O Estado de São Paulo (2020-06-20)

(Antfer) #1

O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 20 DEJUNHO DE2020 Política A


JOÃO GABRIEL


DE LIMA


C


hico Buarque fez jingle para
Fernando Henrique. Bruna
Lombardi deu apoio aos que
se opunham à ditadura. A campa-
nha eleitoral de 1978 foi uma das pri-
meiras a trazer artistas para os pa-
lanques – e reuniu, do mesmo lado,
futuros protagonistas da política na-
cional. FHC saiu para senador com
o apoio de Lula. Eduardo Suplicy se
elegeu deputado estadual. Na mes-
ma chapa, José Serra deveria sair pa-
ra federal. Serra, no entanto, foi bar-

rado pela ditadura, pois era considera-
do “comunista” – mais perigoso que
Lula, FHC ou Suplicy.
Suplicy passou grande parte da vida
defendendo um programa de renda
mínima. Agora é Serra quem apresen-
ta, no Senado, uma proposta ao estilo
de seu ex-colega de palanque. Ah, esses
comunistas... (A palavra “comunista”,
nesta coluna, é sempre usada como pia-
da. Como se sabe, nunca houve comu-
nismo a sério no Brasil. Ontem como
hoje, usa-se o termo para aterrorizar

adultos impressionáveis, da mesma
maneira que a expressão “homem do
saco” assustava crianças malcriadas).
O auxílio emergencial desencadeou
no Brasil um debate sobre renda míni-
ma. Políticos do PP à Rede, passando
pelo PSDB de Serra, apresentaram
ideias ou escreveram artigos. As filas
para receber o auxílio emergencial –
imagem que se tornou emblema da tra-
gédia brasileira do coronavírus – cha-
maram atenção para um contingente
que precisamos conhecer melhor: o
dos “brasileiros do meio”.
A expressão foi utilizada pelo soció-
logo Marcelo Medeiros, professor visi-
tante na universidade Princeton, du-
rante live promovida pelo Instituto
Fernando Henrique Cardoso, da qual
também participou a economista Mo-
nica De Bolle. Medeiros observou que
os brasileiros de baixíssima renda es-
tão visíveis para o Estado, cadastrados
em programas como o Bolsa Família.
Entre eles e os mais ricos, existe um
enorme contingente que não aparece

nos cadastros. Mas são igualmente vul-
neráveis: qualquer sismo na economia
pode jogar esses “brasileiros do meio”
na pobreza.
Tal fenômeno, comum na América
Latina, é mapeado num texto do econo-
mista Francisco Ferreira, do Banco
Mundial. Segundo o estudo, 2/3 dos ci-
dadãos latino-americanos se enqua-
dram na categoria – no Brasil, algo co-
mo 140 milhões de pessoas. Destes, 2/

têm alta probabilidade de cair na po-
breza num espaço de dez anos – no
Brasil, 93 milhões de cidadãos. O auxí-
lio emergencial cobre apenas parte do
contingente. Estendê-lo a todos seria
inviável do ponto de vista fiscal. O que
fazer?
Para os “brasileiros do meio”, poderia
ser criado o que Medeiros chama de “re-

de de bombeiro” – um mecanismo
que, num momento de vulnerabilida-
de, fizesse algum tipo de auxílio che-
gar a eles, e rapidamente. Para isso, a
chave seria fazer um cadastro melhor


  • e diminuir entraves burocráticos.
    Medeiros lembra que a Índia conse-
    guiu incluir a maioria de seus cida-
    dãos vulneráveis no sistema bancá-
    rio. Seria uma solução possível.
    Na versão digital desta coluna pu-
    blicamos alguns estudos, minipod-
    casts de Marcelo Medeiros e proje-
    tos relacionados ao assunto no Con-
    gresso. Participe da conversa suge-
    rindo links no e-mail acima. Medei-
    ros lembra que o debate sobre cida-
    dãos vulneráveis tornou-se central
    no mundo em que vivemos, cada
    vez mais sujeito a pandemias, oscila-
    ções no mercado de trabalho e insta-
    bilidades provocadas pela mudança
    climática. Não é apenas coisa dos
    “comunistas”, que, no passado, su-
    biam no palanque ao som de Chico
    Buarque.


