O Estado de São Paulo (2020-06-19)

(Antfer) #1

Leandro Nunes


Humanizar personagens tem si-
do a grande tônica de muitos ro-
teiros de produção seriada. Há al-
guns anos, pipocaram histórias
de personagens excêntricos, pu-
blicamente – e repletas de segre-
dos na intimidade. Hoje, a força
de um protagonista parece estar
em encarar os desafios da realida-
de, sem máscara, com a cara e a
coragem que se tem.
De fato, o problema do conví-
vio social está mais complexo
nos últimos tempos e ainda ga-
nhou novos contornos. Algo ca-
paz de provocar inveja em qual-
quer história de ficção científica
ou de super-heróis. Desde en-
tão, as séries se tornaram ma-
nuais da vida, seja sobre o tempo
presente ou sobre o passado, co-
mo Coisa Mais Linda , situada nos
anos 1960, no Rio de Janeiro,
que estreia sua segunda tempo-
rada nesta sexta, 19, na Netflix.
Em entrevista ao Estadão , as
protagonistas concordam que
ainda é motivo de choque inter-
pretar personagens casadas
que precisam de autorização pa-
ra pedir a separação, ou o des-
quite, como se dizia naquele
tempo. “Muitas conquistas fo-
ram feitas. A estrutura que man-
tinha esse controle sobre as mu-
lheres mudou”, aponta Maria
Casadevall. “Mas sabemos que


ainda tem espaço para mais
avanço.” Na série, ela interpre-
ta Malu, uma paulistana que ex-
perimentou o abandono do ma-
rido na primeira temporada. Pa-
ra dar um rumo à própria vida,
decidiu se mudar para o Rio
com a intenção de abrir um bar
com música ao vivo, o Coisa
Mais Linda, incentivada pela
amiga de infância Lígia (Fernan-
da Vasconcellos).
Na boemia carioca, Malu vai

conhecer um time de mulheres
que segue em uma busca seme-
lhante: conquistar espaço em
um mundo dominado por ho-
mens. A jornalista independen-
te Thereza, papel de Mel Lisboa,
tenta equilibrar o trabalho com
os amores e Adélia, interpreta-
da por Pathy Dejesus, o trabalho
como empregada doméstica e
mãe solteira. “Na primeira tem-
porada, a gente fica mais íntima
das características de cada uma,

na diversidade de cada vivência
e na força que encontram jun-
tas”, aponta Mel Lisboa.
Mas sacudir o patriarcado
tem seus riscos e atinge cada
uma a partir do que ainda san-
gra na sociedade, como o racis-
mo. Quem assistiu à primeira
temporada vai testemunhar um
cena delicada, em que Adélia é
impedida de ocupar o elevador
social do prédio em que traba-
lha. “Quando falamos de femi-

nismo, precisamos levar em
conta que é diferente para cada
tipo de mulher. Naquela época,
os negros tinham poucos direi-
tos e a mulher negra menos ain-
da”, ressalta Pathy.
A censura e a opressão se ma-
nifestam na vida das outras, co-
mo Lígia, que é constantemen-
te violentada pelo marido. Os
desdobramentos desse caso se-
rão revelados na segunda tem-
porada, explica Larissa Nunes,
que ganha mais espaço na con-
tinuação como Ivone, irmã de
Adélia. “Elas sofrem um gran-
de trauma que as leva a um pro-
cesso de autonomia. Agora,
elas podem divergir e ainda
manter a união.” Ivone tem o
dom de uma bela voz, mas não
acredita no talento. A insatisfa-
ção com um trabalho infeliz a
aproxima de Malu e Thereza.
“Ela também vê Adélia, sua ir-
mã, transformando a própria vi-
da e se inspira a abandonar
uma postura mais tímida.”
Para elas, a diferença entre
seus corpos é determinante pa-
ra a vivência social. Os confli-
tos de Adélia como mulher ne-
gra ganham eco diante dos últi-
mos protestos por causa da vio-
lência policial contra pessoas
negras, nos EUA e no Brasil.
“Não podemos estar alienadas
dessa questão, porque conti-
nua acontecendo. O retrocesso
é perigoso”, afirma Pathy.
Nos quatro primeiros episó-
dios vistos pela reportagem, o
tumulto que encerrou a primei-
ra temporada ainda provoca
mal-estar, junto ao desejo por
transformação. A jornalista
Thereza encara novos desafios
profissionais em um programa
de rádio, Adélia diz sim para
questões do amor, com direito
a cenas no Copacabana Palace,
Ivone ganha confiança para
apostar em seu talento musical
e a dona do Coisa Mais Linda,
Malu, organiza uma noite de
drinks e músicas exclusiva para
mulheres.
Mas, como sempre, o cami-
nho terá obstáculos. Em um de-
les, Malu consegue driblar os in-
teresses de um deputado, sair
de fininho, e garantir que a noi-
te das meninas seja um sucesso.

NA


DA VIDA

Na segunda temporada, ‘Coisa Mais Linda’


supera passado para emancipar as mulheres


Paladar


Testamos os cinnamon rolls PÁG. H5


QUARENTENA


MANUAL

DA BOSSA


AO SAMBA, O


RIO BRILHA


FOTOS NETFLIX

Impossível negar que a direção
da Netflix enxerga em poten-
ciais produções a oportunidade
de se comunicar com o mundo,
seja em uma série escrita e fala-
da em árabe ou alemão, e claro,
na língua portuguesa.
Há muito, o idioma deixou de
ser uma barreira, o mesmo vale
para subculturas. Mergulhar em
um universo específico nos dias
de hoje pode ser entendido como
uma chance de o público vislum-
brar hábitos e histórias a partir de
um ponto de vista particular.
Em Coisa Mais Linda essa mis-
são mudou até mesmo o plano
de divulgação da primeira tem-
porada da série da Netflix no ex-
terior. Em vez de traduzir o títu-
lo para o inglês, algo como
Most Beautiful Thing, a produ-
ção é conhecida fora do País
como Girls From Ipanema , que
dispensa explicação para os
brasileiros e para os estrangei-
ros, e destaca o sucesso históri-
co da música de Tom Jobim.
“O som nos transporta para es-
se mundo”, diz Mel Lisboa. Pa-
ra Larissa Nunes, a música tam-
bém descreve o contexto so-
cial. “A bossa estava em um lu-
gar de privilégios, enquanto o
samba era consumido como ce-
lebração, mais popular.”
O estilo dos móveis, as co-
res, grande parte recriada a par-
tir de peças originais, acompa-
nha as diferentes locações, des-
de a rádio em que Thereza tra-
balha, a casa simples de Adélia,
até a sala mais sofisticada de
Malu. “Sem dúvida, ajuda mui-
to na composição”, ressalta
Maria Casadevall. Pathy Deje-
sus conta que os figurinos ofe-
recem uma silhueta típica da
moda da época. “Quando se
ajusta a região da cintura, te dá
outra postura. Colocar uma pe-
ruca e saber que pode chacoa-
lhar foi uma coisa que precisei
testar bastante.” / L..N.

RENATA MESQUITA/ESTADÃO

Segunda temporada. Pathy Dejesus, Maria Casadevall, Mel Lisboa e Larissa Nunes enfrentam dilemas de pessoas comuns, mas que colocam mulheres em situação de desigualdade


Unidas. Após um grande trauma, amigas se unem na conquista de seus sonhos

%HermesFileInfo:H-1:20200619:H1 SEXTA-FEIRA, 19 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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