O Estado de São Paulo (2020-06-21)

(Antfer) #1

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H8 Especial DOMINGO, 21 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Aliás,


Antonio Quintella ]
Lilia Moritz Schwarcz ]


Durante muito tempo a “bran-
quitude” – o privilégio que a so-
ciedade colonial e europeia ad-
quiriu e conservou no Brasil – rei-
nou como se fosse verdade e rea-
lidade “natural”: inquestionável
e, por isso, invisível. Foi assim
que nos acostumamos a achar
“normal” não encontrar negros
e negras nos bancos das nossas
melhores escolas, nas redações
dos jornais, nos ambientes cor-
porativos, na direção de institui-
ções e até mesmo nas áreas de
lazer dos bairros considerados
mais nobres. Também defende-
mos uma suposta “meritocra-
cia” sem atentarmos para os cor-
tes de classe e raça que esse con-
ceito traz; como falar em “méri-
to”, de uma forma geral, quando
o ponto de largada é profunda-
mente desigual? Nos habitua-
mos, ainda, a chamar de “univer-
sal”, e sem pejas, uma história
que é só europeia, e a uma arte
que é eminentemente masculi-
na e ocidental. Se a “nossa” arte e
a “nossa” história carecem de ad-
jetivação, já as demais precisam
ser qualificadas como se fossem
derivações subordinadas: arte
africana, arte indígena, história
africana, história indígena.
Tal tipo de procedimento, le-
vado a cabo durante tantos sécu-
los, e de forma impune, acabou
gerando uma grande cegueira
cultural e processos de invisibili-
dade social muito perversos pois
nem sequer nomeados. E, em ge-
ral, onde reina o silêncio, sobra
contradição. “Raça” só existe
uma – a humana –, e aí estão os
biólogos para comprovar. Mas
desde sempre a humanidade
criou outro conceito, “raça so-
cial”, e é dele que estamos aqui
tratando. Qual seja, das manei-
ras como as sociedades “driblam
a natureza”, e constroem marca-
dores sociais de diferença como
raça, gênero, sexo, região e gera-
ção, e, assim, criam novas realida-
des ensejadas historicamente e


ao longo do tempo.
O tema da raça entrou final-
mente na agenda da nossa con-
temporaneidade. No entanto, se
os brasileiros podem até assu-
mir a existência do racismo no
país, em geral, negam que sejam,
eles próprios, racistas, e costu-
mam jogar o preconceito no “ou-
tro”: na história, no colega, no pa-
rente, no vizinho. No entanto, o
racismo existente no país toma
todos; sem exceção. Ele está pre-
sente no ambiente escolar, com
altos níveis de repetência entre
os alunos negros; na área da saú-
de e basta notar como as pessoas
negras são as maiores vítimas da
covid-19; na área do trabalho
com poucos participando de car-
gos de direção; na área da cultura
e da moda, ainda espaços emi-
nentemente brancos. E não
adianta culpar apenas o passado,
e maldizer o legado pesado da es-
cravidão. Nos dias de hoje temos
reproduzido dados que indicam
a existência de um racismo estru-
tural e institucional, presente
nas áreas mais insuspeitas e, tam-
bém, naquelas muito suspeitas.
É por isso que a questão dei-
xou de ser apenas moral; não
adianta mais dizer que não so-
mos racistas, é passada a hora de
praticarmos atos antirracistas.
Como foram os colonizadores