RIO


O Ministério Público do Rio
identificou que Luiza Souza
Paes, ex-assessora de Flávio Bol-
sonaro na Assembleia Legislati-
va do Rio, só compareceu ao Pa-
lácio Tiradentes em três oca-
siões – e apenas para assinar o
ponto. Dentro do período ao
qual os investigadores tiveram
acesso ao dados de seu telefone
celular, entre 2014 e 2017, ela es-
teve nomeada por 792 dias.
O caso de Luiza ajuda a ilus-
trar o que a Promotoria afirma
ser um amplo esquema de fun-


cionários fantasmas emprega-
dos no antigo gabinete do filho
do presidente Jair Bolsonaro, ho-
je senador. Esses servidores re-
passariam o dinheiro de seus sa-
lários por meio da “rachadinha”.
Como o Estadão mostrou on-
tem, com base na decisão do juiz
Flávio Itabaiana Nicolau, da 27.ª
Vara Criminal da Capital, Luiza
e o pai, Fausto Antunes Paes,
buscaram Queiroz para ver co-
mo lidariam com a revelação do
caso. O rastreamento foi possí-
vel graças à quebra de sigilo tele-
fônico, que permitiu o monitora-
mento de investigados pelo Gru-
po de Atuação Especializada no
Combate à Corrupção
(GAECC). O raio considerado
para avaliar se ela esteve ou não
na Alerj foi de 750 metros.
Por meio das mensagens en-
tre Luiza e o pai, a investigação
também aponta que ela combi-

nou com o servidor da Alerj Ma-
theus Azeredo Coutinho, que
trabalha no Departamento de
Pessoal, de assinar o ponto re-
troativo no dia 24 de janeiro de


  1. Com orientações de Quei-
    roz, o contato se deu por inter-
    médio do advogado Luis Gusta-
    vo Botto Maia e pela assessora
    Alessandra Esteves Marins, fun-
    cionária de Flávio Bolsonaro.
    Nas primeiras mensagens en-
    tre Luiza e Fausto, o pai explica
    que iria ver com Queiroz como
    eles deveriam agir diante da re-
    velação do esquema de “rachadi-
    nha” pela imprensa – a história
    foi publicada pelo Estadão em
    dezembro de 2018. As conver-
    sas também mostram que havia
    uma preocupação do gabinete
    de Flávio em maquiar o suposto
    esquema de funcionários fantas-
    mas e, com isso, dar respostas a
    jornalistas sobre a presença dos


servidores na Casa legislativa.
Ao assinar pontos retroati-
vos referentes a 2017, diz o MP,
Luiza e os demais investigados
“efetivamente adulteram as
provas dos crimes de peculato
ao inserirem informações fal-
sas em documentos públicos”,
com “clara finalidade de emba-
raçar as investigações acerca
da organização criminosa que
desviava recursos públicos pe-

lo esquema das “rachadinhas”
com atuação de ‘funcionários
fantasmas’.”
Luiza, Botto Maia, Alessan-
dra e Coutinho foram alvo de
buscas e apreensões na manhã
de ontem, quando Queiroz foi
preso em Atibaia. O Estadão
não conseguiu contato com as
defesas dos citados. / CAIO SARTO-
RI, PEPITA ORTEGA, RICARDO
BRANT E FAUSTO MACEDO

Em 792 dias, assessora de Flávio


esteve na Alerj só três vezes


Bianca Gomes
Marcelo Godoy


Luis Gustavo Botto Maia, ad-
vogado que também repre-
senta o senador Flávio Bolso-
naro (Republicanos-RJ), é
apontado pelo Ministério Pú-
blico do Rio como elo que
unia diversas atividades da or-
ganização criminosa suposta-
mente liderada pelo parla-
mentar. “Ele extrapolou to-
dos os limites do exercício da
advocacia e passou a atuar de
forma criminosa, em cumpli-
cidade com funcionários da
Assembleia Legislativa do
Rio (Alerj), para obstruir a
atuação da Justiça mediante
adulteração de provas”, escre-
veram os promotores.
O advogado, conforme o MP,
também teria servido de inter-
mediário do grupo para contatar
o miliciano Adriano Magalhães
da Costa Nóbrega, foragido de-
pois de ser acusado pelo MP de
liberar a milícia Escritório do Cri-
me – que foi morto em fevereiro
em confronto com a Polícia na
Bahia. O Estadão procurou on-
tem o advogado – um dos alvos
da operação de anteontem que
levou à prisão o ex-assessor par-
lamentar Fabrício Queiroz –,
mas não conseguiu localizá-lo.


