O Estado de São Paulo (2020-06-20)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:C-3:20200620:


O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 20 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Guilherme Sobota


O novo romance de Marcelo Mi-
risola – Quanto Custa Um Elefan-
te?, lançado agora pela editora
34 – fecha uma trilogia em que o
narrador, sempre a um passo do
que se pode chamar de realida-
de, vai buscar um pacto com o
diabo para recuperar a mulher
amada. Nos últimos três livros,
ela atende por Ruína.
“Eu jamais, mesmo sendo in-
sistentemente ameaçado, ia
conseguir esquecer Ruína, o dia-
bo do meu coração dizia o con-
trário”, nos conta o Marcelo do
livro, logo na primeira página.
Com a questão do dinheiro afas-
tada – o personagem conta que
virou “personalité”, via lotea-
mentos, precatórios e herança
–, ele então apela para um últi-
mo recurso e entra em contato
com a Mãe Valéria.
Diz o narrador: “Antes de
prosseguir, creio que é impor-
tante ressaltar e lembrar: não é
que procurei o diabo. Podia ter
ido a um psicanalista argentino,
mas fui atrás de uma mãe de san-
to porque estava completamen-
te desorientado; sobrenatural
por sobrenatural, troquei
Freud pela macumba, só isso”.
A Mãe Valéria, então, ciente
de que o diabo não estava inte-
ressado na alma do escritor,
“mais um pierrô apaixonado
chorando pelo amor de uma co-
lombina no meio de uma multi-
dão de cornos igualmente desi-
ludidos e apaixonados”, sugere
um pacto financeiro com o “coi-
so”. Negociador fino, o chifru-
do pede seis elefantes. Daí a per-
gunta do título.
Depois de algumas cerimô-
nias no congá da mãe de santo


em São Paulo, a convicção de
estar no caminho certo chega
ao personagem quando, “às vés-
peras das eleições de 2018, ela,
sinceramente convicta, embar-
gada e enternecida, me falou
que seu sonho era ver os netos
no colégio militar e que ia votar
no Bolsonaro para acabar com a
p... no Brasil”.
“Não há contradição em mãe
Valéria”, debate o escritor, de
carne e osso, em uma troca de
e-mails com a reportagem.
“Qual a diferença entre uma
mãe de santo vigarista e um ven-
dedor de semente de feijão?
Aliás, não há muita contradição
nas religiões criadas pelo ho-

mem. A maioria trabalha no sen-
tido oposto ao evangelho e coo-
pera para o engodo e a mentira.”
O romance tem uma estrutu-
ra diferente dos outros livros
mais recentes de Mirisola, Co-
mo Se Me Fumasse (2017) e A Vi-
da Não Tem Cura (2016). O nar-
rador lembra de fatos passados,
sim, mas o jeito de contar aqui é
diferente. Ele discorda e elabo-
ra: “Se a forma não é tudo, é
100%. É a forma que dá sentido
ao conteúdo, ora, se, desde os
sumérios sabemos que o con-
teúdo do ser humano não é lá
grande coisa e não vai mudar
muito, a forma e o planejamen-
to, em tese, seriam as salvações.

Este é o ponto central do Elefan-
te. Quando o autor perde o con-
trole do enredo. Quando se de-
sestrutura. E tem de se virar
com o conteúdo. Daí vem a im-
pressão que a forma mudou.
Não. Ocorreu uma fusão. Acho,
no final das contas, que dei sor-
te porque consegui equilibrar
as coisas e sobreviver ao livro”.
No romance, o narrador en-
fim ganha a chance de passar
um fim de semana com Ruína
no Rio de Janeiro. Embora ele
mesmo passe o livro tentando
justificar para si mesmo o amor
descontrolado por uma pessoa
que pisou na bola repetidas ve-
zes nos últimos anos, o univer-

so – ou o diabo – dá um jeito de
colocar os dois juntos. Os fatos
então se acumulam e, como é
característico em sua obra, é
sempre mais prudente descon-
fiar do narrador de Mirisola.
Crítico voraz de uma parte da
literatura brasileira contempo-
rânea, o escritor, porém, não
vê paralelos entre conservado-
rismo político e conservadoris-
mo literário. “Não consigo
aproximar as duas coisas.
Acho, inclusive, que a literatu-
ra brasileira anda meio fraqui-
nha porque os autores se entre-
garam de corpo e alma ao es-
pírito do tempo. Ocorre que o
espírito do nosso tempo é mais
político-partidário do que lite-
rário. Daí o engajamento, as
causas justas e prementes e as
patrulhas dessas causas que
aniquilam os talentos e com-
prometem a liberdade, a assis-
tência social no lugar da arte, a
chatice, enfim, que campeia de
norte a sul e de leste a oeste.”
Apesar de frequentar a pági-
na dos jornais com frequência
com seus livros (e às vezes, tam-
bém, envolvido em discussões
e confusões de outras esferas),
o escritor acredita que, nos últi-
mos anos, foi mesmo boicotado
pelos pares. “Acabei mirisola-
do. E acabei gostando”, conta.

Por isso, está levando o isola-
mento social imposto pela pan-
demia com tranquilidade. “Nes-
sas horas, não adianta dar chili-
ques. Mas sem dúvida vivemos
uma calamidade. Acho que, se
uma bomba atômica tivesse caí-
do sobre o Brasil, o estrago não
teria sido tão grande. Quase
uma guerra civil dentro de uma
pandemia. Esses políticos de
m..., no mínimo, deviam respei-
tar o luto das pessoas. Enfim,
estamos numa sinuca de bico.
Nessa hora, precisaríamos de
um Rui Chapéu para encontrar
uma saída. Mas um bando de bo-
nobos invadiu o salão e resol-
veu que mesa de bilhar agora é
octógono de MMA.”
O escritor diz já estar esboçan-
do alguma coisa sobre fatos po-
líticos mais à flor da pele e, quan-
do questionado sobre o que pen-
sa do atual presidente do Brasil,
usa sua mordacidade conheci-
da: “É o chefe dos bonobos”.

