O Estado de São Paulo (2020-06-22)

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B4 Economia SEGUNDA-FEIRA, 22 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


LUIZ CARLOS


TRABUCO CAPPI


P


assados mais de três meses do
início da epidemia da covid-
no Brasil já está bastante claro
qual será o custo econômico que tere-
mos de enfrentar neste e nos próxi-
mos anos. O déficit primário subirá
para R$ 800 bilhões em razão dos gas-
tos com os programas de combate ao
coronavírus, segundo estimativa da
Secretaria do Tesouro, bem mais do
que o previsto no início de 2020. Co-
mo haverá necessidade de financia-
mento para conter esse déficit, a dívi-
da pública deve aumentar. Analistas
já preveem uma dívida próxima dos
100% do PIB.
Depois do achatamento da curva

da pandemia, é o achatamento da cur-
va dívida/PIB o principal desafio.
Quanto mais achatada estiver essa cur-
va, maior será a capacidade de voltar-
mos a crescer.
Já enfrentamos cenários difíceis e
conseguimos superá-los. Foi assim
com a inflação, a dívida externa e os
juros. Para que o Brasil superasse esses
desafios houve um fator em comum,
que foi a criação de um ambiente favo-
rável à construção do que eu chamo de
estado do consenso possível. Trata-se
de um acordo tácito que leva o gover-
no, o Congresso, os partidos políticos,
os empresários e os trabalhadores a
convergirem em torno de uma agenda

mínima a ser implantada. Acredito que
o País está preparado para um acordo
sobre como pagar essa conta, que che-
gará ao final da pandemia do novo coro-
navírus.
A premissa central desse acordo é
deixar de lado a ideia de que existe um
pacote mágico de medidas. Esse tempo
já passou. Será preciso pactuar os inte-
resses, respeitar as diferenças, identifi-
car as prioridades com bom senso, mo-
bilizar a sociedade sobre o que será pre-
ciso ser feito. As alternativas técnicas
estão sobre a mesa, o caminho será re-

sultado de diálogo político e conver-
gência pragmática das ideias. As dife-
renças e divergências políticas não po-
dem ser maiores que o sentimento de
urgência para a volta do crescimento
econômico, dos investimentos e da
criação de empregos.
A equipe econômica dá um exemplo
concreto na direção do consenso possí-
vel ao restabelecer, no Programa de

Parcerias de Investimentos (PPI), prio-
ridade para a privatização ainda neste
ano da Eletrobrás, Correios, Porto de
Santos e Pré-Sal Petróleo S/A. Trata-se
de uma informação importante, que
pode dar tração à mudança de expecta-
tivas dos investidores – algo que tanto
necessitamos.
Outra boa notícia vem do Congresso
com o avanço do novo marco regulató-
rio para o saneamento. Uma reforma
tributária está amadurecendo, com si-
nalizações positivas do governo fede-
ral, de governadores, de líderes do Con-
gresso e entidades do empresariado. É
tema complexo, que exige negociações
exaustivas, dedicação, paciência e tole-
rância de todas as partes envolvidas.
A reforma administrativa é outro
exemplo de tema que deve ser encara-
do como prioridade. A iniciativa priva-
da respondeu à crise da covid-19 com
medidas gerenciais de aumento da efi-
ciência. É com esse conceito que esta-
mos conseguindo superar a brusca re-
dução da atividade econômica. A refor-
ma administrativa nada mais é que do-
tar o setor público de ferramentas para
aumentar sua eficiência nesse momen-
to de superação da crise.

Temos a nosso favor, para a reto-
mada do crescimento econômico, ju-
ros básicos historicamente baixos.
Além de um estímulo ao consumo,
tão necessário para a indústria e o
comércio, esses juros permitirão que
pessoas e empresas se apoiem em
mais crédito para a realização de pro-
jetos e invistam em novos negócios.
O que desejamos realmente é um
Estado mais eficiente, moderno e
que não perca de vista suas funções
precípuas e compromissos com o
bem-estar da sociedade. O maior
deles, a responsabilidade fiscal,
que é a base necessária para a re-
construção de uma economia me-
lhor e mais justa.
A pandemia está nos dando mui-
tas lições, entre as quais a importân-
cia da cooperação e da corresponsa-
bilidade. Seu maior legado, porém,
é a esperança de que dias melhores
virão.

