O Estado de São Paulo (2020-06-22)

(Antfer) #1

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A10 Metrópole SEGUNDA-FEIRA, 22 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Boa parte dos brasileiros que passaram


a comer mais em casa modificou cardápio


Isolamento provoca efeito


oposto em alimentação de casal


Durante a quarentena, que já
dura mais de três meses em
boa parte do País, cerca de
60% dos brasileiros, segundo
as pesquisas, conseguiram
manter o peso e 17% até ema-
greceram, ao contrário do que
se poderia imaginar inicial-
mente. Mas, entre os mais po-
bres, isso não foi uma decisão
voluntária, mas uma restrição
compulsória.
Muitos dos que perderam o
emprego, tiveram o trabalho
suspenso ou a jornada reduzi-
da estão comendo menos, por-
que simplesmente não têm di-
nheiro para se alimentar bem.
Além de terem ficado sem as
refeições no trabalho, em geral
subsidiadas pelo empregador

e mais balanceadas do ponto
de vista nutricional, o proble-
ma se agravou com a falta da
merenda escolar das crianças.
A dona de casa Claudia Fáti-
ma Nassar Reis, que mora no
bairro do Morumbi, em São
Paulo, conta que Sílvia, sua em-
pregada, teve de recorrer a
marmitas distribuídas gratui-
tamente por organizações so-
ciais na comunidade de Parai-
sópolis, mesmo recebendo o
salário integral, apesar de sua
jornada de trabalho ter sido re-
duzida na quarentena. Foi a
forma que ela encontrou para
alimentar a si mesma e aos fi-
lhos, que Sílvia cria sozinha.
“Muitas pessoas estão pas-
sando necessidade mesmo e ti-
veram que diminuir o consu-
mo alimentar”, diz a nutricio-
nista Marcia Nacif Pinheiro.
“Antes, com a merenda esco-
lar, a situação era bem melhor.
Agora, nem isso eles têm.”

Conhecimento menor. Nas fai-
xas de menor renda, segundo
ela, há também o grupo dos que
conseguiram manter a capaci-
dade de consumo de alimen-
tos, mas têm um conhecimen-
to sobre alimentação muito me-
nor do que a classe média e mé-
dia alta. Muitas vezes, na hora
de ir ao supermercado, acabam
escolhendo produtos com
mais carboidrato, gordura e
açúcar, que, apesar de serem sa-
borosos, podem prejudicar a
saúde quando consumidos em
excesso. / J.F.

José Fucs


A pandemia do coronavírus
não mudou apenas o jeito de
a gente trabalhar e se relacio-
nar. A nossa forma de se ali-
mentar também sofreu uma
transformação radical nos úl-
timos meses.

Com restaurantes fechados
ao público, quase todo mundo
passou a fazer as refeições em
casa. Até quem recorreu ao deli-
very, abrindo brechas para va-
riações no cardápio, tornou-se
mais dependente da comida de
casa. Mesmo agora, com a flexi-
bilização da quarentena e o re-
torno gradual ao trabalho, nada
indica que a situação vá mudar
tão cedo neste quesito.
Em muitas cidades, os restau-
rantes ainda deverão demorar
algumas semanas para reabrir –
e, quando o fizerem, provavel-
mente o esquema será bem dife-
rente, com maior distância en-
tre as mesas e outras medidas
de proteção aos clientes. É pro-
vável também que boa parte da
clientela potencial, ainda teme-
rosa do contágio, continue a co-
mer mais em casa, fazendo pedi-
dos ocasionais pelo delivery. O
melhor, então, é se acostumar
ao “novo normal”, cuja duração
é difícil prever no momento, e
tirar o melhor proveito disso.


