O Estado de São Paulo (2020-06-21)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 A

Metrópole

Desafio ao atendimento
“O que conseguimos, na prática, é
atrasar a morte para que o paciente
consiga ir eliminando o vírus da
covid-19 aos poucos.”
Bruno Adler Maccagnan Besen,
MÉDICO INTENSIVISTA, DO HC DE SP

E


m 31 anos de casados,
Maria Rita e João Batis-
ta França nunca ha-
viam conversado sobre como
seriam suas cerimônias de
despedida quando a vida de
um dos dois chegasse ao fim.
O analista de sistemas de 61
anos não perdia tempo pen-
sando na hora da morte. Pelo
contrário. Fã de churrasco,
música e dança, ele geralmen-
te estava mais “preocupado”
em marcar a próxima festa
em família, sem necessidade
de data especial.
Foi por co-
nhecer toda a
animação do
marido que Ma-
ria Rita ficou
surpresa quan-
do, no início de
março, ele co-
mentou, pela primeira vez,
seu desejo para quando mor-
resse. “A gente estava vendo
as notícias daquele monte de
gente morta por coronavírus
na Itália quando ele me disse
que, quando chegasse a hora
dele, não queria ser enterra-
do. Queria ser cremado e ter
as cinzas jogadas no Rio Ribei-
ra, no interior de São Paulo,
onde nasceu”, conta. Na oca-
sião, nenhum brasileiro havia
sido vítima da covid e a dona
de casa não imaginava que
sua família, já em isolamento,

poderia ser infectada.
Uma semana depois, Fran-
ça começou a sentir febre e
cansaço. Em 24 de março, foi
internado com diagnóstico
de coronavírus. Um dia de-
pois, Maria Rita deu entrada
no mesmo hospital, na zona
oeste de SP. Ambos ficaram
na UTI, mas ele não aguen-
tou. Morreu no dia 4 de abril.
“Eu estava na UTI, mas es-
tava lúcida. Meu filho ligou e
disse: ‘Mãe, o pai não resis-
tiu’. Chorei muito na hora,
mas o que eu mais pensava é
que eu tinha
de conseguir
sair para meus
filhos não fica-
rem sozi-
nhos”, diz ela,
que teve alta
dias depois.
O filho teve de cuidar dos
trâmites da cremação do pai.
Mas, com a mãe ainda no hos-
pital e os demais parentes iso-
lados no interior, a família
adiou a cerimônia no Rio Ri-
beira. “Meu filho foi até a ci-
dade de Sete Barras e colocou
a urna com as cinzas junto do
túmulo da minha sogra. Cons-
truiu uma capelinha para que
fiquem lá até que toda a famí-
lia possa se encontrar de no-
vo e fazer uma cerimônia bo-
nita de despedida para ele.” /
FABIANA CAMBRICOLI

Falta de assistência
“Corri para tentar salvar o meu pai. Mas
aqui não tem hospital de referência para a
covid-19. Se tivesse, daria tempo de
salvá-lo, mas o leito da UTI não chegou.
Onde estão os hospitais de campanha?”
Janaína Fideles, DE S. GON. DO AMARANTE

JOÃO BATISTA FRANÇA
61 ANOS
ANALISTA DE SISTEMAS

T


utu, maraka, tiama,
charango, kena, violão.
Não importava o no-
me, José Cajueiro dominava
qualquer instrumento de per-
cussão ou de corda. Desde
jovem era o responsável por
levar música às festas, rituais
e também aos protestos reali-
zados pelos kokamas.
Nascido na aldeia em San-
to Antônio do Iça, no Alto So-
limões, circulou por diferen-
tes regiões do Amazonas. Os
últimos anos de vida passou
na Aldeia Karuara, na zona
rural de Ma-
naus. Teve cin-
co filhos.
A música fez
dele figura fun-
damental na
integração do
seu povo – são
cerca de 12 mil kokamas espa-
lhados pelo Amazonas, de
acordo com censo do IBGE
de 2010. “Era de uma alegria
contagiante. Inspirava os
mais jovens. Foi muito impor-
tante por manter viva as nos-
sas tradições”, conta a prima
Altaci Rubim.
Cajueiro partiu de repente,
em maio, quando a pandemia
adentrou o interior do Esta-
do. Passou uns dias internado
em Manaus com todos os sin-
tomas da covid-19. Mas não
foi testado. E, por ter morri-

do fora de sua aldeia, não foi
registrado como indígena. “O
governo tem essa política de
excluir os índios. Não pensa-
ram em nada para diminuir a
pandemia nas aldeias. Conta-
mos apenas com a solidarieda-
de da sociedade”, diz Altaci,
que reivindica, por exemplo,
a construção de hospitais de
campanha no interior do
Amazonas, onde indígenas
estão morrendo. “Não há ne-
nhum atendimento nas re-
giões mais afastadas.”
As mortes dos índios fora
das aldeias e
as medidas
restritivas da
pandemia não
permitem aos
kokamas reali-
zar suas ceri-
mônias. Eles
aguardam a passagem do ví-
rus para fazer uma grande
festa em homenagem a quem
sucumbiu à doença.
“Quando uma pessoa mor-
re, ela renasce como árvore.
Se você foi bom, volta como
uma planta medicinal ou fru-
tífera. Se não, voltará em uma
planta com espinhos que nin-
guém se aproxima”, diz Alta-
ci. Para ela, o primo se torna-
rá uma samaumeira. “É gran-
de e protetora. Ele era assim.
E com sua música, nos prote-
gia.” / JOÃO PRATA

