O Estado de São Paulo (2020-06-21)

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A14 Internacional DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


J


oe Biden terá 78 anos quando
assumir a presidência, se for
eleito. Ronald Reagan, até ago-
ra o presidente mais velho da histó-
ria dos EUA, só atingiu essa idade
duas semanas depois de concluir o
segundo mandato, em 1989. É mui-
to difícil que Biden, se vitorioso na
eleição de 3 de novembro, se candi-
date à reeleição em 2024, para assu-
mir com 82 anos.
Pela praxe nos EUA, ao final de
dois mandatos consecutivos, o vice
costuma ser o candidato a presiden-
te. Biden é a única exceção recente.
A principal razão foi a morte de seu
filho Beau, de câncer, em maio de
2015, que o fragilizou. Portanto, a

vice de Biden, se a chapa for vitoriosa,
será a provável candidata democrata a
presidente em 2024. No último deba-
te, contra Bernie Sanders, dia 15 de mar-
ço, na CNN, Biden afirmou que esco-
lheria uma mulher para sua chapa.
Desde então, os EUA mergulharam
numa tripla crise: a pandemia do coro-
navírus, a estagnação econômica dela
resultante e os protestos contra o racis-
mo e a violência policial. As pesquisas
mostram que essas são as três princi-
pais preocupações dos eleitores.
Dos nomes cogitados pelos demo-
cratas, quem melhor reúne as vivên-
cias relacionadas com a reforma da po-
lícia e o combate ao racismo é a deputa-
da negra Val Demings, de 63 anos, que

foi chefe da polícia de Orlando, Flóri-
da. Em segundo lugar estaria a prefeita
de Atlanta, Keisha Lance Bottoms, de
50 anos, também negra. Advogada, ela
não trabalhou na polícia, mas ficou em
evidência nesse tema, sobretudo de-
pois que o negro Rayshard Brooks foi
morto numa ação policial em Atlanta,
no dia 12.
Bottoms fez declarações incisivas so-
bre a necessidade de reformar a polí-
cia. E comoventes. Ela contou à CNN
que, ao ouvir a história de Brooks, lem-

brou-se que aos 8 anos contava os dias
para que seu pai saísse da prisão.
Brooks resistiu para não passar na pri-
são o aniversário de sua filha de 8 anos
no dia seguinte.
A senadora Kamala Harris, também
negra e jovem (55 anos), foi secretária
de Justiça da Califórnia, mas está bem
à esquerda do eleitorado independen-

te e republicano descontente que Bi-
den quer atrair.
A ex-deputada estadual e candidata
a governadora da Geórgia, Stacey
Abrams, é advogada e negra, mas não
ocupou cargo federal. Demings, Bot-
toms e Harris estão no primeiro man-
dato. É pouca experiência para quem
daqui a quatro anos pode disputar o
cargo de presidente. E até para as ou-
tras grandes questões de hoje: a saúde
e a economia.
Amy Klobuchar, senadora desde
2007, que despontou durante as primá-
rias e abandonou a corrida para apoiar
Biden, tem uma experiência que se tor-
nou um problema: ela foi promotora
no Condado de Hennepin, onde o ne-
gro George Floyd foi morto no dia 25
de maio por policiais brancos, desenca-
deando a atual onda de protestos.
Como acontece com frequência no
Ministério Público, Klobuchar cultiva-
va uma parceria com a polícia de Min-
neapolis e parece ter fechado os olhos
para a violência racial. Floyd foi morto
no dia em que Klobuchar completou
60 anos. Ela saiu da corrida recomen-

dando que Biden escolha uma ne-
gra.
Elizabeth Warren, ex-professora
de direito especializada em falên-
cias, teve papel de destaque nas dis-
cussões sobre a ajuda a empresas na
crise de 2008, e é senadora desde


  1. Mas completa 71 anos ama-
    nhã. A chapa ficaria com dois idosos
    brancos, quando a diversidade é um
    valor-chave para os democratas.
    Pesquisa da Universidade Mon-
    mouth, divulgada na quinta-feira, in-
    dica que Harris é a preferida de 28%
    dos eleitores democratas, seguida
    por Warren (13%) e Klobuchar
    (12%). Abrams ficou com 10% e De-
    mings, com 7%. A ex-primeira-da-
    ma Michelle Obama tem 3%. Bot-
    toms, a chefe do Conselho de Segu-
    rança Nacional no segundo manda-
    to de Barack Obama, Susan Rice (ne-
    gra), e a governadora do Michigan,
    Gretchen Whitmer, que enfrentou
    manifestantes armados por manter
    o lockdown, 2% cada. Nenhuma reú-
    ne todas as qualidades necessárias.
    Daí o dilema de Biden.