O advogado é figura impor-
tante do grupo que gravita em
torno de Flávio Bolsonaro. Ele
atuou como advogado do parla-
mentar na campanha eleitoral
de 2018, sendo um dos respon-
sáveis pela prestação de contas
do senador na Justiça Eleitoral,
onde foi o autor do pedido de
registro da candidatura. Botto
Maia é também funcionário da
Alerj desde julho de 2019.
Até abril, ele era chefe de gabi-
nete da liderança do PSL. Após
deixar a liderança, o advogado
foi nomeado para o gabinete do
deputado Renato Zaca (eleito
pelo PSL e agora sem partido),
como assessor parlamentar. Em
nota, Zaca afirmou que Botto au-
xiliava na assessoria jurídica e
parlamentar, mas será exonera-
do. “É um bom advogado, mas,
diante dos fatos e medida judi-
cial que determina o afastamen-
to da função pública, será exone-
rado.” A exoneração ainda não
foi publicada no Diário Oficial.

Fraude. Segundo o Ministério
Público, o advogado teria orienta-
do Luiza Souza Paes, a ex-asses-
sora de Flávio, a fraudar registros
de presença na Alerj depois que
jornalistas buscaram informa-
ções na Assembleia sobre o regis-
tro de ponto dos funcionários do

antigo gabinete do filho do presi-
dente Jair Bolsonaro. “O grupo
levantou os registros em branco
e queria que a ‘assessora fantas-
ma’ assinasse o ponto de forma
retroativa antes da entrega dos
documentos aos jornalistas”, afir-
maram os promotores no pedido
de prisão de Queiroz encaminha-
do à 27.ª Vara Criminal do Rio.
Luiza compareceu à Alerj, se-
gundo o MP, depois de receber
ordens de Botto Maia. Em 24 de

janeiro de 2019, ela foi assinar “re-
troativamente os registros de
pontos relativos a 2017, com a cla-
ra finalidade de embaraçar as in-
vestigações acerca da organiza-
ção criminosa que desviava recur-
sos públicos pelo esquema das ra-
chadinhas”, diz a investigação.
O advogado ainda teria feito
parte do esquema que manteve
afastado do Rio alguns dos prin-
cipais suspeitos no caso. Botto
Maia teria contato com o ex-as-
sessor parlamentar Fabrício
Queiroz, que estava escondido
em Atibaia (SP). E fazia o mes-
mo com Raimunda Veras Maga-
lhães, mãe de Adriano Nóbrega.
Conforme o MP, foi o advoga-
do que autorizou em dezembro
de 2019 que Raimunda voltasse
ao Rio – ela estava escondida em
Astolfo Dutra (MG) desde que o

escândalo veio à tona. Em Minas
ele se reuniu com Raimunda e
com Márcia Oliveira Aguiar, mu-
lher de Queiroz, para mandar,
segundo o MP, uma mensagem
para o miliciano, que estava fora-
gido. “Amanhã o Gustavo vai aí
te procurar pra tu conversar
com ele pessoalmente aí, tá? Aí
ele vai te explicar. Aí tu faz os
contatos pra ele pra mim. Na
frente dele aí. É coisas que ele
tem que falar pessoalmente”, es-
creveu Queiroz para a mulher.
Em razão de sua atuação, o
juiz Flávio Itabaiana determi-
nou a apreensão dos celulares,
computadores e documentos
na casa do advogado. Também
determinou que ele deve compa-
recer uma vez por mês na Justi-
ça e o proibiu de manter contato
com os demais investigados.

