O Estado de São Paulo (2020-06-21)

(Antfer) #1

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A20 Esportes DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


UGO


GIORGETTI


*Marcius Azevedo


“Você sabia que de cada 10 as-
sassinatos no Brasil, oito são
de pessoas NEGRAS como eu?
Essa não é uma luta só dos ne-
gros, essa é uma luta de TO-
DOS. Não basta não ser racis-
ta, você tem de ser ANTIRRA-
CISTA.” A frase foi postada pe-
la pivô Érika de Souza no Twit-
ter poucos dias depois do as-
sassinato do negro George
Floyd por um policial branco,
em Minnesota, Estados Uni-
dos. Filha de mãe negra e pai
branco, a jogadora de 38 anos,
com diversos títulos na carrei-
ra, incluindo o da WNBA em
2002, liga americana de bas-
quete, quis ser ouvida, afinal já
sentiu na pele o preconceito.
Em entrevista ao Estadão , ela
mergulhou na experiência de
vida para tocar na ferida que in-
siste em ficar aberta.


lVocê se posicionou publica-
mente contra o racismo após o
caso do assassinato de George
Floyd... Qual o seu sentimento
naquele momento?
O esporte dá uma falsa impres-
são de que não temos racismo,
porque temos muitos ídolos
negros, como Pelé, Michael


Jordan, Serena Williams... É
uma falsa ideia de que os ne-
gros são valorizados. Eu, pes-
soalmente, nunca tive proble-
ma nas equipes em que joguei.
Minha mãe e minha avó são ne-
gras de pai e mãe e meu pai é
branco. Sempre tive para mim
por que minha mãe tem de ser
empregada doméstica e meu
pai tratado como o homem
branco? É triste ver isso na so-
ciedade. Tenho um irmão bran-
co dos olhos azuis. As pessoas
não dizem que é meu irmão.
Tenho também duas sobri-
nhas, uma de pele negra e ou-
tra branca com os olhos azuis,
e já ouvi muitas vezes pessoas
falando que não era filha do
meu irmão.

lHá um racismo enrustido?
É um pouco mais escondido.
As pessoas sentem vergonha
de assumir, lutar contra. É
mais no sentido do oba-oba,
como aconteceu agora neste
caso. Começou nos Estados
Unidos, passou pela Europa e
aí o Brasil se manifestou. Isso
tem de acontecer sempre. Te-
mos negros no esporte e em to-
dos os setores. Temos de pro-
testar, apoiar, lutar para que is-
so não aconteça. Nas faculda-
des, por exemplo, somos uma
cota mínima. Por quê? Os bran-
cos são mais inteligentes? Ou
o negro não pode entrar em
uma sociedade de brancos? To-
dos somos iguais, temos o mes-
mo direito.

lComo você vê o presidente da

Fundação Palmares, Sérgio Ca-
margo, afirmar que não existe
racismo no Brasil?
É revoltante. Claro que existe.
As pessoas só tentam minimi-
zar. Se não existe racismo, en-
tão temos de mostrar. Os ne-
gros precisam ter o direito de
viver em uma sociedade igual.
Temos de acabar com isso. Lu-
tar por uma mudança para que
isso não venha afetar o futuro
da minha sobrinha, de filhos
ou irmãos de outras pessoas.
Temos de ensinar este valor.

lO que poderia ser feito?
Temos de começar sendo antir-
racistas. O racismo precisa ser
combatido diariamente. Não
adianta fazer postagem na in-
ternet, camiseta... Temos de
transformar ação em prática.
Começar desde casa, passando
pela escola. O amiguinho não
pode sentir vergonha do outro
amiguinho porque ele tem

uma pele mais escura. Deveria
ter uma matéria para explicar,
dizer que ele não tem de exis-
tir. As crianças precisam enten-
der que uma vida negra impor-
ta, assim como uma branca.
Minhas sobrinhas nasceram
uma com o olho azul e outra
de cabelo crespo, mas são des-
cendentes da mesma avó, da
mesma bisavó e da mesma fa-
mília. As pessoas precisam en-
tender que temos uma miscige-
nação no Brasil.