LOURIVAL


SANT’ANNA


Paulo Beraldo


Acabar com a legitimidade da
oposição, elaborar um discur-
so de vítima do sistema, eleger
culpados para problemas estru-
turais e criticar o intelectualis-
mo: a fórmula é a mesma, mas
se repete em países tão distin-
tos quanto Índia, Hungria, Po-
lônia, EUA e Brasil. A avaliação
é do filósofo Jason Stanley, au-
tor de Como Funciona o Fascis-
mo – A Política do ‘Nós e Eles’,

para quem o termo populista
não serve para designar o com-
portamento de líderes como
Narendra Modi, premiê india-
no, e os presidentes Donald
Trump e Jair Bolsonaro.


lEstudos mostram que muitas
pessoas não confiam mais na
democracia. Como restaurar a
confiança?


Para que a democracia seja pro-
tegida, os jornalistas devem ser
capazes de fazer seu trabalho
sem assédio de políticos. Os sis-
temas públicos de educação de-
vem ser fortes e estar disponí-
veis para todos, assim os cida-
dãos podem participar da for-
mação das políticas pelas quais
são governados.

lOnde a democracia falha?
Deve haver um caminho visível
para reduzir a desigualdade en-
tre os cidadãos para que o ideal
de igualdade política demo-
crática não seja visto como va-
zio e hipócrita. A democracia
promete liberdade aos cida-
dãos, mas quando eles são es-
magados por dívidas e trabalho
sem fim, sem esperança de que
seus filhos terão uma vida mais
digna, eles podem ser manipu-
lados por demagogos que jo-
gam a culpa de seus problemas
em fontes que não são as res-
ponsáveis por eles: os pobres,
os homossexuais, os liberais, os
ateus, os imigrantes, os negros
e outros grupos que não são res-
ponsáveis pelas disparidades
de riqueza e oportunidade.

lComo o sr. vê a valorização
das pessoas pelas democracias
hoje em dia?
Há o risco de as pessoas verem
a democracia como hipócrita,
como uma máscara para elites
poderosas controlarem o dis-
curso e a sociedade em detri-
mento da maioria. Os líderes
que incentivam essa narrativa,
e obtêm sucesso por meio des-
sa estratégia, são muito mais
corruptos do que os líderes que
eles superam, e minam mais a
democracia. Jair Bolsonaro, Do-
nald Trump e Narendra Modi
nem sequer inspiram compe-
tência e ninguém se inspiraria
na existência de autocracias tec-
nocráticas, como em Cingapu-
ra, para apoiar alguém como
Bolsonaro.

lÉ possível prever as condições

que permitem que as democra-
cias se transformem em autocra-
cias e até ditaduras?
Há várias maneiras de as demo-
cracias se transformarem em
autocracias e vários tipos de
autocracia. Depois, existem os
tipos de movimentos político
que acabam frequentemente
em incompetência e corrup-
ção em massa, uma vez que
seu principal valor político é a
lealdade.

lEm seu livro, o sr. diz
que vitimização, anti-inte-
lectualismo e deslegiti-
mar a oposição são ca-
racterísticas importantes
do fascismo. Por que políti-
cos de países muito
diferentes ado-
tam essas
estratégias?

O apelo à vitimização permite
que os políticos justifiquem
comportamentos antiéticos e
sem princípios. Por exemplo,
comportamentos ilegais e an-
tiéticos são justificados porque
são os alvos da mídia e da clas-
se política supostamente injus-
tas. Justifica o sentimento de
queixa legítima de seus apoia-
dores. A vitimização do grupo
dominante é muito poderosa,
como vemos hoje na Índia,
com o apelo ao nacionalis-
mo hindu. Os hindus são a
maioria da população
(80%) e muitos estão con-
vencidos de que o país es-

tá sob ameaça dos muçulma-
nos. O anti-intelectualismo faz
parte do apelo das figuras de
autoridade. A autoridade do ho-
mem-forte tem como base a
força. E a deslegitimação da
oposição faz parte do impulso
antidemocrático.

lMuitos desses líderes também
fazem uso da religião e tentam
se retratar como ‘escolhidos’. Há
como combater isso?
O bom jornalismo deve revelar
que tais afirmações frequente-
mente têm como base a hipo-
crisia. Os conservadores são es-
senciais aqui – cristãos que cri-
ticam o que está sendo feito
em nome da religião. Também
precisamos de cidadãos com
um senso das tradições demo-
cráticas do país, como foi a ma-
neira pela qual o Brasil emer-
giu da ditadura militar para ser
a democracia em desenvolvi-
mento mais inspiradora do
mundo. Precisamos de mem-
bros das Forças Armadas que
recusem distorcer a lei em no-
me do líder. A lealdade militar
é ao país e à democracia.

lGrandes democracias como
Índia, EUA e Brasil são lideradas
por populistas. Em seu livro, o sr.
evita esse termo. Por quê?
Lula era populista. Bernie San-
ders é populista. É absurdo ter
uma categoria que agrupe Bol-
sonaro e Lula. Se o objetivo é
combater políticos como
Trump, Bolsonaro e Modi, que
buscam dividir, é preciso ter
políticas que transmitam con-
fiança às pessoas. O problema
não é o populismo. É o que cha-
mo de fascismo, concorde vo-
cê ou não com esse rótulo. Mui-
tos políticos que chamamos
com naturalidade de populis-
tas nunca empregariam as táti-
cas que descrevo. Então, preci-
samos de outro termo. Talvez
não seja fascista. Mas definiti-
vamente não é populismo.