E-MAIL:
[email protected]
JOÃO GABRIEL DE LIMA ESCREVE AOS SÁBADOS

Ex-assessor não era


paciente, dizem


hospitais de Atibaia


lProcuração
Luiz Gustavo Botto Maia atua,
segundo o Ministério Público do
Rio, por meio de procuração do
senador Flávio Bolsonaro no pro-
cedimento de investigação
PIC/MPRJ n.º 2018.00452470.

Defesa pede


prisão domiciliar


para Queiroz


Os comunistas e os


brasileiros do meio


Qualquer sismo na economia
pode jogar esses ‘brasileiros
do meio’ na pobreza

l O Hospital Novo Atibaia afir-
mou, em nota, que Fabrício Quei-
roz não realizava tratamento contí-
nuo no hospital. Entretanto, se-
gundo a nota, o ex-assessor de
Flávio Bolsonaro esteve no hospi-
tal para consultas em janeiro e
abril deste ano, bem como para
exames laboratoriais, em maio.
Outro hospital de Atibaia, o Albert
Sabin, declarou que Queiroz não é
um paciente da unidade. Pessoas
que tiveram contato com Queiroz
disseram que ele fez duas cirur-
gias na Santa Casa de Bragança
Paulista, porém, o hospital não
quis dizer se Queiroz realizava
tratamento de câncer nele. Em
uma “live”, o presidente Jair Bol-
sonaro disse que Queiroz estava
em Atibaia porque fazia tratamen-
to conta o câncer em um hospital
nessa região. / TOMÁS CONTE

FABIO MOTTA/ESTADÃO-9/8/

Alerj. Sede da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro

Para MP, que rastreou


dados de celular, caso de


Luiza Souza Paes indica


esquema de funcionários


fantasmas no gabinete


INVESTIGAÇÃO NO RIO


MPRJ-DEZEMBRO/

Investigação


atinge outro


advogado


do senador


Para Ministério Público, Luis Gustavo Botto


Maia unia atividades criminosas do grupo


Encontro em Minas. Botto Maia e mãe de miliciano se reuniram com mulher de Queiroz

A defesa de Fabrício Queiroz,
apontado pelo Ministério Públi-
co do Rio como “operador finan-
ceiro” do senador Flávio Bolso-
naro (Republicanos-RJ) entrou
com habeas corpus ontem. O ad-
vogado Paulo Emílio Catta Pre-
ta pede que ele vá para prisão
domiciliar em razão de seu esta-
do de saúde – Queiroz se recupe-
ra de um câncer. A defesa tam-
bém questiona a necessidade de
mantê-lo preso sob o argumen-
to de “ameaça às investigações”.
Preso anteontem em Atibaia,
no interior de São Paulo, e trans-
ferido para o Rio no mesmo dia,
Queiroz está isolado em uma ce-
la de seis m² no Presídio Pedroli-
no Werling de Oliveira, conheci-
do como Bangu 8, onde ficará
por 14 dias. O isolamento se deve
ao protocolo de segurança para
evitar a propagação do coronaví-
rus. Segundo a Secretaria de Esta-
do de Administração Penitenciá-
ria (Seap), Queiroz “passa bem”.
Ao pedir a prisão preventiva,
o MP do Rio solicitou à Justiça
que encaminhasse Queiroz pa-
ra Bangu, e não para o Batalhão
Especial Prisional da Polícia Mi-
litar do Rio. A Promotoria viu
“risco iminente” de que Quei-
roz continuasse a praticar deli-
tos se fosse custodiado no BEP.
Em agendas apreendidas na
casa onde Queiroz foi preso ha-
via anotações com nomes de
“policiais militares e federais
que, aparentemente, poderiam,
em tese, facilitar sua vida” no
presídio. Nos papéis, havia as
anotações “Leonardo policia”,
“Aroldinho policial federal”,
“B.E.P”, “amigo do Queiroz”, e
“Aroldinho pode chegar até o
Queiroz caso seja preço (sic)”.
O juiz Flávio Nicolau, da 27ª
Vara Criminal da Capital, levou
em consideração os aponta-
mentos da promotoria ao deter-
minar o local do cumprimento
da prisão. / CAIO SARTORI, PEPITA
ORTEGA, RICARDO BRANDT, FAUSTO
MACEDO e MARCIO DOLZAN
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