O Estado de São Paulo (2020-06-21)

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H6 Especial DOMINGO, 21 DEJUNHODE 2020 OESTADODES.PAULO


Giovanna Wolf


Pertencentes a um dos grupos
de risco da covid-19, os idosos
estão ainda mais submetidos
ao isolamento por causa da
pandemia. Muitos deles encon-
travam motivação em ativida-
des em grupo como ginástica,
universidade para terceira ida-
de e atividades culturais, que
hoje estão suspensas. Como li-
dar então com esse cenário e
encontrar ânimo para levantar


todos os dias?
Para Alexandre Kalache, pre-
sidente do Centro Internacio-
nal de Longevidade no Brasil,
que dirigiu por 14 anos o Pro-
grama Global de Envelheci-
mento e Saúde da Organização
Mundial da Saúde (OMS), não
estamos diante de um proble-
ma exatamente novo: a soli-
dão, diz ele, já era enfrentada
por 4 milhões de brasileiros an-
tes da pandemia.
Em entrevista ao Estadão ,
Kalache comenta sobre a resi-
liência que os idosos costu-
mam ter durante crises como
a que estamos vivendo e desta-
ca a importância da sociabilida-
de para o envelhecimento sau-
dável. “Mais importante ainda
é ter um propósito, para não

sentir que a vida está vazia”,
afirma. Um dos lugares em
que idosos podem encontrar
essa motivação é no trabalho
voluntário, sugere.
A seguir, confira os princi-
pais trechos da entrevista.

lQuais são os principais impac-
tos que a pandemia pode causar
nos idosos?
A covid-19 não forjou nossas
mazelas, ela apenas está dei-
xando-as escancaradas. A pan-
demia traz à tona questões
muito antigas. O isolamento
de idosos não é uma questão
apenas deste momento: cerca
de 4 milhões de idosos vivem
sozinhos no Brasil, e são pes-
soas que mesmo antes da pan-
demia estavam habituadas a vi-

verem só. Muitos idosos en-
frentam essa solidão com mui-
ta dificuldade, porque não foi
por opção – são pessoas que,

por exemplo, não tiveram fi-
lhos ou os filhos vivem longe.
Há também a questão do abu-
so e dos maus-tratos ao ido-

sos, cujos registros têm aumen-
tado no disque-denúncia. Mas,
como sempre, em um país
com tantas desigualdades, os

APLICATIVO VIU NÚMERO
DE PARTICIPANTES DE
CORRIDAS VIRTUAIS
CRESCER 300%

Márcia De Chiara


A preparação começou cedo,
por volta das 5h30 daquele do-
mingo, 5 de abril. Fernando Oli-
veira, de 34 anos, acordou sem
demora. Na véspera, já tinha se-
parado a roupa, o energético, a
garrafa de água e os apetrechos
que usaria na corrida. De moto,
gastou cerca de 15 minutos para
ir de casa até o trabalho, ambos
no bairro do Ipiranga. Ao che-
gar, fez exercícios de aqueci-
mento e às 6h40 iniciou, na gara-
gem do prédio da empresa, sua
primeira maratona, no horário
e no dia em que teria participa-
do da largada da Maratona In-
ternacional de São Paulo. Oli-
veira e outros milhares de corre-
dores estavam inscritos na tra-
dicional prova, adiada para no-
vembro por causa da pandemia.
“Foi um baque”, resume ele,
quando ficou sabendo que não
haveria o evento. Fazia quatro
meses que treinava regularmen-
te – apesar de
sua rotina pu-
xada como es-
toquista de
dia e entrega-
dor de pizza à
noite – para
enfrentar o
maior o desa-
fio de um corredor. Para não
perder os treinos e levantar o
ânimo, recorreu a uma prova
virtual: fez o cadastro em um
aplicativo e se inscreveu na cor-
rida de 42 quilômetros.
Com um relógio de GPS, Oli-
veira cronometrou o tempo em
que percorreu a distância. Man-
dou os dados para o aplicativo,
que validou o seu desempenho
e o recompensou com uma me-
dalha. “Foi a medalha mais im-
portante das 26 provas que fiz”,
diz. Ele tatuou a conquista da
primeira maratona na panturri-
lha esquerda e postou fotos da
medalha nas redes sociais.
Oliveira gastou 4 horas, 55 mi-
nutos e 55 segundos para com-
pletar o percurso. Foram 840
voltas na garagem sob o sol in-
tenso. Na plateia, apenas o vigia
da empresa e alguns moradores
do prédio vizinho. Durante a


