O Estado de São Paulo (2020-06-20)

(Antfer) #1

H8 Especial SÁBADO, 20 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Sérgio Augusto


l]


LIVE


O músico se une hoje à cantora


para cantar sucessos de sua obra


GIL E IZA


FAZEM SHOW


AO VIVO JUNTOS


ESCREVE AOS SÁBADOS

Adriana Del Ré


Gilberto Gil já apareceu de sur-
presa de pijama na live de Teresa
Cristina, e a emocionou cantan-
do Estrela. Ontem, participou do
programa Amanhãs Aqui e Agora,
do Museu do Amanhã no YouTu-
be. E neste sábado, 20, às 20h, Gil
terá finalmente a própria live, a
sua primeira, junto com a canto-
ra Iza, sensação da atual cena pop
no País. Influenciada pela obra
de Gil e de outros nomes da MPB,
Iza já havia se encontrado com o
músico em palcos, mas esta é a
primeira vez que eles farão, lado
a lado, um show completo, que
será exibido ao vivo no canal da
Mastercard Brasil no YouTube.
Os dois e a equipe que os acompa-


nhará vão seguir os protocolos
de segurança recomendados – to-
dos, inclusive, já passaram por
testes para covid-19. Serão arreca-
dadas doações no combate à fo-
me que serão revertidas para a
ONG Ação da Cidadania.
A ideia desse encontro musi-
cal partiu do diretor artístico Zé
Ricardo. “Recebi do Tom Gil (di-
retor de negócios da agência W/Mc-
Cann e sem parentesco com o com-
positor e cantor) o desafio de
criar um encontro que não tives-
se preço. Tenho revisitado a
obra do Gil e ela me veio logo à
cabeça”, conta Zé Ricardo. O re-
pertório foi pensado por ele, Gil
e Iza. Mas prevaleceram as esco-
lhas da cantora, conta o músico.
“Iza conhece muito do meu re-
pertório, e aí vamos comparti-
lhar essas canções que ela conhe-
ce. Sugeri uma coisa ou outra fo-
ra do que ela tinha proposto”,

diz Gil, ao Estadão, por telefo-
ne, de sua casa em Araras, região
serrana do Rio, onde está confi-
nado – e será realizada a live. “Tu-
do o que ela propôs são coisas
que eu já venho cantando: A Paz,
Se Eu Quiser Falar com Deus, An-
dar Com Fé, Vamos Fugir.”
Se foi pressionado pelos fãs a
fazer uma live? Gil diverte-se
com a pergunta. “Não sei (risos),
há, sim, um interesse muito di-
fundido de que os artistas agora
se aproveitem dessa nova moda-
lidade, muito adequada ao isola-
mento de todos, tanto nosso,
dos artistas, quanto do público.
Também pela pressão natural
do trabalho, que ficou muito pre-
judicado nas suas formas con-
vencionais, com as aglomera-
ções impedidas”, pondera. “E
há ainda a grande curiosidade pe-
la exploração desse novo forma-
to do ponto de vista tecnológi-
co. Há vários experimentos, isso
tudo está provocando muita cu-
riosidade. Então, o que você cha-
ma de pressão do público para
que eu fizesse (a live) é uma pres-
são geral, da situação geral.”
No próximo dia 26, quando
completará 78 anos, o cantor e
compositor vai apresentar outra
live, embalada pelos festejos de
São João, que foram cancelados
no Nordeste. “Seremos eu e mais
cinco músicos, todos também já
foram testados. Estamos todos
dentro do procedimento do pa-
drão da quarentena.”
Os cuidados foram redobra-
dos na gravação de um especial
que Gil fez para a estatal francesa
TV5Monde, a convite da emisso-
ra, também em sua casa em Ara-
ras, no sábado passado, por con-
tar com mais pessoas envolvidas