brancos que implementaram o
tráfico negreiro e criaram teo-
rias que procuraram naturalizar
a diferença – como o darwinis-
mo racial, que determinava que
as raças eram ontologicamente
diferentes, ou o racismo científi-
co, o qual colocava os brancos no
alto de uma pirâmide social e os
negros na sua base – é hora de
atuarmos como aliados nessa lu-
ta que é de todos os brasileiros.
Na luta antirracista.
Não teremos uma democracia
por aqui, como bem demonstra
Sílvio Almeida, enquanto permi-
tirmos que o racismo vigore e de
forma tão perversa. Mas, tam-
bém, jamais teremos no Brasil
uma economia tão pujante e pro-
dutiva, quanto poderíamos ter e
apresentar (e precisamos dela
para vencer a extrema pobreza e
desigualdade que nos assolam),
se o racismo permanecer entre
nós. A manutenção do status
quo, se não o seu agravamento,
não é sustentável. Ademais, essa
preocupante trajetória pode co-
locar em risco a nossa precária
estabilidade institucional.
Muito já foi dito sobre fazer
crescer o bolo ou, ainda, que a
subida da maré levanta todos os
barcos, e que esses processos en-
riquecem as nações. Entretanto,
as evidências das últimas déca-

das demonstram que ao longo
desse caminho não somos todos
igualmente beneficiados. Aliás,
muitos sequer são beneficiados
de todo. Na ausência de políticas
públicas compensatórias e bem
coordenadas, os benefícios vão
para uns e não para outros, e, em
geral, os maiores benefícios são
capturados por muito poucos.
Infelizmente, a pandemia pro-
vocada pela disseminação do co-
vid-19 fez o bolo decrescer e a ma-
ré baixar repentina e significati-
vamente. Nesse ambiente, que
possivelmente nos fará conviver
com altas taxas de desemprego e
baixos níveis de ocupação e ativi-
dade por muito tempo, as desi-
gualdades tendem a se tornar ain-
da mais expressivas e as vanta-
gens percebidas por aqueles que
detém o capital (seja ele intelec-
tual e/ou financeiro) mais pro-
nunciadas. Essas disparidades
não podem ser moralmente tole-
ráveis e, além do mais, compro-
meterão o desempenho da pró-
pria economia brasileira enquan-
to persistirem.
Diante dos inúmeros desafios
introduzidos pela pandemia, em
especial os de ordem econômi-
co-social, é necessário resgatar a
discussão em torno das opções
disponíveis para combater a po-
breza no Brasil. Ricardo Paes de

Barros (et. al.) propunha, já em
2000 ( Desigualdade e Pobreza no
Brasil: Retrato de uma Estabilida-
de Inaceitável , Revista Brasileira
de Ciências Sociais), que o foco
no crescimento econômico co-
mo estratégia central no comba-
te à pobreza deveria ser relativi-
zado. O estudo àquela época
apontava para (a despeito dos ci-
clos, transformações e dos mais
variados experimentos econômi-
cos) uma relativa estabilidade
na dimensão da pobreza no país,
e propunha que políticas que fo-
cassem na diminuição da desi-
gualdade precisariam ser combi-
nadas com aquelas que estimu-
lassem o crescimento econômi-
co. Não seriam essas políticas
mutuamente excludentes, mas
complementares. O diagnóstico
feito a partir daquele minucioso
estudo demonstrava a existên-
cia de uma estreita relação entre
a má distribuição dos recursos e
a pobreza, situação que permane-
ce até hoje. O estudo sentencia-
va então que “o Brasil não é um
país pobre, mas um país com
muitos po-
bres”.
Devemos
adicionar uma
nova dimen-
são a essa dis-
cussão. O te-
ma do racismo
tem claro im-
pacto no am-
biente do tra-
balho, como
vem mostran-
do Cida Bento,
entre outros.
As práticas e
atitudes racis-
tas alijam uma parcela considerá-
vel da nossa população, tolhen-
do-a de oportunidades indispen-
sáveis e fundamentais na área da
educação e ocupacional, por
exemplo, impedindo-a de exer-
cer as mais diversas atividades
profissionais na plenitude do
seu potencial criativo e produti-
vo. A eliminação do racismo é
ainda mais relevante em uma so-
ciedade tão desigual quanto a
brasileira, em que, segundo da-
dos e termos do IBGE, negros e
pardos correspondem a quase
56% da população.
O Brasil já não mais se benefi-
cia de um bônus demográfico, ao
contrário. Na medida em que
nossa população envelhece, nos-
so crescimento econômico de-
pende, sobretudo, de um aumen-
to significativo da produtivida-
de. Vários estudos recentes têm
sido feitos a respeito da relativa
perda de dinamismo da econo-
mia brasileira nos últimos anos,
apontando que isso possa estar
associado à baixa produtividade
do trabalho. O Professor José
Pastore em artigo no Estadão
(de 27 de fevereiro de 2020) suge-
ria que a “produtividade não re-
sulta desta ou daquela providên-
cia, mas sim de ações orquestra-
das em vários campos durante
muitas décadas”, notadamente