Ansiedade. A questão é que
nem sempre comer em casa é
sinônimo de uma alimentação
de melhor qualidade e mais sau-
dável. Muitas vezes, estar em ca-


sa acaba sendo uma espécie de
passaporte para todos os tipos
de excessos.
“As pessoas estão há muito
tempo dentro de casa e muitas
vezes acabam descontando a an-
siedade na alimentação”, diz
Marcia Nacif Pinheiro, profes-
sora do curso de Nutrição da
Universidade Presbiteriana
Mackenzie, em São Paulo.
“Quando a gente está em casa
e há muitos alimentos disponí-
veis, fica fácil ir até a geladeira,
até o armário, e beliscar o tem-
po todo. No trabalho, a gente
tem horários específicos para
se alimentar, tem a hora do al-
moço, às vezes um intervalo pa-
ra um café, e consegue manter
uma rotina mais rigorosa.”
Ainda não há pesquisas apro-
fundadas e com rigor metodoló-
gico sobre a alimentação na pan-
demia. Mas um levantamento
realizado pelo Ministério da Saú-
de no fim de maio aponta que
quatro em cada dez brasileiros
alteraram os hábitos de alimen-
tação, para o bem ou para o mal.

Vontade de comer. A pesquisa,
feita por telefone com mais de 2
mil pessoas de todo o País, in-
cluía uma única pergunta para
apurar se o entrevistado passou
a comer mais ou menos.
Não dá para separar, portan-
to, quantos estão comendo me-
lhor e quantos, pior. De qual-
quer forma, o levantamento tra-
duz em números o que já se po-
dia deduzir a olho nu: quase me-
tade da população afirma ter

mudado os hábitos alimentares
durante o confinamento.
Outro estudo, realizado por
um grupo de pesquisadores das
áreas de endocrinologia, patolo-
gia e psicologia, reforça os da-
dos apurados pelo ministério e

vai além. Segundo a pesquisa,
que ouviu 1.470 pessoas por
meio de um questionário onli-
ne, um em cada dois entrevista-
dos sentiram mais vontade de
comer, mesmo quando não esta-
vam com fome, e 23% ganharam
peso. Pelo levantamento, o ga-
nho médio de peso foi de 2,6 kg.
O intervalo oscilou entre um
mínimo de R$ 1,1 kg e um máxi-
mo de 12 kg no período.
Um mergulho nas buscas do
Google permite entender me-
lhor por que tanta gente engor-
dou na pandemia. O Google
não divulga números, mas in-
forma que as receitas mais bus-
cadas no Brasil desde 15 de mar-
ço, foram, pela ordem, as de
panqueca, brownie, bolo, pu-
dim e pão, todas com altos índi-
ces de calorias.

Entretenimento. Por meio do
Google Trends, é possível obter
dados mais detalhados sobre as
buscas de receitas. Entre 15 pra-
tos selecionados pela reporta-
gem, as receitas com maior cres-
cimento na quarentena (de 20
de março, quando foi decretado
o estado de transmissão comu-
nitária do vírus, a 6 de junho),
em relação ao período pré-pan-
demia (de 1.º de janeiro a 19 de

março) foram as de brownie,
com alta de 234,2%; de esfiha,
com 232,8%; de pão, com 143,1%,
de empadão, com 122,3%, e de
coxinha, com 121,3% (mais infor-
mações nesta pág.).
Mesmo quem sempre se preo-
cupou com uma refeição mais
equilibrada passou a comer
mais, bem mais do que antes, e a
consumir alimentos de pior
qualidade nutricional. Não só
porque, além da televisão, uma
das poucas atividades que resta-
ram foi comer. Cozinhar sozi-
nho ou com a família tornou-se
uma forma de entretenimento.
“Uma coisa que a gente tem
percebido é que as pessoas não
têm ido tanto ao supermercado
e têm feito compras online. Por
isso, compram alimentos que
duram mais, com prazo de vali-
dade maior, e os consomem de
forma exagerada”, afirma Már-
cia Pinheiro. “Muitas vezes, es-
ses alimentos são mais indus-
trializados e costumam ter uma
quantidade maior de gordura,
de açúcar e de sódio.”
Segundo ela, o preço pelos ex-
cessos será cobrado logo mais,
tanto pela balança quanto pelo
aumento do risco de o consumi-
dor desenvolver ou aprofundar
distúrbios cardiovasculares,

diabetes e outras doenças. Ain-
da mais se levarmos em conta
que, com as academias e os clu-
bes ainda fechados em quase to-
do o País, quem fazia exercícios
regularmente acabou, em al-
guns casos, deixando o sedenta-
rismo tomar conta.
“Muitas pessoas não estão fa-
zendo nenhum tipo de exercí-
cio e comem só bolo, chocolate
e salgadinho. Aí, não tem jeito,
engorda mesmo”, diz.

