunda geração, Ne-
valdo costumava frequentar a
sede da Guararapes e a acompa-
nhar de perto o dia a dia.
Nevaldo Rocha deixa três fi-
lhos – Lisiane, Élvio e Flávio Ro-
cha, este último presidente do
conselho de administração do
Grupo Guararapes – e 11 netos.
Flávio, que só recentemente
deixou as funções executivas
na Guararapes, foi responsável
pela expansão da rede, que ti-
nha 323 lojas ao fim de março de


  1. Entre janeiro e março,


mesmo sentindo os primeiros
efeito da pandemia do covid-19,
a receita líquida da rede supe-
rou R$ 1,6 bilhão.

Trajetória. Nascido em Caraú-
bas (RN) teve uma infância hu-
milde no sertão nordestino. A
sua trajetória como empreende-
dor é marcada por ousadia e su-
peração desde cedo. Com ape-
nas 12 anos, ele partiu para Na-
tal em busca de trabalho.
Em nota, o grupo Guararapes
declarou que, com o falecimen-
to de Nevaldo, “perde um gran-
de líder” “E o Brasil perde um
entusiasta do empreendedoris-
mo, que defendia o papel social
da iniciativa privada para a cons-
trução de um país melhor e
mais justo, com trabalho e edu-
cação de qualidade para todos”,
diz a companhia, em nota.

Para chefe do Airbnb no


País, turismo no curto


prazo será ‘ultralocal’,


com viagens de carro e


para destinos próximos


Fundador da Riachuelo começou a trabalhar aos 12 anos


JF DIORIO/ESTADÃO

Siga o dinheiro


Se há várias esferas públicas,
será possível voltar a eleger
um presidente ‘consensual’?

E-MAIL:[email protected]
TWITTER: @PEDRODORIA
PEDRO DORIA ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Dificuldade. Para Tristão, ex-Google e ex-Facebook, crise atual é a pior de sua carreira

‘As pessoas


não vão


deixar de


viajar’


Leonardo Tristão, diretor-geral do Airbnb no Brasil


Aposta. Rocha: Riachuelo tem operação verticalizada

JUNIOR SANTOS/TRIBUNA DO NORTE–3/5/2013

NEVALDO ROCHA H 1928 = 2020


Criado em 1947, grupo


Guararapes incorporou a


Riachuelo; rede cresceu


e faturou R$ 1,6 bi só


no 1º trimestre de 2020

Free download pdf