prova, ouviu música e podcast
para quebrar a monotonia. Ima-
ginou que estava numa prova
de rua e tentou reproduzir os
rituais da maratona. Ao comple-
tar 41 km, por exemplo, tomou
uma dose de cerveja para come-
morar a “quase” missão cumpri-
da, como é tradição. “Isso me
deu motivação para terminar.”
Assim como Oliveira, muitos
corredores estão se inscreven-
do em provas virtuais por causa
da pandemia. E o aumento da
procura foi sentido pelas em-
presas do setor. O aplicativo
brasileiro 99RUN, por exem-
plo, registrou crescimento de
300% no número de participan-
tes de corridas virtuais depois
da covid-19.
“Quando começou a pande-
mia fiquei com muito receio de
qual seria o impacto e esperava
até que fosse negativo, porque
as pessoas não estavam treinan-
do”, conta Daniel Ludwig
Pawel, criador da plataforma
brasileira.
“Mas tivemos
um boom de
inscrições.”
No aplicati-
vo, o número
de corridas vir-
tuais, feitas
em esteiras, es-
cadarias de prédios ou quintais,
aumentou 40%. Até a corrida es-
tacionária, que antes era ape-
nas um exercício de aquecimen-
to, as pessoas hoje estão fazen-
do por até uma hora seguida.

Virtual. Quatro anos atrás,
quando começou a plataforma,
a intenção de Pawel, que tam-
bém é corredor, era criar um
aplicativo que facilitasse a vida
dos atletas que viviam fora dos
grandes centros e não tinham
acesso às provas.
Depois, conseguiu conquis-
tar os que faziam provas de fim
de semana e também queriam
competir durante a semana.
“Com a pandemia e o isolamen-
to, as provas foram canceladas
ou adiadas e muitos que tinham
preconceito passaram a experi-
mentar as provas virtuais.”
Mario Sérgio Andrade Silva,

fundador e diretor
da Run Fun, uma
das primeiras con-
sultorias especiali-
zadas em treina-
mento de corredores
e de ciclistas, confirma
esse quadro. Diz que antes
da pandemia já se fazia tentati-
vas de provas virtuais. Mas pou-
cas pessoas participavam. Mas
o cenário mudou. Ele cita dois
exemplos de provas tradicio-
nais que pela primeira vez, re-
centemente, ganharam versões
virtuais: o Ironman, que realiza
competições de Triathlon, e o
Comrades, a ultramaratona rea-
lizada na África do Sul, um cir-
cuito de até 92 quilômetros.

Ultramaratona. Acostumado a
correr longas distâncias ao ar li-
vre e em condições nem sem-
pre fáceis, o executivo Alexan-
dre Martinez, de 44 anos, viu
sua rotina intensa se resumir a
treinos dentro de casa durante
a quarentena. Quando soube
que provas de ultramaratona es-
tavam sendo adaptadas aos no-
vos tempos, resolveu participar
e se inscreveu logo na corrida
de 150 km.
No novo formato, a corrida é
feita ao longo de dez dias, e per-
curso e tempo têm de ser com-
provados pelo atleta e valida-
dos diariamente pela organiza-
ção – o corredor é desclassifica-
do se quebrar a rotina.
“A divisão da corrida em vá-
rios dias dá a impressão de que é
mais fácil do que se fosse de
uma só vez, mas não é verdade.
Você tem a sua rotina de casa e
trabalho, que não parou, e seu
corpo reage de forma diferente
ao longo dos dias. É tão desafia-
dor quanto”, afirma. “Muito dis-
so tem a ver com motivação. Te-
nho três filhos, que estão acos-
tumados a me ver fazendo gran-
des corridas e desafios, mas nes-
te momento quis mostrar para
eles que é possível, mesmo com
um monte de restrição, fazer
coisas grandes.”
Sócio-fundador da Foco Radi-
cal, Christian Schmidt explica
que os organizadores de provas
presenciais estão migrando pa-