lTodos os atletas precisam se
posicionar?
O atleta tem uma enorme visi-
bilidade, ele alcança muitas
pessoas. O nosso papel não é
apenas dentro de quadra. Te-
mos de nos posicionar. Claro
que temos medo de que algu-
ma coisa possa acontecer co-
nosco, mas acredito que todos
os atletas precisam se posicio-
nar, não podemos deixar pas-

sar. Temos de mostrar que to-
dos nós somos iguais. Os atle-
tas, hoje, são mais coinciden-
tes, estão preocupados com es-
tas questões. Quando uma pes-
soa é atacada todos nós sofre-
mos. Temos de sofrer juntos,
sentir esta dor e tentar acabar
com isso.

lViu o vídeo do George Floyd?
Vi porque passou muitas ve-
zes. E nem sequer por isso vai
acabar. As pessoas foram para
rua e agora ninguém mais vai
sofrer racismo? Infelizmente
vai acontecer outra vez. As pes-
soas vão sair novamente, vão
protestar, dar a cara a tapa, co-
mo fizeram os atletas nos Esta-
dos Unidos, mas não vai adian-
tar. São as pessoas que estão lá
no alto, com poder, que preci-
sam fazer algo para que possa-
mos ter uma mudança. Os poli-
ciais precisam ser treinados pa-
ra lidar com estas situações.
Eles estão aí para nos defen-
der, não para matar.

lOutro assunto importante. Ho-
mens e mulheres, um dia, serão
tratados como iguais no esporte?
O preconceito para nós mulhe-
res vai muito além. Nunca fui
despeitada em quadra por tor-
cedores, como já aconteceu
com algumas companheiras.
Mas há um tratamento diferen-
te. Eu sou campeã da WNBA,
conquistei oito títulos na Espa-
nha, tenho uma história na se-
leção e nunca ninguém me ofe-
receu um patrocínio. São
exemplos bobos que pesam.
Tem muito jogador que con-
quistou muito menos, que nun-
ca jogou pela seleção, e recebe
material esportivo. Acontece
muito. A única justificativa
que enxergo é pelo fato de eu
ser mulher. Como eu já escutei
e outras jogadoras também.
Porque é mulher, é mais di-
fícil. Isso não justifica. Temos
de falar, tenho de incentivar as
outras meninas a falar, por-
que, caso contrário, vai passar
de geração para geração.

lComo está lidando com este
momento de pandemia?
Está sendo difícil. Para o atleta
treinar em casa é muito dife-
rente de estar na quadra, ou
até mesmo na academia. Mas
espero que tudo possa voltar
ao normal em breve, que todos

possam realizar o trabalho diá-
rio normalmente. Meu marido
e meu cunhado, por exemplo,
têm uma academia e ela está
há três meses fechada. De on-
de vem o ganha-pão? Eles es-
tão buscando alternativas para
não ter de atrasar contas.

lVocê está sem receber de ne-
nhuma equipe?
Tenho acordo com o Sampaio
(Correa) , acertei com eles an-
tes do final da temporada na
Espanha, mas nunca me apre-
sentei. Assim que voltei (da Eu-
ropa) , já tínhamos esta situa-
ção da pandemia e tive de ficar
em casa. Então estou sem rece-
ber salário, porque eles só
iriam me pagar a partir do mo-
mento que eu me apresentas-
se. Por isso espero que isso
possa acontecer logo.

lA Liga de Basquete Feminino
tem reunião na próxima terça
para definir se o torneio será reto-
mado. O que pensa disso?
Nós temos um grupo de What-
sApp e conversamos sempre
sobre isso. Se for com 200%
de chance de que seria com se-
gurança, com todos os cuida-
dos necessários para não preju-
dicar ninguém, jogadoras, com
teste para todos, eu sou favorá-
vel ao retorno. Será necessário
um investimento financeiro,
mas acredito que algumas em-
presas possam se interessar
neste momento porque tam-
bém precisam de visibilidade.

lO Brasil está fora de Tóquio.
Aos 38 anos, ir para os Jogos de
Paris-2024 é possível?
Está distante. Tenho o sonho
de ser mãe. Acho que para o
Mundial (2022, na Austrália) ,
talvez. Conversei com o Diego
(Falcão, preparador físico da sele-
ção) e ele me apresentou um
médico do esporte. Já me cui-
dava, até porque meu marido é
personal trainer. Com ajuda
do Diego e agora do Gil, tenho
vontade de jogar o Mundial
com 40 anos e me despedir. A
minha despedida seria em Tó-
quio, mas infelizmente não
conseguimos classificar e ago-
ra vou esticar um pouquinho.

