A2 Espaçoaberto SÁBADO, 20 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
Para evitar uma tragédia ali-
mentar na América Latina e
no Caribe, a Organização das
Nações Unidas (ONU) defen-
de que os países da região im-
plementem um auxílio tempo-
rário contra a fome focado nas
populações mais vulneráveis
e facilitem créditos para pro-
dutores rurais. Cerca de 83,
milhões de pessoas podem ter-
minar o ano de 2020 na extre-
ma pobreza – quase duas ve-
zes a população da Argentina
- por conta dos efeitos da pan-
demia do novo coronavírus,
que agrava a fome e a insegu-
rança alimentar na região.
http://www.estadao.com.br/e/fome
“Aqueles que abrem mão
da liberdade essencial por
um pouco de segurança
temporária não merecem nem
liberdade nem segurança”
Benjamin Franklin, no
‘Almanaque do Pobre Ricardo’
U
ma das inteligências
mais portentosas de
seu tempo, Benjamin
Franklin não só dominou a ele-
tricidade como iluminou o ca-
minho do homem pela saga vir-
tuosa da liberdade. De suas nu-
merosas contribuições ao pro-
gresso da humanidade há a
destacar a colaboração para o
texto da Declaração de Inde-
pendência dos Estados Uni-
dos, de 1776, um dos documen-
tos-síntese da grande marcha
humana pela igualdade, frater-
nidade e liberdade, que, avant
la lettre, 13 anos depois inspira-
ria a Revolução Francesa. Um
dos brasileiros que mais se
identificaram com Franklin
em sua época, José Bonifácio
de Andrada e Silva, o Patriarca
da Independência, foi além ao
afirmar que “a liberdade é um
bem que não se pode perder
senão com a vida”.
A democracia evoluiu desde
então, com salvaguardas que
garantem a vida comunitária
ao mesmo tempo livre e em se-
gurança. Porém, como todo nú-
cleo e toda fonte de valores civi-
lizatórios, o sistema democráti-
co está sempre exposto à corro-
são do mal – com a particulari-
dade de, malgrado sua enorme
resistência, estar sujeito a recaí-
das. Nem sempre se imuniza
como um corpo resiliente, isto
é, não retorna imediatamente
ao estado original depois de so-
frer ele uma ação deformado-
ra. Daí, como diz o bordão, a ne-
cessidade da eterna vigilância.
Nossos tempos e costumes
estão repletos de tais abusos e
usurpações. Levantamento do
V-Dem, o Instituto de Varia-
ções da Democracia, observa-
tório da Universidade de Go-
temburgo, na Suécia, registra
que pela primeira vez no ideali-
zado século 21 a democracia se
mostra em minoria no mundo.
Enquanto 87 nações vicejam
no regime democrático, 92 de-
finham sob o tacão autoritário
- e o Brasil corre o risco de pas-
sar do primeiro para o segun-
do grupo.
Se há turbas nas ruas dispos-
tas a cair na armadilha denun-
ciada por Benjamin Franklin, é
também a vez de os democra-
tas de raiz se inspirarem em Jo-
sé Bonifácio e defenderem o
Estado Democrático de Direi-
to. Depois da redemocratiza-
ção de 1985, ingressamos no
período mais longo de amplas
liberdades democráticas de
nossa História, mas hoje corre-
mos o risco de retroceder a
um obscuro autoritarismo. A
grosseria antirrepublicana que
cultiva a autocracia galgada pe-
la facção fundamentalista en-
castelada no Poder Executivo
almeja a concentração da auto-
ridade quando agride outros
Poderes, pisoteia a Constitui-
ção, malversa a lei como ex-
pressão da vontade comum e
exclui do aparelho de Estado a
legalidade administrativa.
A usina de irregularidades
age em moto-contínuo, forjan-
do deformidades como medi-
das provisórias restritivas da li-
berdade, redução da transpa-
rência nos assuntos de Estado,
concessão a agentes públicos
do direito de matar impune-
mente – e os acontecimentos
de Minneapolis mostram o pe-
rigo dessa licenciosidade. As-
sistimos ainda ao desvio de
função das instituições republi-
canas à vista de interesses de
familiares, intimidação de cor-
religionários e perseguição de
adversários, anúncio de forma-
ção de milícias, hostilidade à
imprensa profissional e incen-
tivo à horda robótica que in-
venta e calunia à sorrelfa no
submundo digital, agressões a
minorias, celebração de episó-
dios e figuras ditatoriais do
passado, tendo como ápice
dessa trajetória insana o con-
fronto com o Judiciário, sobre-
tudo o Supremo Tribunal Fe-
deral, em ações de desprezo e
afronta ao ordenamento jurídi-
co nacional típicas de republi-
quetas de banana. A disrupção
antidemocrática em nossos
dias é um processo de mil ten-
táculos, tecido lentamente,
não mais abrupto como no
tempo dos tanques inopinada-
mente amanhecidos ante a Na-
ção surpreendida.
Não bastassem tantos des-
pautérios, salta aos olhos o fla-
grante despreparo do governo
para conduzir um país de tama-
nhos complexidade e desafios.