ra corridas virtuais por meio de
parcerias com plataformas exis-
tentes ou por conta própria. “O
modelo da corrida virtual é o
que se apresenta como possível
neste momento, mas é um mer-
cado novo”, pondera.

Iniciativa própria. Enquanto
os organizadores de provas se
articulam para virar a chave do
mundo real para o virtual, aman-
tes de corridas fazem por inicia-
tiva própria suas provas a dis-
tância. Informalmente, eles
usam redes sociais e dispositi-
vos de videoconferência para re-
produzir o que até pouco tem-
po atrás acontecia nas ruas.
Atleta há 26 anos, Marta
Bréscia, de 61, acumula nada
menos do que 14 maratonas
no currículo. Assim que o isola-
mento social começou, ela não
queria nem poderia interrom-
per sua rotina de treinos. As-
mática, Marta vê nas corridas
uma forma de preservar a saú-
de. Foi assim que decidiu co-
meçar a correr dentro do apar-
tamento mesmo, em Perdizes,
zona oeste de São Paulo.
Uma experiência que ela de-
cidiu usar para organizar uma
corrida virtual com o grupo
que costuma treinar no Par-
que da Água Branca, na mesma
região. “Achei que o meu gru-
po estava meio paradinho.”
A corrida ocorreu no fim de
maio e seguiu todo o ritual de

uma prova física. Com a adesão
de mais de uma dúzia de compa-
nheiros de treinos, ela criou um
grupo de WhatsApp dos partici-
pantes. As postagens começa-
ram na véspera, com as fotos do
uniforme pronto. No dia, pon-
tualmente às 8 horas, foi dada a
largada, com o áudio da conta-
gem regressiva de uma prova de
rua, que teve até trilha sonora
do filme Carruagens de Fogo.
“Foi maluco aquilo, veio
uma emoção e comecei a cho-
rar”, lembra a professora de
educação física Maria Alice
Zimmermann, de 51 anos, uma
das participantes. Cada um
correu no local que tinha à dis-
posição: dentro de casa, na ga-
ragem, na quadra do prédio.
Na opinião da professora da
Faculdade de Educação da Uni-
versidade de São Paulo (USP) e
psicóloga do esporte Katia Ru-
bio, ao realizar provas virtuais
os corredores tentam buscar, a
fórceps, a situação de normali-
dade perdida nos últimos me-
ses. A especialista destaca que
muito mais do que praticar o es-
porte, a intenção é manter os ri-
tos de uma atividade essencial-
mente social. E a medalha, que é
o reconhecimento, atesta isso.
“A pandemia tornou mais visí-
vel a sociabilidade promovida
pela corrida. Se havia dúvidas
de que essa atividade é de grupo,
agora não há mais.” / COLABOROU
ANA CAROLINA SACOMAN

ENTREVISTA


Maratona na garagem, competição com as amigas via


videoconferência: corredores se motivam com treinos


RUA VIRTUAL


‘IDOSOS PRECISAM


TER UM PROPÓSITO’


ARQUIVO PESSOAL

PROVAS DE CORRIDA


GANHAM ADAPTAÇÕES


Vidas em Quarentena*


Eles sofrem mais com o


distanciamento; para


especialista, dica é olhar


envelhecimento como


‘tremenda conquista’


Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil


Resiliência. Eles olham para trás, para o que superaram, e não se desesperam, diz Kalache
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