O Estado de São Paulo (2020-06-21)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Leandro Karnal


l]


Mariane Morisawa
ESPECIAL PARA O ESTADO


Por incrível que pareça, o mundo
retratado por Erle Stanley Gard-
ner em seus livros com o advoga-
do Perry Mason, lançados a par-
tir de 1933, guarda uma semelhan-
ça alarmante com o que estamos
vivendo hoje – crise econômica,
preconceito, abuso de poder. “É
deprimente que tenhamos pro-
gredido tão pouco nesses quase
90 anos”, disse ao Estadão o
ator Matthew Rhys, que interpre-
ta o personagem na nova versão
de Perry Mason , com estreia nes-
te domingo, às 21h, na HBO.
“Mas acho que é nossa responsa-
bilidade mostrar que é preciso
mudar”, completou.
Quem conhece a série de mes-
mo nome estrelada por Ray-
mond Burr entre 1957 e 1966 vai
notar que este Perry Mason na-
da tem a ver com aquele. A anti-
ga adaptação inaugurou a era de
procedurais (que contam um
caso por episódio) na TV ameri-
cana, que dura até hoje com
seus dramas de tribunal e poli-
ciais. Invariavelmente, o episó-
dio terminava com o criminoso
confessando seu crime no tribu-
nal, depois de apertado pelo ad-
vogado Perry Mason.
Originalmente, o novo Perry
Mason
seria um longa estrelado
por Robert Downey Jr. Mas lo-
go ele e sua mulher Susan Dow-
ney, que são produtores, perce-
beram que uma série sintoniza-
da com os novos tempos funcio-
naria melhor. “O nível hoje é
muito mais alto”, disse o dire-
tor Tim Van Patten ( Boardwalk
Empire
, Game of Thrones ). “É
preciso criar um mundo maior
e mais rico, com foco nos perso-
nagens, não na trama.”
O mundo em questão é a Los
Angeles da virada de 1931 para



  1. Enquanto os Estados Uni-
    dos estavam mergulhados na
    Grande Depressão, a cidade vi-
    via um boom graças à indústria
    cinematográfica e ao petróleo.
    “Ainda assim, havia uma distân-
    cia enorme entre as pessoas tra-
    balhando nos escalões superio-
    res e aquelas que não tinham na-
    da”, afirmou Van Patten.


Downey Jr. desistiu do papel
por conta de conflitos de agen-
da e foi substituído por Mat-
thew Rhys, vencedor do Emmy
por The Americans. Perry Mason ,
escrita por Ron Fitzgerald e Ro-

lin Jones, é uma história de ori-
gem. O personagem não é um
advogado, mas um detetive li-
dando com transtornos de es-
tresse pós-traumático depois
de lutar na Primeira Guerra e

perder sua família. O caso em
questão é o sequestro de um be-
bê, e a trama envolve pessoas
importantes, corrupção e a igre-
ja liderada pela irmã Alice (Ta-
tiana Maslany).

“Infelizmente, onde há po-
der, seja a polícia ou o sistema
judiciário ou a religião comer-
cial, vai ter corrupção também.
É algo atemporal. Era verdadei-
ro em 1930 e igualmente hoje”,

lembrou Susan Downey. “Mas
queríamos criar esses outsiders
que estavam dispostos a derru-
bar esse sistema, sem medo das
repercussões.”
Além de Perry Mason, dois ou-
tros personagens clássicos apa-
recem na nova série, em roupa-
gem do século 21. Della Street
(Juliet Rylance) deixa de ser a
secretária que até tinha uma li-
gação romântica com Mason pa-
ra ser a pessoa mais competen-
te do escritório do advogado
E.B. Jonathan (John Lithgow),
para quem o detetive trabalha.
Ela tem um romance, sim, mas
com uma mulher. E Paul Drake
(Chris Chalk), que originalmen-
te era o investigador de Mason,
agora é um policial negro nas
ruas de Los Angeles.
“O Perry Mason da década de
1950 não era um reflexo do que
acontecia fora dos muros do es-
túdio. Era uma fantasia”, expli-
cou Fitzgerald. “O mínimo é fa-
zer uma representação mais
próxima da realidade.” Mas os
roteiristas não queriam incluir
minorias só para satisfazer uma
demanda de mais diversidade.
“Queremos contar uma histó-
ria completa. O problema é ter
Hattie McDaniel só apertando
um corselete”, analisou Fitzge-
rald, referindo-se à atriz negra
de ...E o Vento Levou , alvo de po-
lêmica recente por sua temáti-
ca revisionista da Guerra Civil
Americana. “Aquela pessoa
tem uma vida e é afetada pelo
que acontece a sua volta. Nós
vamos para a casa de Paul Drake
e mostramos como enfrenta o
racismo no dia a dia.”
Chalk ficou apreensivo em
ver brancos tratando de racis-
mo, mas se tranquilizou depois
de conversar com Van Patten.
O ator de 33 anos, que presen-
ciou marchas da Ku Klux Klan
na cidade onde cresceu, sabe
que o mundo mudou, mas não o
suficiente. “Somos um país fun-
dado no racismo, e é difícil dar
fim a isso”, concluiu. Ele respira
aliviado porque a série está em
sintonia com o zeitgeist. “Não
nos esquivamos de nenhuma
das verdades horríveis. Então,
se vamos lançar um thriller noir
que envolve a polícia, melhor
que fale de abuso de autorida-
de. Por sorte, nós falamos.”