no campo da educação. Sem
dúvida, o aumento da produtivi-
dade também passa pela desbu-
rocratização, pela abertura da
economia, pelos esforços de pri-
vatização, pela racionalização da
carga tributária e maior eficiên-
cia do Estado.
Mas esses esforços terão si-
do insuficientes se tivermos
deixado para trás metade dos
brasileiros.
Se o Brasil pretende crescer de
forma sustentável, precisa resga-
tar uma histórica dívida social.
Devemos urgentemente ofere-
cer as condições necessárias pa-
ra mitigar a desigualdade, em es-
pecial a de oportunidades. É ne-
cessária uma profunda reflexão
sobre a nossa sociedade, reco-
nhecendo a riqueza da sua diver-
sidade e estabelecendo uma
agenda de inclusão que desper-
te, motive, engaje e permita que
a população negra ocupe, com
destaque e sem constrangimen-
tos, espaço nos meios acadêmi-
cos, culturais e empresariais.
A defesa da pauta antirracista
implica, por-
tanto, uma
agenda de
ações. Mas sua
defesa não le-
va em conta
apenas a “cul-
pa” ou o mero
ressarcimen-
to; o qual,
aliás, nunca foi
realizado. Ela
pretende mos-
trar que sere-
mos muito me-
lhores se for-
mos mais di-
versos. Mais é sempre mais,
quando se pretende colocar em
relação potencialidades, expe-
riências, percursos e histórias
tão distintas como comuns.
Portanto, o antirracismo,
além de precisar fazer parte de
uma agenda republicana e de-
mocrática brasileira, precisa
ser incorporado ao pensamen-
to e à formulação da política
econômica. O racismo não é
apenas moralmente degradan-
te e inaceitável, ele também é
um impedimento ao pleno e
sustentável desenvolvimento
econômico. Não, o problema
não é só dos negros, é da socie-
dade como um todo. E da cons-
cientização e efetiva mobiliza-
ção das nossas lideranças de-
pendem as soluções.

]
ANTONIO QUINTELLA É EMPRESÁRIO,
ECONOMISTA PELA PUC-RJ E MBA
PELA LONDON BUSINESS SCHOOL/
UNIVERSIDADE DE LONDRES

]
LILIA M. SCHWARCZ É HISTORIADORA
E ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA
USP E EM PRINCETON, CURADORA
ADJUNTA PARA HISTÓRIAS DO MASP
E AUTORA DE VÁRIOS LIVROS, SENDO
O MAIS RECENTE ‘SOBRE O
AUTORITARISMO BRASILEIRO’ (2019)

PROTESTOS REVELAM PERVERSA


INVISIBILIDADE SOCIAL


RACISMO


História*


TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Os brasileiros podem até assumir a existência do racismo no país, em geral, mas


negam que sejam, eles próprios, racistas, jogando o preconceito no “outro”


TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Protesto. Ato pró-democracia e contra Bolsonaro realizado no Largo da Batata no dia 7

Direitos. Manifestação antirracista realizada no dia 14 na avenida Paulista, que reuniu grupos organizados condenando a violência policial praticada contra a população negra do País


ONDE REINA O SILÊNCIO,
SOBRA CONTRADIÇÃO.
“RAÇA” SÓ EXISTE UMA:
A HUMANA

SE O BRASIL PRETENDE
CRESCER , PRECISA
RESGATAR DÍVIDA
HISTÓRICA COM NEGROS
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