O Estado de São Paulo (2020-06-19)

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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 19 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Caderno 2


O cinema brasileiro tem data e
local de nascimento. Reza a len-
da que, no dia 19 de junho de
1898, o italiano Afonso Segreto,
a bordo do paquete Brésil, teria
registrado em sua máquina de fil-
mar imagens da Baía de Guana-
bara e arredores.
Pesquisas posteriores puse-
ram em dúvida tal filmagem.
Nunca ninguém a viu e nem exis-
tem registros confiáveis de que
tenha sido feita. O fato é que
Afonso e seu irmão Paschoal tor-
naram-se prósperos empresá-


rios do ramo do entretenimento
no Rio de Janeiro. A história é
polêmica até hoje, mas, como na-
quele famoso filme de John
Ford, se a lenda é melhor que o
fato, imprima-se a lenda.
A verdade, essa sim comprova-
da, é que o cinema chegou bem
cedo ao País e nele se desenvol-
veu com velocidade. Teve seu es-
plendor, sua belle époque, como
se diz, nas primeiras décadas do
século. Mais tarde, chegou a co-
nhecer períodos poderosos de
comunicação com o público, co-
mo nos anos 1970, quando conse-
guiu dominar cerca de 35% do
mercado interno com filmes de
apelo popular como Dona Flor e
seus Dois Maridos e A Dama do Lo-
tação. Antes disso, já havia con-

quistado a plateia popular com
as famosas chanchadas da Atlân-
tida, nas quais brilhava a dupla
Oscarito & Grande Otelo. Teve
períodos de muito prestígio no
exterior, como na época do Cine-
ma Novo. Tentou virar uma in-
dústria, tendo seu ápice nesse
empreendimento com a Compa-
nhia Cinematográfica Vera
Cruz, de duração relativamente
curta.
O cinema brasileiro também
levou grandes tombos, como o
da época do governo Collor, em
1990, quando foi na prática extin-
to durante alguns anos.
Renasceu a partir de 1994 no
processo chamado Retomada e
acabou por se consolidar num pa-
tamar bastante razoável em ter-

mos de produção – cerca de 150
longas-metragens ao ano –, em-
bora os números do público ain-
da deixassem a desejar. Esse tra-
balho de recuperação foi possí-
vel graças a incentivos fiscais, le-
gislação própria e o esforço da ca-
tegoria no sentido de que a pro-
dução se estabilizasse sem mais
sofrer solução de continuidade,
como no passado.
Ainda que com problemas a se-
rem resolvidos, o caminho do ci-
nema brasileiro no começo dos
anos 2000 parecia bem promis-
sor. Esse percurso chegou a uma
espécie de cume em 2019, com
forte presença no Festival de Ber-
lim e a premiação em Cannes de
Bacurau e A Vida Invisível. São se-
los de qualidade de dois dos mais
importantes festivais de cinema
do mundo.
Como é então que chegamos a
este 19 de junho de 2020 sem na-
da a comemorar? Depois de vi-
ver o ciclo virtuoso dos últimos
anos, a produção encontra-se pa-
rada – e não apenas por efeito da
pandemia do novo coronavírus.
É que as fontes de financiamen-
to do audiovisual foram estran-
guladas e paralisadas por pres-
são de um governo hostil à cultu-
ra como um todo e ao cinema,
em particular. Como se sabe, a
arte costuma ser crítica. E crítica
é o que menos suporta um gover-
no de vocação autoritária.
Se a tática de Collor para aca-
bar com o cinema foi a extinção
numa penada de órgãos como
Embrafilme, Concine e Funda-

ção do Cinema Brasileiro, a de
Bolsonaro opta pela asfixia len-
ta. Os órgãos de sustentação ao
audiovisual – como a Ancine –
não são dissolvidos, mas se en-
contram paralisados, presos a
garrotes burocráticos. Verbas co-
mo as do Fundo Setorial do Au-
diovisual, que abastecem os prin-
cipais editais para novas produ-
ções, continuam bloqueadas.
Após ameaças de colocar um fil-
tro ideológico nos concursos de
projetos cinematográficos, o go-
verno preferiu a solução mais
fácil de pisar no tubo de oxigênio
que abastece o setor para que ele
possa rodar. De tal modo que,
ninguém, na categoria cinemato-
gráfica, acha-se em condições de
prever o que acontecerá quando,
ao final da pandemia, as ativida-
des puderem, em tese, ser reto-
madas. Talvez já não haja o que
retomar. Esse efeito do sufoco fi-
nanceiro será sentido nos próxi-
mos anos, já a partir de 2021.
Talvez o sintoma maior da fal-
ta de sintonia do governo federal
com o audiovisual seja o descaso
com a Cinemateca Brasileira. A
instituição teve seu embrião no
Clube de Cinema, criado por
Paulo Emílio Sales Gomes, Anto-
nio Candido e Décio de Almeida
Prado, entre outros, em 1940.
Em 1956 tornou-se a Cinemate-
ca Brasileira e, com o passar dos
anos, principal guardiã da memó-
ria audiovisual do País. Em seus
melhores tempos, virou referên-
cia no restauro de filmes antigos.
Em sua sede em São Paulo, ga-