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

PERRY MASON


VOLTA À


Luiz Carlos Merten


Roman Polanski ganhou os
maiores prêmios do mundo. Os-
car, Palma de Ouro, Ursos de
Ouro e Prata, Globo de Ouro,
César, Bafta. Fez filmes que per-
tencem à história – Armadilha


do Destino , Repulsa ao Sexo , O Be-
bê de Rosemary , O Pianista , J’Ac-
cuse. Mas sua obra-prima é Chi-
natown , de 1975. Passa neste do-

mingo, às 22h, no Telecine Cult.
Tornou-se difícil elogiar qual-
quer filme de Polanski, mesmo
os “clássicos”, face às acusa-
ções de estupro, abuso contra
ele. Como se não bastassem as
antigas, surgiram novas. De que
maneira o comportamento do
homem compromete a obra do
artista? Pode anulá-la?
Todas essas questões são le-
gítimas, mas já estavam no ar
desde 1970 e não impediram
que Chinatown fosse aclamado
na época. Concorreu a 11 Os-
cars, ganhou só o de roteiro ori-
ginal (Robert Towne). Contra-

tado para localizar um ho-
mem que desapareceu, o de-
tetive J.J. Gittes/Jack Nichol-
son se envolve com a sexy
Evelyn Mulwray/Faye Du-
naway. Descobre a especula-
ção imobiliária em Los Ange-
les. Descobre principalmen-
te a figura sinistra de Noah
Cross, interpretado pelo
grande diretor John Huston.
É um monstro incestuoso.
Por meio do trio, Polanski
reinterpreta a tradição noir e
aborda seu tema por excelên-
cia – a mulher perdida, reen-
contrada, perdida de novo.

Sem intervalo


Tenda dos
Milagres
(Brasil, 1977.) Dir. e roteiro de Nelson Pereira
dos Santos, diálogos de Jorge Amado com
Jards Macalé, Anecy Rocha, Hugo Carvana.

Luiz Carlos Merten

A primeira de duas adaptações de
Jorge Amado por Nelson Pereira – a
outra, Jubiabá , de 1986. Venceu co-
mo melhor filme, diretor, atriz coad-
juvante (Sônia Dias) e trilha (Jards
Macalé) em Brasília. Norte-america-
no vem à Bahia investigar a obra de
Pedro Archanjo, pioneiro da ciência
social brasileira e estudioso da cultu-
ra negra e da miscigenação. Nelson
foi grande conhecedor da literatura
brasileira, e do Brasil.
C. BRASIL, 1H05. COL., 148 MIN.

D


ona Yeda chegara aos 83
anos viúva. A situação finan-
ceira era confortável. O ma-
rido a deixara bem. Os filhos a visita-
vam regularmente e, apesar da em-
pregada durante o dia, ela insistia
em morar sozinha. “Já cuidei de mui-
ta gente, agora eu quero paz”, repe-
tia a senhora diante da insistência
familiar por uma acompanhante no-
turna. Sua companheira de velhice
era uma cadelinha maltês que a se-
guia como uma sombra. Dolly tinha
chegado semanas antes do faleci-
mento do dr. Samuel. A empatia en-
tre as duas tinha sido imediata.
Mulher de hábitos pétreos, a se-
nhora acostumara-se a fazer sem-
pre do jeito dela. “Personalidade de-
cidida”, dizia sua simpática funcio-
nária da casa – “Teimosa como uma
mula”, garantia o filho do meio.
Exemplo? Havia muitos remédios
diários para os males da idade. Eram
sete pela manhã e quatro antes de
dormir. Ela colocara todos em uma

caixa de papelão na cozinha e, duas ve-
zes ao dia, ficava retirando cada medi-
camento da sua embalagem para to-
mar. A primogênita comprou um sepa-
rador. Dona Yeda elogiou como era
prática a invenção: bastava abrir a tam-
pinha e colocar todos na mão! Não era
necessário pegar os óculos e examinar
cada caixa. “Que bom, minha filha”,
ela disse beijando a testa de Ana. Sim,
era bom e era diferente; e a mudança
de rotina era o grão de areia que a ostra
de Yeda jamais transformaria em péro-
la. Quando a jovem virava as costas, ela
retomava o hábito de separar uma a
uma cada drágea, relendo as receitas
de uma imensa junta médica, que ia do
cardiologista, passava pelo reumatolo-
gista, até chegar ao geriatra. O proces-
so era demorado e demandava uma or-
dem de memória e organização que já
tinham desaparecido sob os belos cabe-
los brancos daquela senhora.
Remédios e idade são coisas triviais.
Havia algo original. Nem sempre firme
com as mãos, olhos se adaptando às