Meio-termo. Surpreendente-
mente, ao contrário do que se
poderia imaginar no início da
pandemia, um número conside-
rável de brasileiros tem conse-
guido fazer refeições mais ba-
lanceadas, comendo mais vege-
tais, legumes e frutas, e está até
fazendo mais exercícios, para
compensar eventuais abusos
na quantidade e para se prote-
ger dos efeitos da doença em ca-
so de contágio. De acordo com
um estudo da FAO (agência da
ONU para agricultura e alimen-
tação), a obesidade é um dos
principais agravantes dos ma-
les causados pelo coronavírus.
“A gente tem escutado rela-
tos de alguns pacientes que mu-
daram sua alimentação para me-
lhor, porque passaram a cozi-
nhar em casa, com a família, e a
ter mais tempo para fazer as re-
feições”, afirma a nutricionista.
“Quando a gente come fora não
tem como controlar a prepara-
ção dos pratos, dosando a quan-
tidade de óleo, de sal e de açú-
car”, complementa.
Agora, em sua avaliação, não
é preciso deixar de consumir gu-
loseimas e comidas saborosas
para ter uma alimentação saudá-
vel. O importante, para ela, é en-
contrar o meio-termo.
“De forma alguma, acredito
que é preciso se privar todos os
dias desses alimentos industria-
lizados, mas eles têm de ser con-
sumidos com moderação”, diz.
“Se, ao longo do dia, você con-
sumir frutas, verduras, arroz
com feijão, um frango com pou-
ca gordura, tudo bem comer
um chocolate ou tomar um co-
po de vinho no final do dia. O
que não pode é achar que, por
estar isolado, dá para comer só
porcaria desde o café da manhã
até o jantar diariamente. Tem
de encontrar um meio-termo,
ter prazer na comida, mas não
prejudicar a sua saúde.” Cabe a
cada um de nós encontrar esse
ponto de equilíbrio.

A dona de casa Claudia Fátima
Nassar Reis e o consultor de
empresas Rogério Vargas
Reis, ambos de 55 anos, que
moram no bairro do Morumbi,
em São Paulo, são exemplos
emblemáticos das mudanças
ocorridas com a alimentação
dos brasileiros, especialmen-
te de classe média e média al-
ta, durante a quarentena.
Para Claudia, a alimentação
mudou para pior. Para Rogé-
rio, para melhor. Com as restri-


ções de convívio social, ela pa-
rou de fazer ginástica duas ve-
zes por semana, com um perso-
nal trainer, na academia do
prédio em que mora. Ele pas-
sou a correr pelas ruas do bair-
ro todos os dias. Resultado:
Claudia afirma que engordou
de três a quatro quilos, mesmo
caminhando cerca de 5 km por
dia, enquanto Rogério conse-
guiu manter o peso, nos três
meses de isolamento social
praticado na cidade.

Ela conta que, antes do confi-
namento, procurava manter
uma alimentação balanceada, à
base de salada, arroz, legumes e
sem carne vermelha durante a
semana. Além dos exercícios,
para manter a linha, diz que cos-
tumava fazer o cabelo e as
unhas no salão e se arrumava
para bater perna por aí e encon-
trar com as amigas.
Com a quarentena, afirma
que até conseguiu manter os
horários das refeições. Mas, co-

mo a sua empregada Sílvia ago-
ra só vai duas vezes vez por se-
mana, em vez de quatro, princi-
palmente para passar roupa e
dar um trato básico no aparta-
mento, o cardápio ficou bem
mais restrito. Ainda assim, ela
afirma que não tem recorrido
muito ao delivery. Embora
compre alguns produtos onli-
ne, diz que vai pessoalmente
ao supermercado para com-
prar frutas, legumes e vegetais
( leia o texto ao lado ).