ENTREVISTA


EMAIL: [email protected]
LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

BERLIM


Autoridades sanitárias da Ale-
manha confirmaram ontem
que o número de pessoas infec-
tadas com covid-19 em um fri-
gorífico na cidade de Gütersloh
subiu para 1.029 – no início da
semana, o total era de 600 con-
taminados. O local, onde traba-
lham 6,5 mil funcionários, per-
tence à Tönnies, a maior proces-
sadora de carne do país.
O surto de infecções foi anun-
ciado na quarta-feira. Desde en-
tão, o frigorífico foi fechado
por duas semanas. De acordo
com Sven-Georg Adenauer,
conselheiro estadual do muni-
cípio de Gütersloh, no Estado
da Renânia do Norte-Vestfália,


não há registro de que o vírus
tenha se espalhado para a cida-
de de 100 mil habitantes vizi-
nha de Bielefeld, no centro da
Alemanha.
Adenauer reclama que as au-
toridades não conseguiram ras-
trear cerca de 30% dos funcio-
nários da empresa. “A confian-
ça que temos na Tönnies é ze-
ro”, disse. O diretor da empre-
sa, Andres Ruff, afirmou ontem
que a demora para comparti-
lhar os dados ocorre em razão
das leis alemãs de proteção à
informação.
De acordo com Adenauer, fo-
ram realizados 3.127 testes de

diagnóstico no frigorífico e a
um terço teve resultado positi-
vo. Armin Laschet, chefe de go-
verno do Estado da Renânia do
Norte-Vestfália, acredita que o
surto de covid-19 possa ser con-
tido com uma quarentena loca-
lizada, mas não descarta medi-
das mais radicais. “Se a coisa
piorar, pode ser necessário de-
cretar um novo lockdown na re-
gião”, disse

Aplicativo. A Alemanha tem
cerca de 190 mil casos confir-
mados de coronavírus e quase
9 mil mortos – bem menos do
que Espanha e Itália, os países
mais afetados da Europa. A cur-
va de contaminações vem cain-
do há algumas semanas, o que
permitiu ao governo relaxar al-
gumas medidas de isolamento
social.
Por isso, a Alemanha se tor-
nou um dos primeiros países a
relaxar medidas de confina-
mento. No início de maio, pe-
quenas e médias lojas foram

reabertas e alguns estudantes
voltaram às aulas. Escolas, bi-
bliotecas públicas, salões de be-
leza e outros comércios volta-
ram a funcionar algumas sema-
nas depois – com novas regras,
como máscaras obrigatórias.
O governo da chanceler Ange-

la Merkel, no entanto, alertou
que a população deveria adotar
cautela ao retomar as ativida-
des econômicas. “A primeira fa-
se da pandemia terminou, mas
ainda estamos no início e te-
mos uma longa luta contra o ví-
rus pela frente”, alertou

Merkel, após afirmar que o
afrouxamento das restrições
só foi possível graças à estabili-
zação da taxa de contágio e à
baixa ocupação de leitos de hos-
pitais.
Preocupada com uma segun-
da onda de infecções, Merkel
determinou que cada Estado
deveria adotar regras próprias
para retomar setores da econo-
mia. Esta semana, o governo
lançou um aplicativo de celular
para rastrear casos do novo co-
ronavírus. A ferramenta funcio-
na por bluetooth e consegue
medir a distância entre os
smartphones dos usuários.
Quando detecta que duas pes-
soas estão a menos de 1,5 metro
uma da outra por mais de 15 mi-
nutos, ele registra o código de
usuário de ambas.
Ontem, Merkel pediu que os
alemães usem o aplicativo de
rastreamento de infecções,
que já foi baixado por mais de 9
milhões de pessoas no país.
“Quanto mais gente usar o apli-
cativo, mais útil ele será”, disse
a chanceler, que voltou a dizer
que a participação é voluntária.
/ EFE, REUTERS e AFP

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Para professor de Yale, é


preciso encontrar outro
termo para descrever o


anti-intelectualismo de


alguns líderes


Jason Stanley, filósofo e professor da Universidade Yale, nos EUA


Fechado. Entrada do frigorífico da Tönnies em Gütersloh

Surto em frigorífico contamina mais de mil na Alemanha


Biden quer uma negra como
vice, mas com experiência para
disputar a presidência em 2024

l Novo foco

1.
funcionários de um frigorífico na
cidade de Rheda-Wiedenbrück
foram contaminados com co-
vid-19 – autoridades fecharam
o local por duas semanas

YALE UNIVERSITY

FOCKE STRANGMANN/EFE

TOM BRENNER/REUTERS

Corrente. Último encontro entre Trump (E) e Bolsonaro em Mar-a-Lago, na Flórida

‘Populismo


não define


Trump e


Bolsonaro’


Stanley.
Reflexão
sobre a
democracia

Autoridades não


descartam a


possibilidade de decretar


um novo lockdown na


região de Gütersloh


O dilema de Biden

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