lentes multifocais que o oftalmologis-
ta prescrevera, a matriarca deixava ro-
lar pelo balcão da cozinha algum com-
primido, quando não derrubava toda a
embalagem ao chão. Mal caía algo colo-
rido ou branco do céu, a cadela, na ter-
ra, devorava com rapidez e gula. Sim,
aos pés de dona Yeda, Dolly ficava aten-
ta, aguardando. Era o desespero dos
filhos e a alegria do animal.
O veterinário tinha profetizado o
fim precoce de Dolly ao constatar o
fato por exames. Os filhos compravam
novos e belíssimos estojos separado-
res de remédio. Ignorando-os, as duas,

Yeda e Dolly, firmes e constantes, locu-
pletavam-se de delícias químicas. Ain-
da que a veneranda senhora reclamas-
se da voracidade da pequena fêmea
com a farmacopeia, era, reconheça-se,
uma espécie de comunhão. Elas dor-
miam juntas, comiam juntas, assis-
tiam horas intermináveis de TV lado a
lado e, claro, tomavam juntas seus re-
médios. Conheciam-se pelo olhar.

Amavam-se. Na saúde e nos remédios,
na alegria e no antidepressivo: ambas
sabiam que o casamento era pleno.
Havia desconfiança de que, no fundo,
Dona Yeda fosse como o rei Sardana-
palo da lenda pintada por Delacroix:
queria partir levando tudo o que ama-
va em vida. Se o mundo prescrevia um
amplo leque químico de produtos
contra os desgastes do tempo, ambas
seriam salvas ou envenenadas lado a
lado. “Quanto tempo terei ainda de vi-
da?”, perguntava a senhora para a cade-
la. O olhar do bichinho parecia dizer:
“Pouco... como eu”. A brevidade da
existência consolava ambas.
Dolly continuava firme e bem abaste-
cida com aspirina cardíaca e remédio
contra o lúpus. O comprimido mais
apreciado era a ampla e gelatinosa cáp-
sula de ômega três, a panaceia que ga-
rantia vida eterna e com saúde. Ela
mastigava o metotrexato da artrite reu-
matoide da dona com um pouco mais
de resignação. Talvez já estivesse de-
senvolvendo um senso gourmet para
os fármacos. Porém, se fosse possível
oferecer um menu ao animalzinho so-
bre suas preferências de mezinhas, ela
latiria feliz com os xaropes para tosse.
Eram a crème de la crème das bebera-

gens. Bastava a mão trêmula de Ye-
da pegar da colher e a cadelinha lam-
bia os lábios feliz. Algo pingava sem-
pre e, em mostras da eficácia do re-
médio contra reumatismo, ela salta-
va no ar para alcançar a chuva.
Aos 90 anos bem vividos e felizes,
Dona Yeda cerrou seus olhos diante
da família chorosa. Dolly foi levada
ao velório e ficou ao lado do caixão,
talvez esperando que, uma última
vez, algo caísse para ela poder saciar
sua fome interminável de progres-
sos farmacêuticos. Debalde!
Levada para a casa da filha Ana,
sem remédios, o animal definhou ra-
pidamente. O veterinário não conse-
guia identificar o mal. Tristeza? Tal-
vez. Vinte e sete dias após o caixão
da dona ter sido baixado ao solo, os
filhos da matriarca entregavam o
corpo de Dolly ao cemitério de ani-
mais. A falta de remédios e a melan-
colia combinaram-se de forma fa-
tal. A mais velha lembrou de uma
frase latina que vira tatuada em uma
foto de Angelina Jolie: quod me nu-
trit, me destruit. Sim: o que me nu-
tre me destrói, o que desejo me des-
gasta, o que mais quero me mata.
Boa semana para todos.

MERRICK MORTON/EFE

‘Chinatown’,


clássico de


Polanski,


passa hoje


DESTAQUE
EMBRAFILME

Filmes na TV


MERRICK MORTON/HBO

Aventura. História dos anos 30 traz questões atuais

Matthew Rhys. Como Perry Mason: ‘Progredimos pouco em 90 anos. É nossa responsabilidade mostrar que é preciso mudar’

Se fosse possível oferecer um
menu a Dolly, ela latiria feliz
com os xaropes para tosse

Aquilo que me nutre


Caderno 2


Série mostra a origem do advogado


em mundo marcado por corrupção,


abuso de poder policial e racismo


TELA

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