nos bastidores. Com o cancela-
mento de shows e festivais de ve-
rão na Europa, o programa tem
espaço reservado na grade do ca-
nal em julho. Para a gravação, Gil
contou com a participação dos fi-
lhos Nara, Bem e José e a neta
Flor. “Veio toda uma equipe de
lá, diretores, técnicos de luz, de
som e tudo. Ficaram 15 dias de
quarentena, um deles inclusive
testou positivo e não pôde vir, fi-
cou preso no Rio.”
Grande parte do repertório
contou com canções de Gil. Ele
cantou novamente Volare com
Flor – os dois já haviam gravado
um vídeo da canção em homena-
gem à Itália, que enfrentava o au-
ge da pandemia de covid-19. E re-
visitou sua canção francesa, Tou-
che Pas à Mon Pote (‘não mexa
com meu chapa’), slogan do mo-
vimento antirracista SOS Racis-
mo. “A música acabou ficando
atualíssima com o Black Lives
Matter (Vidas Negras Impor-
tam)”, diz Gil. O grito de ordem
ganhou força nas ruas e nas redes
sociais após o assassinato de
George Floyd, negro morto por
um policial branco nos EUA.
Como avançar na questão so-
bre o racismo estrutural? “Nos úl-
timos tempos, a legislação brasi-
leira tem, na medida do possível,
contemplado uma série de coi-
sas, a criminalização que foi feita
em relação a muitos dos aspec-
tos desse racismo estrutural; e o
‘prestigiamento’ dos movimen-
tos negros, os próprios movimen-
tos com uma capacidade muito
maior de compreensão da impor-
tância da contribuição africana
para formação cultural do Brasil.
Todas essas coisas têm apareci-
do com mais visibilidade na vida

brasileira e, na medida do possí-
vel, levado setores importantes
do povo brasileiro a entender me-
lhor essa questão do racismo es-
trutural e a se posicionar. Nesse
sentido, acho que as coisas me-
lhoraram, mas ainda resta a ques-
tão básica da inclusão, da segun-
da abolição necessária reivindica-
da por Joaquim Nabuco, a inclu-
são propriamente, o acesso ao
trabalho, à riqueza”, avalia. “É
preciso esse resgate mais pleno,
inclusão na vida política, econô-
mica. Tem sido lento o processo
de avanço, mas também aí acho
que temos avançado.”
Cumprindo quarentena há
três meses, Gil conta que está
lendo e tocando muito violão.
Durante esse período do isola-
mento, ele não sente que seja mo-
mento para a composição. Mas
também não a descarta. “Talvez
agora, depois de uma certa adap-
tação que a gente já está tendo ao
isolamento social e a todos os
seus significados, eu possa come-
çar a reservar espaço mental, in-
telectual e espiritual para pensar
um pouco em música, em can-
ção, em escrever coisas.”
E os sentimentos todos, pessi-
mismo, otimismo, alegria, triste-
za, ainda estão oscilando? “Sim,
um pouco, mas com menos co-
moção que tive no início, quando
foi muito chocante. Eu chorava
muito, me afligia muito com as
incertezas do sofrimento, e a pe-
nalização especialmente dos ido-
sos, que começaram a ser vitima-
dos. Aí veio o número de mortes
na Itália, na França, na Inglater-
ra, depois, nos EUA e aqui tam-
bém. Aquilo me comovia muito,
eu vivia em estado de comoção,
que já está mais atenuado agora.”

N


oite dessas um comentarista
sociopolítico da TV criticou,
com ênfase doutoral, o empre-
go de palavras como “genocídio” e
“genocida” para qualificar as conse-
quências da desastrosa reação do go-
verno Bolsonaro à pandemia e seu ma-
cabro oficiante.
Só pratica o bem quem zela pela in-
tegridade das palavras e seu uso apro-
priado. Certos vocábulos, de tão usa-
dos fora do contexto original, arris-
cam-se de fato a perder sua força ex-
pressiva, a debilitar seu sentido origi-
nal. Não me parece o caso de genocí-
dio; nem de holocausto, outro fre-
quente objeto de objeções puristas,
que o tempo, com ajuda da incorrigí-
vel crueldade humana, também se es-
pichou como sinônimo de extermí-
nio de quaisquer pessoas ou povos.
(Para evitar melindres, o holocaus-
to original, que em hebraico é “Shoa”,
passou a ser grafado exclusivamente
com h em caixa-alta.)
Genocídio, como vocábulo, só nas-
ceu em 1943, inventado por um jurista
polonês (e judeu), Raphael Lemkin,
que duas décadas antes já estudava o