JOSÉ CAJUEIRO
79 ANOS
MÚSICO

T


atiane Ferreira Ferrare-
gi já tinha mais de 30
anos quando finalmen-
te concluiu a faculdade de
enfermagem. Como a maio-
ria dos brasileiros, por falta
de condições financeiras, não
conseguiu iniciar uma gradua-
ção logo ao sair do ensino mé-
dio, mas nem por isso desis-
tiu de trabalhar na área da
saúde, sua grande paixão.
Fez um curso para tornar-
se técnica em enfermagem e
logo começou a trabalhar em
hospitais públicos e privados.
Depois de al-
guns anos, pelo
bom desempe-
nho profissio-
nal, teve a opor-
tunidade de
cursar uma fa-
culdade com
parte da mensalidade paga
pelo empregador. “O hospital
ofereceu uma bolsa para ela
fazer enfermagem. Ela ficou
muito feliz. Depois ainda se
especializou no atendimento
de pacientes em UTI”, conta
a irmã Cilene dos Santos, de
42 anos, também enfermeira.
Tatiane se formou em
2016, aos 32 anos, e depois
disso atuou principalmente
no tratamento de pacientes
graves. Desde fevereiro, este-
ve na linha de frente do aten-
dimento a doentes com co-

vid-19 nos dois hospitais da
Grande São Paulo em que
atuava. “A gente mal estava
conseguindo conversar por-
que ela fazia plantão de 12 ho-
ras todos os dias, cada dia em
um hospital”, conta Cilene.
A rotina extenuante de tra-
balho na pandemia era tanta
que Tatiane, ao sentir os pri-
meiros sintomas do coronaví-
rus, achou que era cansaço
físico relacionado ao traba-
lho. “Ela começou a se sentir
ofegante quando subia a rua
da casa dela, mas achou que
era o cansaço
acumulado
pela sobrecar-
ga de trabalho
e pela corre-
ria. Só que no
fim de março
ela acabou pio-
rando e foi internada. Foram
19 dias no hospital, 18 dias
entubada”, conta a irmã.
Mesmo com 36 anos e sem
doença crônica, Tatiane foi
vencida pela covid e morreu
em 16 de abril, deixando mari-
do, dois filhos, os pais e dois
irmãos. “Para ela, a enferma-
gem não era só um ganha-
pão, era uma coisa que ela
amava e lutou bastante para
conseguir. Fazia tão pouco
tempo que ela tinha consegui-
do realizar esse sonho e já par-
tiu.” / FABIANA CAMBRICOLI

Sem aprender lições do exterior, País vê escalada de casos sob falhas para entregar testes e


leitos. Famílias atravessam pandemia entre o luto sem despedida e a incerteza sobre o futuro


P


ouco mais de três meses após registrar o primeiro óbito por
covid-19, o Brasil superou ontem a triste marca de 50 mil mor-
tos pela doença, segundo dados do consórcio de veículos de
imprensa formado por Estadão , G1, O Globo , Extra , Folha e UOL. A
primeira das 50.058 vítimas morreu em 17 de março, quando a pande-
mia matava milhares na Ásia e Europa. O Brasil, porém, não aprovei-
tou a chance de aprender com a experiência de outras nações.
Enquanto a curva de casos e óbitos subia, dois ministros da Saúde
caíram, houve discursos divergentes de autoridades federais, esta-

duais e municipais, e os afetados sofrem com atrasos na compra e
entrega de testes, leitos, respiradores e outros recursos fundamen-
tais para aumentar a chance de sobrevivência dos infectados. O Bra-
sil é hoje o segundo país com mais vítimas, com o agravante de que o
número diário de mortos não dá sinal de recuo. Após um isolamento
social falho, que não freou suficientemente o avanço do vírus, o
desafio agora é fazer com que a reabertura, vista com ressalvas por
especialistas, não leve a um descontrole maior da transmissão.
Os brasileiros vítimas da pandemia deixam pais, filhos, mulhe-

res, maridos. Amigos e amigas. A maioria tinha algum fator de
risco, mas outros tantos não resistiram, mesmo sendo jovens e
sem doença crônica. Para quem perdeu um parente ou amigo,
estar ou não no grupo de risco não importa. A dor da perda repenti-
na por uma doença desconhecida machuca igual. Torna-se ainda
mais dura quando nem sequer uma despedida é permitida. Por
causa do risco de contaminação, as vítimas são enterradas em
caixões lacrados, sem direito a velório. O Estadão conta abaixo
como famílias de vítimas da covid-19 estão lidando com as perdas.

‘Eu estava na UTI,
mas lúcida. Meu filho
ligou e disse: Mãe, o
pai não resistiu’

‘Para ela, a
enfermagem não era
só um ganha-pão, era
uma coisa que amava’

TATIANE FERREIRA
36 ANOS
ENFERMEIRA

‘Ele inspirou os mais
jovens, foi importante
por manter viva nossas
tradições indígenas’

50 MIL VIDAS PERDIDAS NO PAÍS E


O SOFRIMENTO DISTANTE DO FIM


Sem adeus

“Não tivemos oportunidade de despedida. Mesmo
entendendo que a morte é um processo natural, sinto

falta de dizer: ‘Vai com Deus, fique em paz’.”
Ana Paula da Silva, ENFERMEIRA QUE PERDEU A MÃE, JURACI AUGUSTA DA SILVA

NO LUTO, À ESPERA


DO REENCONTRO


E DA DESPEDIDA


‘QUANDO ALGUÉM


MORRE, RENASCE


COMO ÁRVORE’


SONHO DE AJUDAR


OS OUTROS E ADEUS


ANTES DO TEMPO

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