Caderno 2


‘VIVEMOS HOJE UMA CALAMIDADE’


MIRISOLA


Em novo livro, escritor dá mais potência à forma literária e cria uma das primeiras personagens bolsonaristas da literatura


1 livro por semana*


C


onheci Yuri esta semana, por
causa de uma reportagem. Li-
guei quando ele terminou a ta-
refa da escola para conversar sobre o
livro que foi entregue com a cesta
básica que chegou a sua casa no Mor-
ro do Pavão-Pavãozinho, no Rio. A
mãe disse que, assim que viu o volu-
me, deixou o celular de lado e sentou
para ler. Aos 11 anos e sem poder fre-
quentar a biblioteca do colégio, onde
gostava de passar o recreio, ele foi
surpreendido por aquele livro sobre
o universo, uma paixão dele. Estava
feliz da vida ao telefone – curioso pa-
ra chegar ao final e conectar todas as
partes, como ele disse, mas também
parcimonioso porque não vai ter ou-
tro livro para ler depois.
A doação desse e de outros 500 e
tantos títulos é resultado de uma
campanha da escritora Anna Claudia
Ramos e o impacto de sua chegada à
casa desta família desempregada,

que espera o fim do coronavírus para
tentar retomar a vida, é uma amostra do
que pequenos gestos podem fazer por
uma criança. E é disso que trata Rua do
Escritor, de Henrique Rodrigues, cario-
ca que também cresceu no subúrbio e
que dedica este volume com crônicas
sobre o universo da leitura aos professo-
res que o ajudaram em seu caminho.

Henrique, que moleque decidiu ser
escritor quando ganhou um concurso
de frases no colégio e foi motivo de riso
ao dizer isso – e hoje dá nome a duas
salas de leitura de escolas onde estudou
–, conta, nesses textos, um pouco de
sua trajetória, suas leituras e os encon-
tros com leitores e reflete sobre seu ofí-
cio: “Principalmente no Brasil, ele pre-

cisa estar associado a uma ação cultural
um pouco maior do que ler e escrever”.
Rua do Escritor foi lançado antes da
quarentena, e depois de O Próximo da
Fila, seu romance de formação que retra-
ta um jovem da periferia e que já saiu na
França, ter sido selecionado pelo PNLD
Literário e distribuído para bibliotecas
de escolas públicas de todo o País.

MARIA FERNANDA RODRIGUES ESCREVE AOS SÁBADOS

l]


TRECHO

O autor. ‘Nessas horas,
não adianta dar
chiliques’, diz sobre o
isolamento social que
vem enfrentando
com tranquilidade

QUANTO
CUSTA UM
ELEFANTE?
Autor:
Marcelo
Mirisola
Editora: 34
(128 págs.,
R$ 42)

Para gostar de ler


BABEL

l Inéditos em 2021
A Relicário publica, no ano que vem,
dois inéditos de Luiz Antonio Simas.
Ritos, “um almanaque de práticas, en-
contros, ancestralidades e afetos para
o amanhã”, parte das ligações entre o
sagrado e o profano e o popular. Man-
dingas do Novo Mundo: Dos Espíritos
e Revoluções, escrito com Luiz Rufino,
aborda os “personagens encantados”
da literatura e da história oral da
América Latina afro-ameríndia.

l Centenário de Paulo Freire
Para o centenário de Paulo Freire, em
2021, a Oficina Raquel lança uma cole-
tânea de cartas de professores e auto-
res, como Amara Moira e Cidinha da
Silva, ao educador, com organização de
Taty Leite. E também um volume orga-
nizado por Simone Monteiro com tex-
tos sobre a vitalidade de suas ideias.
Antes, em 30/7, um debate sobre ele
encerra o Esquenta Primavera, que es-
tá acontecendo online gratuitamente.

MARCIO FERNANDES/ESTADÃO - 8/7/2016

“T


inha acabado


de derrubar...


...uma garrafa de uísque no Fin-
negan’s, ia eu lá, desesperado e
ainda crédulo em busca da
próxima dose e de um maledet-
to sentido para a vida, descia a
Artur de Azevedo, dando gra-
ças a Deus e ao mesmo tempo
amaldiçoando, a ele e ao seu
sócio, o diabo, porque, entre

outras coisas, meu tesão por
Ruína e o cartão de crédito ain-
da funcionavam, descia a ladei-
ra em zigue-zague até que al-
cancei a esquina da rua Lisboa,
e parei no Pinguim:


  • Teacher’s, amigo. Põe duas
    doses, por favor.
    Aconteceu num átimo, entre o
    balconista virar as costas, pegar a
    garrafa na prateleira e encher
    meu copo. Nesse exato momen-


to perdi a fé em Deus e no diabo,
e por pouco não viro um clássico.
Juro por Deus, perdi a fé no
diabo.
E é por isso que estou aqui,
de volta à escrita, descumprin-
do mais uma vez a promessa
que fiz a mim mesmo, pois
quando escrevo não faz dife-
rença alguma acreditar em
Deus ou desacreditar no diabo


  • e vice-versa.”


Leitura. Biblioteca Parque da Rocinha e livros ao alcance de todos

RUA DO
ESCRITOR
Autor: Henrique
Rodrigues
Editora: Malê
(192 págs.;
R$ 38,40)
Free download pdf