paradigmático massacre dos armênios
pelo Império Otomano, entre 1915-1923.
Como é praxe há séculos, Lemkin juntou
duas palavras gregas: “genos” (família,
tribo ou raça) e o sufixo “cídio” (morte),
estabelecendo um conceito de suma im-
portância para os novos rumos do direi-
to internacional, no pós-guerra. No Bra-
sil, o genocídio é crime previsto em lei
(n.º 2.889) desde outubro de 1956.
Em sua acepção castiça, genocídio é
um extermínio intencional, doloso, não
um aniquilamento involuntário, culpo-
so. Como não existe uma palavra para
definir morticínios motivados apenas
ou acima de tudo pela negligência e in-
competência de governos e seus líderes,
genocídio quebra perfeitamente o ga-
lho. De mais a mais, não há por que melar
a brincadeira dos internautas que pespe-
garam no presidente o apelido de “Geno-
cida” e não foram, até agora, processa-
dos por calúnia, injúria ou difamação.
Pausa para uma pequena digressão.
Nunca, na história deste país, um presi-
dente da República foi tão farta e conti-
nuamente achincalhado no exterior,
nem, em solo pátrio, com apelidos de va-
riadas sílabas e pejorativas sonoridades


  • Bozo, Biroliro, Boçalnaro, Capetão, Mi-
    jair, Minto, etc. – quanto o atual ocupan-
    te do Palácio do Planalto.
    Uma marchinha carnavalesca gru-
    dou em Artur Bernardes o apelido de
    “Seu Mé”; Getúlio ganhou um apelido
    carinhoso, “Gegê”; JK também: “Pé de
    Valsa”. Já o marechal Castelo Branco,
    o primeiro mandatário da ditadura mi-
    litar pós-64, foi apenas o “Sem Pesco-
    ço”. Como se vê, nada que se compare
    ao patrimônio antonomástico do atual
    presidente.


Getúlio Vargas foi muito caricatura-
do, sempre de forma benigna, no rádio e
no teatro de revista, onde chegou a ter
intérpretes fixos como Pedro Dias e Ar-
mando Nascimento, e, antes dele,
Washington Luís, encarnado pelo ator
João de Deus. Oscarito bancou Dutra no
teatro e Getúlio no cinema, na comédia
Nem Sansão Nem Dalila. Um clone de Jus-
celino Kubitschek aparecia, sorridente e
montado numa lambreta, no meio de
um número carnavalesco sobre Brasília
cantado por Linda Batista na chanchada
Metido a Bacana. Nenhum deles foi achin-
calhado. E o mesmo se diga de Sarney,

Collor e Temer.
O álcool em gel semântico esfregado
em “genocídio” e “genocida” já fora uti-
lizado, bem antes da pandemia, em ou-
tros dois cognatos: “fascismo” e “fascis-
ta”. Com as mesmas explicações de co-
mentaristas políticos e mandarins do
mundo acadêmico cujos pruridos lin-
guísticos acabaram paulatinamente
desmoralizados pelas ideias e ações do
duce formado nas Agulhas Negras.
Ideias que, diga-se, o franco Capetão
jamais escondeu ou disfarçou em sua
carreira parlamentar, e menos ainda na
campanha presidencial.
Na véspera ou no dia seguinte à escan-
dalosa censura ao cartum (sem álcool
em gel) de Aroeira, surpreendeu-me um
artigo publicado no jornal Valor, com o
título de “Mea culpa, mea culpa, mea ma-
xima culpa”. Nele, Pedro Cafardo, editor
executivo do jornal, fazia um apelo a to-
dos os Pilatos da República que, mesmo
sabendo o que esperar do candidato, aju-
daram a elegê-lo, “quando a disputa de-
mocrática oferecia pelo menos seis ou
sete candidatos melhores que o eleito”.
Há hoje, no Brasil, uma extensa lista
de entidades e pessoas que precisam fa-
zer o mea culpa pela escolha de 2018,
prosseguiu Cafardo, enfiando no mes-
mo saco “as elites brasileiras, do agrone-
gócio à indústria, passando evidente-
mente pelo setor financeiro”. E deta-