Autoestima. Claudia conta
que, hoje, passou a comer mui-
to chocolate, bolos e doces fora
de hora, enquanto assiste a
séries na TV para passar o tem-
po. Com o marido e o filho João
Pedro, de 21 anos, em casa o dia
todo, até o café da manhã, que
era uma refeição frugal, passou
a ser tomado à mesa, em famí-
lia, com geleia, mel, pães, doces
e o que mais houver na dispen-
sa para diversificar as opções.
“Como agora a gente quase não
sai e parei de fazer ginástica e de
me arrumar para sair, a autoesti-
ma diminuiu muito”, afirma. “É
um circulo vicioso, que acaba
se refletindo na balança.”
Para Rogério, a quarentena
acabou tendo o efeito oposto ao
de sua mulher. Como comia
muito fora e costumava ter pou-
co tempo para fazer as refei-
ções, muitas vezes almoçava
apenas um sanduíche ou um sal-
gadinho. Comer em casa, para
ele, tornou-se um bônus. Ainda
que esteja comendo mais, sua
alimentação ganhou em qualida-
de. Disciplinado, porém, ele
tem conseguido manter a silhue-
ta com suas corridas diárias.
Como se pode observar pelos
casos de Claudia e Rogério, co-
mer em casa pode ser bom – ou
não. O certo é que, para melhor
ou para pior, a alimentação de
boa parte dos brasileiros mu-
dou na quarentena. / J.F.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l Entre os mais pobres,
emagrecer não foi uma decisão
voluntária, mas uma restrição
compulsória. Muitos dos que
perderam o emprego, tiveram
o trabalho suspenso ou a
jornada reduzida estão comen-
do menos, por falta de dinheiro
para se alimentar bem.

l Moderação

Baixa renda sofre com


falta de merenda e de


refeição no trabalho


● Como evoluíram as buscas de receitas de 15 pratos selecionados no Google durante a pandemia

INTERESSE CALÓRICO

FONTE: GOOGLE TRENDS INFOGRÁFICO/ESTADÃO

Variação das buscas

Brownie
Esfiha
Pão
Empadão
Coxinha
Chocolate
Pastel
Feijoada
Pão de queijo
Pudim
Bolo
To r t a
Panqueca
Receitas
Brigadeiro
Lasanha

234,
232,
143,
122,
121,
106,
103,
97,
89,
85,
76,
76,
72,
68,
63,
60,

¹ Média diária de buscas de 20/3 a 6/6/2020 em relação à de 1º/1 a 19/3/2020; ² Até 6/6/2020; 3 De 1º/1 a 19/3/2020; 4 De 20/3 a 6/6/

Pão
Bolo
Receitas (geral)
Pão de queijo
Pastel
Brigadeiro
Panqueca
To r t a
Empadão
Chocolate
Esfiha
Brownie
Lasanha
Pudim
Coxinha
Feijoada

66,
64,
59,
59,
57,
55,
53,
50,
47,
47,
43,
41,
32,
32,
30,
29,

RECEITA COMO FICOU 4

Média diária de buscas de receita selecionadas

Bolo
Receitas (geral)
Brigadeiro
Pão de queijo
Panqueca
To r t a
Pastel
Pão
Chocolate
Empadão
Lasanha
Pudim
Coxinha
Feijoada
Esfiha
Brownie

36,
35,
34,
31,
31,
28,
27,
27,
23,
21,
20,
17,
13,
13,
13,
12,

RECEITACOMO ERA 3

EM PORCENTAGEM BASE=100 NO DIA DE MAIOR BUSCA DE CADA RECEITA NO ANO2, EM PORCENTAGEM

Dinheiro curto


Isolados, 4


em cada 10


mudaram


alimentação


“As pessoas estão há muito
tempo dentro de casa e
muitas vezes acabam
descontando a ansiedade
na alimentação.”

“Muita gente não está
fazendo nenhum tipo de
exercício e come só bolo,
chocolate e salgadinho.
Aí, não tem jeito, engorda
mesmo.”

“De forma alguma acredito
que é preciso se privar
todos os dias dos alimentos
industrializados, mas eles
têm de ser consumidos com
moderação. É preciso
encontrar um meio-termo,
ter prazer na comida, mas
não prejudicar sua
saúde.”
Marcia Nacif Pinheiro
NUTRICIONISTA

TABA BENEDICTO / ESTADÃO

Reações diversas. Para Claudia, qualidade da alimentação piorou e, para Rogério, melhorou


Na pandemia, faixa mais
vulnerável passou a comer
menos e teve de recorrer
a marmita gratuita para
alimentar a família
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