nhou duas salas de exibição, uma
delas de alta qualidade técnica.
Enfim, a Cinemateca é, ou era,
um dos raros pontos de excelên-
cia do País. Agora, após virar prê-
mio de consolação para Regina
Duarte, em sua saída, sem jamais
ter assumido, da secretaria de
Cultura, encontra-se ao deus-da-
rá. A falta de uma direção técnica
à altura da sua complexidade, e
sem dinheiro sequer para pagar
as contas de energia elétrica, co-
loca em risco um valioso patri-
mônio de material audiovisual.
A Cinemateca foi fruto de mui-
ta luta por parte de idealistas,
que desejavam construir um
país e, por isso, sabiam que a con-
servação da memória histórica é
peça fundamental do marco civi-
lizatório. Hoje, como a ordem é
destruir, a Cinemateca encon-
tra-se ameaçada de fechar as por-
tas de vez. Ou de ter aviltadas sua
missão e vocação. Sobrevivente
de incêndios e inundações, a ins-
tituição pode sucumbir de vez à
força negativa da ignorância.
A atividade audiovisual, im-
prescindível para a autonomia
simbólica de um povo, vê-se des-
se modo sob duplo ataque. Por
um lado, dificulta-se a produção
de novas obras; por outro, tenta-
se jogar a memória no lixo. Não
há mesmo nada a comemorar
neste 19 de junho, dia do Cinema
Brasileiro. Que sirva, ao menos,
de motivo para reflexão sobre a
luz possível que o cinema ainda é
capaz de lançar, mesmo em tem-
pos da maior escuridão.

Audiovisual*


OS ALTOS E BAIXOS DA


SÉTIMA ARTE NO PAÍS


CINEMA

Na data de aniversário, reflexões sobre a trajetória


de produções nacionais que já tiveram seu esplendor


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MÚSICA ESPORTE

CRIANÇAS

TEATRO

Jards Macalé
Dia 20/6. Sábado, 19h

Mariana Lima
em SIM - Cérebro|Coração
em Conferência para Terra
Texto adaptado e direção:
Mariana Lima, Renato Linhares
e Enrique Diaz
Dia 21/6. Domingo, 21h30^14

Carlos Careqa e
Mário Manga
Dia 19/6. Sexta, 19h

Treine com
Arthur Zanetti
Dia 21/6. Domingo, 11h

Marina Esteves
em Quando Eu Morrer
Vou Contar Tudo a Deus
Direção: Ícaro Rodrigues
Dia 20/6. Sábado, 12h

Rodrigo França
em Contos Negreiros
do Brasil
Texto: Marcelino Freire
Direção: Fernando Philbert
Dia 19/6. Sexta, 21h30^14

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Dia 21/6. Domingo, 19h

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Apresentações ao vivo
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Em Casa


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CINEMA

Eu sou Ingrid Bergman
(Dir.: Stig Bjorkman, Suécia, 2015,
114 min)^10

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A Carruagem de
ouro
(Dir.: Jean Renoir, França /
Itália, 1952, 94 min)^14

Paulinho da Viola


  • Meu tempo é hoje
    (Dir.: Izabel Jaguaribe,
    Brasil, 2013, 83 min) L


Miúda e o guarda-
-chuva
(Dir.: Amadeu Alban, Brasil,
2019, 74 min) L

]
ANÁLISE:
Luiz Zanin Oricchio


Cinemateca Brasileira. Um dos raros pontos de excelência cultural do País, fruto de muita luta por parte de idealistas, encontra-se ameaçada de fechar as portas de vez


FELIPE RAU/ESTADÃO
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