]
PRESIDENTE DO CONSELHO DE
ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO.
A PARTIR DE AGORA, PASSA A ESCREVER
A CADA DUAS SEMANAS

Luciana Dyniewicz


Não bastasse a recessão e o
freio no comércio internacio-
nal, a pandemia da covid-
ainda elevou as tensões entre
Estados Unidos e China,
criando uma fonte de incerte-
za adicional que pode travar
os investimentos globais nos
próximos meses e respingar
no Brasil.

Uma trégua entre as duas po-
tências havia sido iniciada em
dezembro, quando foi anuncia-
da a primeira fase de um acordo
que poderia colocar fim à guer-
ra comercial, mas o coronavírus
desestabilizou o cenário econô-


mico global e eleitoral america-
no, reacendendo as faíscas en-
tre Washington e Pequim.
Além de uma desaceleração
extra no comércio global – já ha-
verá um primeiro freio brusco
desencadeado pela pandemia –,
o embate entre os países pode-
rá resultar em um crescimento
mais fraco da China nos próxi-
mos anos, o que seria negativo
para o Brasil no longo prazo, di-
zem economistas.
Hoje, o mercado chinês é o
maior importador de produtos
brasileiros, tendo sido respon-
sável pela compra de 39% do to-
tal exportado pelo País de janei-
ro a maio.

“Se os EUA começarem a in-
terferir no que a China está fa-
zendo, a China pode desacele-
rar de forma geral, o que seria
muito ruim para o Brasil. A de-
manda da China depende de
quão rápido ela pode crescer”,
diz o economista-chefe do ban-
co MUFG (antigo Banco de
Tokyo) na Ásia, Cliff Tan.
Para Rubens Barbosa, ex-em-
baixador do Brasil nos EUA, a
situação entre EUA e China é
“muito tensa e vai piorar”. “A
relação ficou mais complicada
por causa das eleições america-
nas, depois veio a crise em
Hong Kong e o coronavírus. Do-
nald Trump está fazendo da

campanha contra a China sua
principal plataforma. Joe Biden
( candidato democrata à presidên-
cia americana ) vai fazer a mes-
ma coisa, já que a China é uma
ameaça à supremacia dos EUA.
Haverá efeito comercial e políti-
co nos próximos anos”, diz.
Na última sexta-feira, a notí-
cia de que o governo chinês ace-
leraria compras de bens agríco-
las dos EUA animou o mercado.
Tudo indica, no entanto, que es-
sa decisão de Pequim não ame-
nizará a tensão, que está longe
do fim. No mesmo dia, o secretá-
rio de segurança americano,
Mike Pompeo, voltou a culpar a
China pela pandemia, com a ale-
gação de que o país escondeu a
real situação do coronavírus.
De acordo com o economista
Guilherme Martins, superinten-
dente de pesquisa econômica
do Itaú Unibanco, a escalada do
tom de Washington no último
mês é “preocupante”. “Acháva-
mos que o acordo entre os paí-
ses era temporário e que as ten-
sões poderiam voltar nos próxi-
mos anos, mas isso aconteceu
antes do esperado.”
Segundo cálculos do Itaú, a
guerra comercial já retirou, en-
tre 2018 e 2019, de 0,5% a 1% do
Produto Interno Bruto (PIB)
global. O embate comercial foi,
portanto, um dos responsáveis
pela desaceleração da econo-
mia mundial de 3,6% em 2018

para 2,9% no ano passado.
Apesar de os países não te-
rem rompido com a fase um do
acordo, a troca de farpas entre
Washington e Pequim preocu-
pa por aumentar a imprevisibili-
dade econômica, segundo Wel-
ber Barral, ex-secretário de Co-
mércio Exterior do Ministério
do Desenvolvimento.
“O comércio exterior cresce
quando se tem previsibilidade.
O risco de uma nova guerra co-
mercial é precificado no valor
do seguro, do frete, da venda. A
tensão entre os países é um fator
de instabilidade super indeseja-
do no momento em que já há re-
dução do comércio”, diz Barral.
Cliff Tan destaca que será di-
fícil observar o impacto da crise
EUA–China nos indicadores
econômicos. Isso porque a rea-
bertura das economias após o
período mais crítico da pande-
mia resultará em aquecimento

da atividade global. “Qualquer
impacto adicional de protecio-
nismo no crescimento global se-
rá difícil de ver nos dados, por-
que as coisas vão começar a pare-
cer melhores. Isso não terá a ver
com o que Trump estará fazen-
do no front protecionista.”