RIO


Um decreto do prefeito do Rio
de Janeiro Marcelo Crivella
criou uma grande confusão on-


tem entre os clubes que dispu-
tam o Campeonato Carioca.
Após publicar no Diário Oficial
que suspendia a disputa de jo-
gos da competição no municí-
pio até o dia 25 de junho, Crivel-
la mudou de ideia horas depois,
mas já era tarde – a Federação
de Futebol do Estado do Rio de
Janeiro (Ferj) reprogramou os
dois jogos de hoje para o meio
de semana.
Primeiro, a Prefeitura do Rio

publicou um decreto informan-
do que a partir da publicação do
texto, ontem, os eventos espor-
tivos na capital do Estado esta-
vam proibidos até o dia 25 (quin-
ta-feira) como medida de pre-

venção ao novo coronavírus. O
veto impactava principalmente
duas partidas que estavam mar-
cadas para hoje: o encontro en-
tre Vasco e Macaé, às 16h, em
São Januário, e Madureira x Re-

sende, às 15h30.
Depois, em vídeo divulgado
no início da noite, ele avisou
que a medida vale somente para
os jogos entre Botafogo e Cabo-
friense e Fluminense e Volta Re-
donda, marcados para amanhã.
A proibição de jogos na capi-
tal havia até mesmo levado o
Vasco e o Macaé a negociarem
uma transferência do jogo de úl-
tima hora para a cidade do Sa-
quarema. No entanto, com a re-
tificação feita por Crivella, a par-
tida estava mantida para a tarde
de hoje em São Januário, mas
sem torcida.
A proibição de Crivella agra-
da a Botafogo e Fluminense,
que teriam jogo amanhã, mas re-
cusam entrar em campo. Os
dois clubes pedem mais tempo
para treinar e só querem atuar

em partidas oficiais em julho.
Contudo, perto das 22h, a
Ferj postou em suas redes so-
ciais uma mensagem informan-
do a reprogramação dos jogos
do dia. Assim, Vasco x Macaé foi
adiado para quarta-feira, dia 24,
às 21h30 em São Januário, e Ma-
dureira x Resende jogarão na
quinta-feira, dia 25, às 15h30 em
Conselheiro Galvão.
Fora a falta de entendimento
sobre a data da validade, o decre-
to prevê que os centros de trei-
namentos localizados na capi-
tal do Estado precisarão passar
por inspeção do órgão sanitário
municipal antes de ser liberada
a realização de atividades.
Já os times de outras cidades
terão de apresentar até a quinta
um relatório sanitário emitido
por um órgão competente.

ENTREVISTA


E-MAIL: [email protected]

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Carioca. Após proibir


partidas até quinta,


Prefeito do Rio tenta


ajuste, mas já era tarde e


jogo do Vasco foi adiado


Racismo: Protestos revelam
perversa invisibilidade social

H


oje, domingo, é uma grande
data brasileira. É a data da
inesquecível final Brasil x
Itália em 1970. É muito difícil falar
dessa Copa sobre a qual já se derra-
mou tanta tinta e, ainda assim, conti-
nua assunto. Tento lembrar desse
domingo de junho e, ao contrário do
que se costuma dizer, não lembro
dele como se fosse ontem. Foi há
muito tempo, por isso me aparece
mais como impressões do que co-
mo fatos.
Como todo mundo gosta mais de
fatos, o que lembro claramente des-
sa Copa é o incrível número de pes-