Assim como lhe falta um atri-
buto que confere a regimes au-
toritários algum apoio popu-
lar, ou seja, a forja de cresci-
mento econômico que aneste-
sia a liberdade em parcelas da
população, como aconteceu
no nazi-fascismo na Europa e,
entre nós, no Estado Novo e
em fases da ditadura de 64. Ao
contrário, aumentam a precari-
zação da economia, o obsoletis-
mo da indústria, a devastação
do meio ambiente, a hostilida-
de a importantes parceiros co-
merciais, o descrédito interna-
cional, a desconfiança dos in-
vestidores e, de quebra, a desi-
gualdade social e indigência de
amplas parcelas da população
- chaga agravada pela pande-
mia, minimizada como “gripe-
zinha”. As patas do cavalo de
Átila não fariam maior estrago.
Inoculado o mal, o remédio
para tantas ofensas à democra-
cia será sempre a resistência,
como, por sinal, indicou a De-
claração da Independência
americana, que Franklin aju-
dou a redigir e inspirou Bonifá-
cio, no Brasil. Ainda ecoa elo-
quente seu alerta de que na vi-
gência de uma forma de gover-
no abusiva e usurpadora dos
princípios da ordem e da liber-
dade “cabe ao povo o direito
de alterá-la ou aboli-la e insti-
tuir novo governo”.
Com a palavra, os verdadei-
ramente democratas.
]
ADVOGADO CRIMINALISTA,
FOI PRESIDENTE DO CONSELHO
FEDERAL DA OAB E DEPUTADO
PELO PDT-SP. E-MAIL:
[email protected]
Sérvio também destaca as
qualidades de Nadal e diz
que ele é uma inspiração.
http://www.estadao.com.br/e/tenis
AMÉRICA LATINA
ONU defende auxílio contra fome
Com a fome constante, gru-
pos de bairros pobres organi-
zaram cozinhas comunitá-
rias para ajudar a alimentar
os que não podem trabalhar.
http://www.estadao.com.br/e/argentina
l“Não faz diferença se é 1 milhão ou a população inteira. Importante é
ter estrutura e profissionais de saúde para tratar dos contaminados.”
JOSÉ FRANCISCO MENDES
l“Não podemos esquecer do isolamento social. Ele dá tempo para o
sistema de Saúde providenciar atendimento e evitar o ‘colapso’.”
CRISTINA MARIA DE ALMEIDA
l“Estamos entregues à própria sorte! O Brasil desgovernado! Sem
ministro da Saúde e sem presidente!”
ELENICE FERREIRA
l“É preciso lembrar que não é 1 milhão de contaminados de uma
forma simultânea. Os curados não reduzem o número. Fica difícil.”
CARLOS EDUARDO ROSSINI
INTERAÇÕES
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
PRESIDENTE: ROBERTO CRISSIUMA MESQUITA
MEMBROS
FERNANDO C. MESQUITA
FERNÃO LARA MESQUITA
FRANCISCO MESQUITA NETO
GETULIO LUIZ DE ALENCAR
JÚLIO CÉSAR MESQUITA
Jovem foi ganhadora do Prê-
mio Nobel da Paz de 2014 e
ficou conhecida por lutar
pelo direito das mulheres de
terem acesso à educação.
http://www.estadao.com.br/e/malala
Espaço Aberto
U
m momento histórico
que eu gostaria de ter
presenciado aconte-
ceu no dia 1.º de novembro de
1944: um breve encontro en-
tre o ministro da Justiça, Mar-
condes Filho, e o general Euri-
co Dutra. O relato está no óti-
mo livro de Paulo Brandi Var-
gas: da Vida para a História
(Zahar, 1985, pág. 178).
Desde a entrada do Brasil
na guerra contra o fascismo,
Getúlio pressentia que não
conseguiria manter sua dita-
dura. Em 1943, o Manifesto
dos Mineiros desafiou a cen-
sura e escancarou o debate so-
bre a redemocratização. A pre-
sença da Força Expedicioná-
ria Brasileira (FEB) na Itália,
com apoio dos Estados Uni-
dos, apontava para um ponto
sem retorno. Nos meses se-
guintes, a pressão contra Ge-
túlio alastrou-se rapidamente
nas Forças Armadas. No final
de outubro os generais Góes
Monteiro e Eurico Dutra pro-
curaram-no para insistirem
na convocação de eleições.
Getúlio aquiescia sem aquies-
cer. Cogitava de transitar pa-
ra um regime híbrido, cujo co-
mando permanecesse em
suas mãos. Foi nessa altura
que se deu o encontro de Mar-
condes Filho com o general
Eurico Dutra.
O ministro havia rascunha-
do um projeto de lei eleitoral
de teor corporativista, ou se-
ja, baseado na representação
por categorias profissionais,
formato característico da tra-
dição fascista. Foi quando,
respondendo a Marcondes Fi-
lho, Eurico Dutra disse-lhe,
curto e grosso: “Não é isso,
não, dr. Marcondes, é eleição
mesmo...”.