lhou: “Políticos influentes se omiti-
ram na campanha eleitoral e deram
um ‘dane-se’ ao País. Oportunistas,
muitos deles se elegeram governado-
res e deputados na sombra do candi-
dato presidencial e agora viraram ca-
saca como se nunca o tivessem apoia-
do, sem uma palavra de arrependi-
mento e desculpas”.
Não aliviou para ninguém: “Empre-
sários só pensaram no próprio quin-
tal e passaram a aceitar ‘qualquer um’
desde que não fosse do PT. Igrejas se
animaram com o tom conservador e
as ideias retrógradas. Juízes e procura-
dores influenciaram o voto sem de-
monstrar constrangimento. Jornalis-
tas olharam para a economia e acha-
ram que Paulo Guedes, o Posto Ipiran-
ga, com sua política liberal, poderia
consertar o País. Mesmo que o presi-
dente continuasse andando por aí pro-
pagando teorias bizarras, feito crian-
ça inconsequente”.
Jornalistas, insiste Cafardo,
“não podem fugir de suas responsa-
bilidades. Muitos dos que hoje fe-
rozmente expõem as atrocidades
presidenciais deveriam reler com
distanciamento crítico o que escre-
veram no passado recente”.
Não precisei reler o que escrevi.
Só lavo as mãos por necessidades
sanitárias.

IZA FALA


DE GIL E DE


RACISMO


ENTREVISTA

Só pratica o bem quem zela
pela integridade das palavras
e seu uso apropriado

RAPHAEL SIMONS

lConte-nos sobre sua relação
com a obra de Gilberto Gil.
Minha mãe sempre foi grande
admiradora da música do Gil.
Na verdade, minha família gos-
ta muito desses grandes no-
mes da música brasileira e eu
os ouvia por tabela, foi assim
desde que eu era pequena.
Não só na casa de minha mãe,
como na de minhas tias. É
uma obra que pertence à casa
de todo mundo.

lGil disse que você, ele e Zé Ri-
cardo escolheram o repertório,
mas que prevaleceram as suas
escolhas. Que músicas afetivas
de Gil você selecionou?
Para mim, foi muito fácil esco-
lher porque sou muito fã. Eu
escolhi um repertório que qual-
quer fã de Gil ia amar ouvir.
Achei muito lindo que ele to-
pou minhas escolhas. Com cer-
teza A Paz, Drão, Palco e Aquele
Abraço não poderiam faltar.

lComo é para vocês, artistas,
explorarem esse formato de live,
que surgiu como alternativa em
meio à pandemia?
Só participei de uma live, que
foi o lançamento de Let Me Be
The One. Confesso que preci-
sei me adaptar, prefiro muito
mais o formato ao vivo. Gran-
de parte das lives precisa de
muita gente para ser realizada
e eu não entendia como isso
poderia ser feito de forma se-
gura, eu ficava um pouco reti-
cente. Mas entendo que a
música vem trazendo muita
alegria para algumas pessoas,
então realmente acho que foi
uma mudança que o mercado
musical fez e que foi muito
válida para a vida das pessoas.

lO racismo estrutural ainda faz
parte das sociedades. Como
avançar nessa questão?
Discutindo sempre. Achei mui-
to bacana que a gente nunca
falou tanto sobre isso no Brasil.
Infelizmente precisou de mais
uma morte trágica, como foi a
do (George) Floyd, que não é a
primeira vez que vemos, aconte-
cesse lá fora para que as pes-
soas começassem a problemati-
zar tudo o que vem acontecen-
do. Isso tudo abriu o olho de
muitas pessoas, mas a gente ain-
da não caminhou em relação a
isso. A gente precisa deixar cla-
ro que, sim, vivemos em uma
sociedade racista e não pode-
mos mais negar isso. / A.D.R.

Iza
CANTORA

Álcool gel semântico


Gil e Iza. Encontro será na casa do músico, em Araras, região serrana do Rio, onde ele está confinado com a família, seguindo protocolos de segurança

Free download pdf