O Estado de São Paulo (2020-06-20)

(Antfer) #1

NA


André Cáceres


Antes de ser uma lenda dos qua-
drinhos, Alan Moore tinha de
suar para pagar as contas. Com
24 anos, ele estava casado e tinha
um trabalho braçal numa empre-
sa de gás em Northampton, no
interior da Inglaterra, cidade
sem grandes perspectivas para
um artista. Quando sua mulher
ficou grávida, Moore teve que to-
mar uma decisão: continuaria le-
vando uma vida pacata que não
satisfazia suas ambições intelec-
tuais ou largaria o emprego para
tentar viver de arte.
O resultado, o leitor já sabe.
Obras como Watchmen, V de Vin-
gança, A Liga Extraordinária e
Batman: A Piada Mortal revolu-
cionaram os quadrinhos e in-
fluenciam o cinema há quatro
décadas. O caminho percorrido
por Moore do anonimato à con-
sagração, no entanto, é um pou-
co mais obscuro. A reunião de
suas tirinhas do Maxwell, o Gato
Mágico, publicadas no extinto
jornal Northants Post de 1979 a
1986, em volume único, um pro-
jeto editorial inédito no mundo
empreendido pela Pipoca &
Nanquim, contribui para escla-
recer essa trajetória.
Moore se tornou célebre pelos
roteiros intrincados, mas seu tra-
ço é bem menos conhecido. Nes-
sas tiras humorísticas, que pare-
cem (apenas parecem) destoar
do tom sombrio que ele impri-
miu em suas obras, é possível ter
contato com seus desenhos e pe-
netrar no cotidiano de uma das
mentes criativas mais importan-
tes da cultura pop.
Maxwell, o Gato Mágico se apre-
senta como entretenimento ino-
cente, mas não tem nada de
dócil. Nas entrelinhas de piadas
bobas de gato e rato, Moore inje-
tava altas doses de ironia, comen-
tário político e crítica de costu-
mes, tratando de temas que se-
riam aprofundados nos anos se-
guintes em seus romances gráfi-
cos, como as tensões nucleares,
a desigualdade, as questões tra-
balhistas e a violência urbana.
No começo, Moore não assina-
va com seu nome para não per-
der o direito ao seguro-desem-
prego, mas nem seu pseudôni-
mo escapa do sarcasmo: Jill de
Ray, nome que mimetiza a sono-
ridade de Gilles de Rais, “um no-
bre francês do século 15 que foi
executado pelo assassinato de
140 crianças”, informa o prefácio
da obra, escrito pelo ilustrador
Eddie Campbell, que trabalhou
com Moore em Do Inferno. O
pseudônimo se justifica: a tira,
que começou infantil, não demo-
rou para ser movida para outra
sessão do jornal, abordando te-
mas cada vez mais espinhosos.
Já em seu primeiro trabalho,
Maxwell é apresentado ao leitor
em camadas de ironia. Vindo do
espaço, ele é avistado por um cos-
monauta russo que, após relatar
a aparição aos superiores, é convi-
dado a um “retiro pitoresco cha-
mado Sibéria”; já na atmosfera
terrestre, um piloto de avião “por
acaso tira os olhos do painel” e se
assusta com o “gato voador não
identificado”; mais abaixo, uma
senhora que regava as plantas na
janela de seu apartamento vê o
bichano caindo apenas para, pou-
co depois, “sentar-se, tomar uma
xícara de chá e esquecer tudo”.
Por fim, ele pousa no quintal do
garoto Norman Nesbitt, transfor-
mando sua “tenra existência”
em “uma desgraça”.
No começo, a tira trata do coti-
diano de Norman com seu novo
gato, numa dinâmica semelhan-
te à de Charlie Brown com
Snoopy (referências a outros
personagens, como Garfield,
Mickey Mouse e o próprio
Snoopy são frequentes). Mas as-
suntos polêmicos começam a se
insinuar com sutileza em meio
às piadas mais inocentes, por


exemplo quando o garoto lê pa-
ra Maxwell uma notícia sobre
um gato que foi parar na máqui-
na de lavar, mas na capa do jor-
nal está escrito que a Rússia inva-
diu Sidcup, um distrito de Lon-
dres – na época da publicação da
tira, o país havia acabado de inva-
dir o Afeganistão.
Sátiras políticas passaram a
ser parte integrante da obra de
Moore, como quando o gato fun-
da uma religião como “primeiro

passo para tomar o poder” com
sua “horda de fanáticos ingê-
nuos”, em uma alusão à invasão
da embaixada americana em Tee-
rã por extremistas islâmicos, em