O referido momento pare-
ce-me assinalar com clareza a
opção das Forças Armadas
por uma identidade propria-
mente de Estado, impessoal,
baseada na hierarquia e na dis-
ciplina, com a consequente re-
jeição do modelo de uma guar-
da pretoriana, ou seja, de uma
milícia a serviço de um caudi-
lho qualquer.
Mas tal modelo não era isen-
to de problemas. Nos anos
30, sob a decisiva influência
do general Góes Monteiro, ga-
nhou corpo o modelo de uma
organização tutelar, destina-
da não somente à defesa exter-
na do País, mas legitimada pa-
ra também atuar sponte sua no
plano interno.
Os apontamentos acima aju-
dam a compreender o artigo
142 da Constituição de 1988,
que alguns juristas chegam a
interpretar até mesmo como
uma autorização para as For-
ças Armadas atuarem como
um Poder Moderador, dirimin-
do impasses entre os três Po-
deres. Não chego a tanto, mas,
de certa forma, vou além,
pois, no trecho a seguir, tal ar-
tigo me parece virtualmente
ininterpretável: “...(as Forças
Armadas) destinam-se à defe-
sa da Pátria, à garantia dos po-
deres constitucionais e, por ini-
ciativa de qualquer destes, da lei
e da ordem”. O trecho grifado
admite a esdrúxula hipótese
de as Forças Armadas – no to-
cante à manutenção da lei e
da ordem no plano interno –
serem convocadas por dois ou
até pelos três Poderes ao mes-
mo tempo. Considerando, en-
tretanto, que o Supremo Tri-
bunal Federal (STF) é o guar-
dião da Constituição, instân-
cia última, portanto, da legiti-
midade política, cabe a ele es-
clarecer quando e em que ter-
mos as Forças podem ser con-
vocadas – uma rima que em
nada melhora o soneto.
A questão acima suscitada
parece-me assumir contornos
graves no presente momento,
visto que agora não se trata
de um imbróglio constitucio-
nal em abstrato, mas de uma
conjuntura que muitos têm
descrito como uma “tempes-
tade perfeita”: em meio a uma
terrível epidemia e a uma cri-
se econômica sem preceden-
tes, temos tido frequentes
atritos entre os Poderes e um
presidente da República pou-
co propenso a observar os li-
mites e a liturgia do cargo que
ocupa. Como se não bastasse,
as Forças Armadas assumi-
ram uma presença excessiva
no Executivo, emprestando-
lhe, por conseguinte, uma legi-
timidade que cedo ou tarde re-
duzirá a estima em que são ti-
das pela sociedade brasileira.
Acrescente-se que o prota-
gonismo apaziguador do Le-
gislativo esbarra em severos
limites no presente momen-
to, uma vez que a composi-
ção do Congresso Nacional
ainda deixa a desejar, não obs-
tante as reformas que se tem
tentado fazer.
Por último, mas não menos
importante, é preciso levar
em conta o clima de radicali-
zação, acentuado a partir das
eleições de 2018, e os frequen-
tes apelos que certos setores
têm feito no sentido não só
de tumultuar, mas efetiva-
mente de solapar o regime de-
mocrático, exigindo alguma
forma de intervenção militar.
Um ponto fundamental que
tais setores não parecem com-
preender é que o Brasil de
2020 é muito diferente do de
- Naquele ano, bastou às
Forças Armadas prender
umas poucas centenas de pes-
soas para assumirem o contro-
le do País. Hoje a população
brasileira é muito maior, está
concentrada em grandes cida-
des e é muito mais diversifica-
da, politizada e atenta. Mercê
dos meios eletrônicos de co-
municação, consegue se mobi-
lizar com extrema facilidade.
Tais mudanças não necessa-
riamente conferem vantagem
a algum dos grupos que se di-
gladiem num hipotético con-
fronto, até porque o resulta-
do mais provável de qualquer
ruptura da ordem parece-me
ser um prolongado período
de anarquia, ao fim da qual tu-
do estará mais ou menos na
mesma, só que muito pior.
]
CIENTISTA POLÍTICO,
SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM
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Pandemia atinge mais
pobres na Argentina
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Bolívar Lamounier
Tema do dia
Lateral Saúl Torres trabalha
como pedreiro para dimi-
nuir prejuízo na pandemia.
http://www.estadao.com.br/e/bolivia
Pensando
o impensável
Resultado mais provável
da ruptura da ordem
parece-me ser um longo
período de anarquia
A democracia convoca
seus defensores
Inoculado o mal,
o remédio para tantas
ofensas a ela será
sempre a resistência
AMÉRICO DE CAMPOS (1875-1884)
FRANCISCO RANGEL PESTANA (1875-1890)
JULIO MESQUITA (1885-1927)
JULIO DE MESQUITA FILHO (1915-1969)
FRANCISCO MESQUITA (1915-1969)
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Brasil já tem mais de
1 milhão de casos de
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Apenas 2% da população do País vive
em municípios onde a pandemia de
covid-19 ainda não chegou
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José Roberto Batochio
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