soas desfilando pelas ruas da cidade
depois das vitórias. Nunca tinha visto
nada assim antes e não voltei a ver de-
pois. Havia na época um clima de pa-
triotismo aparente, nacionalismo tru-
culento, e orgulho do Brasil, devida-
mente insuflados pelo governo militar
e por parte da classe média, que desfila-
va em seus carros onde se liam dísticos
como “Ame-o ou deixe-o”, se referin-
do ao País, bem entendido.
E eis que de repente apareceu o po-
vo, que, na época, me dava impressão
de ser indiferente ao governo. Foi o
time que fez as multidões ganhar as
ruas e não os apelos patrióticos ante-

riores. Foram os resultados, e, mais
que os resultados, as exibições. Por-
que a apoteose da invasão das ruas
aconteceu aos poucos e foi crescendo
na medida em que crescia a admiração
por aquele futebol.
Descrever essas multidões é quase
impossível. Foram momentos de libe-
ração total. O que não se podia falar
alto, falava-se, o que não se podia fa-
zer, começou a ser feito. Uma espécie
de 1968 sem rebeldia política, que nin-
guém era louco, mas toda a rebeldia no
comportamento. O que se via dos car-
ros era menos os adesivos nos vidros
traseiros e mais uma desordem infer-
nal, com gente gritando, sacudindo
enormes bandeiras, falando os piores
palavrões, inclusive as moças, numa
época na qual a cidade era ainda um
pouco provinciana nos costumes.
Ouvia-se de tudo aos berros e via-se
tudo. Essa loucura começou a partir
do jogo contra a Inglaterra, quando as
coisas começaram a ficar claras para os
torcedores. Uma pequena história que

lembro é a de um senhor, de quase 70
anos, chegado da Suíça para tratar de
assuntos familiares e que estava hospe-
dado na Rua Alagoas quase Av. Angéli-
ca. Eu tinha recomendado a ele que
não saísse na rua depois dos jogos, e ele
me assegurou que estava acostumado
ao futebol e que tinha até sido goleiro
em Berna (!!)
Quando o Brasil ganhou do Uruguai
e as ruas pegaram fogo, estava eu em
casa, o telefone toca e é o velho suíço.
Me contou que tinha saído de casa e
entrado na Angélica, onde foi colhido
por uma massa ensandecida e arrasta-
do até um lugar que ele não conhecia.
Alguém tomou o telefone e uma voz
me disse entre gritos, berros e cantos
ao fundo, que o velho estava num bar
na Av. Paulista!
Quem conhece a região sabe de que
distância estou falando. Quando o res-
gatei trêmulo, sem óculos, atarantado,
mal sabia quem era. Esse era o clima
das ruas, uma cafajestada saudável, ale-
gre e liberta. Não lembro de incidentes

sérios nem agressões.
Quanto ao time, hoje vejo quanto
devemos essa conquista ao Zagallo.
Ele, tão contestado, mostrou que ti-
nha futebol brasileiro nas veias. For-
mou um time onde o craque jogava,
não importava muito a posição. Pen-
sou, tenho certeza, que craque acha
seu lugar no campo e, partindo dis-
so, colocou Tostão, um gênio sem
posição definida, Jairzinho sem po-
sição definida, Rivellino, redesco-
berto pelo Zagallo, também sem po-
sição definida. Até um craque que
não tinha lugar entrou: Piazza não
poderia jogar porque havia Clodoal-
do, mas também era craque e Zagal-
lo inventou Piazza na quarta zaga
longe de sua posição no Cruzeiro.
Era comum ver jogadores fora da
posição habitual, por isso a surpresa
de Carlos Alberto fazendo o quarto
gol do jogo. Zagallo tinha uma tática
sábia, que não sei por que depois ele
mesmo abandonou: na dúvida, pu-
nha o craque.

Érika de Souza, jogadora da seleção feminina de basquete


‘Racismo


tem de ser


combatido


diariamente’


WILTON JUNIOR / ESTADÃO-18/6/

Quarentena / Pág. H

WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Crivella retifica


decreto confuso e


Ferj remarca jogos


Disputa. Flamengo bateu o Bangu por 3 a 0 na última quinta

Símbolo. Érika faz gesto da luta contra o racismo no mundo

Filha de mãe negra e pai


branco, pivô campeã da


WNBA alerta para o papel


dos atletas para uma
sociedade igualitária


A Copa de 70

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