  1. Com o fracasso de sua seita,
    Maxwell decide que é mais efeti-
    vo tentar ascender ao poder “tin-
    gindo o cabelo e calçando botas
    de couro de bezerro”, referência
    à eleição de Ronald Reagan à pre-
    sidência dos EUA. Nesse regis-
    tro, a Guerra das Malvinas se tor-


na um conflito contra ratos pela
caixa de areia e a tira é “privatiza-
da” em referência à era Thatcher.
Fatos da vida política britâni-
ca e internacional dos anos 1980
inspiram as piadas de forma ve-
lada ou explícita, e as notas do
tradutor Érico Assis são cirúrgi-
cas ao contextualizar as situa-
ções menos familiares ao leitor
brasileiro. Aliás, Assis se sai bem
das armadilhas impostas pela
opção recorrente de Moore por

poemas rimados e trocadilhos
impossíveis em português.
Algumas situações antecipam
temas que serão aprofundados
em V de Vingança, como o autori-
tarismo governamental, e em
Watchmen, como o da tensão nu-
clear, mas sempre pela chave do
humor. Por exemplo, quando
Norman externa o medo da ex-
tinção humana graças à bomba
de nêutrons e Maxwell pede: “An-
tes de sumir, dá pra vocês deixa-

rem combinado pra alguém apa-
recer de vez em quando pra dar
comida pros gatos?”.
Mas não apenas a sátira social
e política vai se adensando. Com
o tempo, fica nítido que Moore
vai ganhando, semana a semana,
domínio e compreensão sobre a
forma da tira e começa a brincar
com a metalinguagem, como
quando Norman se sente claus-
trofóbico por viver em um qua-
drinho de 4,5 por 3,4 cm, ou quan-
do Maxwell espreita uma man-
cha pensando ser uma toca de ra-
tos e se irrita com o autor por não
limpar a caneta antes de dese-
nhar. Há uma ocasião em que um
espirro de Norman quebra os
fios entre os quadrinhos; em ou-
tra, os personagens no primeiro
painel se comunicam com os do
último, criando um paradoxo
temporal. É exemplar a ironia
quando Maxwell é gentil com os
ratos em vez de comê-los por me-
do do patrulhamento moralista
dedicado a mídias, em especial
os quadrinhos: “E se as crianci-
nhas que leem isto aqui começa-
rem a arrancar cabeça de rato
porque me viram fazendo?”.
O autor deixou de publicar as
tirinhas não por falta de tempo
ou de interesse – ele continuou
desenhando o personagem se-
manalmente mesmo após fazer
sucesso na DC Comics com o
Monstro do Pântano –, mas sim
porque o Northants Post publi-
cou um editorial homofóbico
em 1986. Desde o início de sua
trajetória, essas tiras revelam os
ideais de justiça social que guia-
ram a sua carreira e que, em últi-
ma instância, o levariam a se
afastar do mundo midiático.
Hoje injustamente acusado de
ser um ermitão amargo por não
tolerar adaptações de suas
obras, Alan Moore demonstra
em cada piada de Maxwell, O Ga-
to Mágico que passa longe de ser
um misantropo, se mostrando
um analista da sociedade, pro-
fundamente interessado nas fa-
cetas sombrias do ser humano.

QUARENTENA


CRÍTICAS SOCIAIS E


HUMOR


Tirinhas publicadas por Alan Moore antes


da fama antecipam temas de suas HQs


Caderno 2


Gilberto Gil e Iza se unem em live PÁG. H8


Recluso. O quadrinista Alan Moore não é afeito a aparições públicas e sempre condenou as adaptações cinematográficas e televisivas de suas obras

Crianças. Sob o verniz infantil, Maxwell falou de temas espinhosos, das Malvinas a Chernobyl, passando pelo desemprego

WILTON JUNIOR / ESTADÃO

GAVIN WALLACE HOAX/NYT

Político. Personagem passou semanas brincando com a ‘privatização’ da tirinha durante o governo de Margaret Thatcher

FOTOS ALAN MOORE/PIPOCA & NANQUIM

MAXWELL, O
GATO MÁGICO
Autor:
Alan Moore
Tradução:
Érico Assis
Edit.: Pipoca &
Nanquim (132
págs., R$ 59,90)

%HermesFileInfo:H-1:20200620:H1 SÁBADO, 20 DE JUNHO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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