Tarifas. Economistas, porém,
não acreditam que Trump deva
elevar agora as tarifas de impor-
tação dos EUA sobre produtos
chineses, dado que uma medida
dessas teria impacto negativo
nas Bolsas americanas e nos pre-
ços de importados. Essas conse-
quências poderiam prejudicar a
imagem do presidente às véspe-
ras da eleição.
“No pós-eleição, a questão é
outra. A agenda de conflito
com a China é suprapartidária.
Hoje já vemos os democratas
assumindo posturas mais for-
tes em relação ao país”, diz
João Scandiuzzi, estrategista-
chefe do BTG Pactual Wealth
Management.
Se, após a eleição americana,
os países romperem a fase um
do acordo, o impacto na econo-
mia global será grande, pois
uma nova crise surgiria sem que
o mundo tenha se recuperado
da pandemia, afirma Scandiuz-
zi. “Reintroduzir essa incerteza
tem potencial para voltar a desa-
celerar a economia global. Seria
bastante indesejável.”

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Em busca do


consenso possível


l Impacto

A crise entre Estados Unidos e
China também deve mudar de
forma importante o mercado fi-
nanceiro global. De acordo com


o estrategista-chefe do BTG
Pactual Wealth Management,
João Scandiuzzi, o mercado chi-
nês pode se fortalecer caso os
EUA sigam adiante com a pro-
posta de obrigar empresas es-
trangeiras listadas em Bolsas
americanas a serem auditadas
internamente.
A medida já foi aprovada no
Senado, mas precisa passar pe-
los deputados e pelo presidente

Donald Trump. O problema é
que Pequim proíbe estrangei-
ros de auditarem companhias
chinesas. Isso pode fazer com
que empresas chinesas tenham
de transferir a negociação de
suas ações para o mercado do-
méstico. “A desintegração fi-
nanceira dos dois países pode
revigorar o mercado chinês e
sua hegemonia na Ásia”, diz
Scandiuzzi.

O superintendente de pesqui-
sa econômica do Itaú Uniban-
co, Guilherme Martins, no en-
tanto, acredita que o centro fi-
nanceiro chinês pode se espa-
lhar, com Hong Kong dividindo
as atenções com Xangai e Cinga-
pura. Isso porque, no fim de
maio, os EUA afirmaram que
vão retirar o status de comércio
preferencial de Hong Kong, que
garante à região administrativa

especial chinesa benefícios co-
merciais, de investimentos e tri-
butários.
“Com o status, Hong Kong fa-
zia a intermediação entre a Ásia
e o resto do mundo. Essa mu-
dança no status prejudicaria to-
do o fluxo financeiro na região.
Mas isso deve ser um processo
lento”, acrescenta Martins.
Em meio ao embate entre os
países, além da alteração no sta-

tus de Hong Kong, os EUA deve-
rão criar algumas sanções con-
tra oficiais chineses, proibindo,
por exemplo, o acesso deles ao
sistema financeiro internacio-
nal, diz o economista-chefe do
banco MUFG (antigo Banco de
Tokyo) na Ásia, Cliff Tan.
“Talvez possam retirar a habi-
litação de instituições financei-
ras chinesas para fazerem negó-
cios e operarem nos EUA”, diz
Cliff Tan. Por enquanto, Trump
já vem exortando fundos de pen-
são americanos a não investi-
rem em papéis chineses. / L.D.

As diferenças políticas não
podem ser maiores que o
sentimento de urgência

DOUG MILLS/THE NEW YORK TIMES-9/11/

Crise EUA x China


aumenta incerteza


na economia global


“Se os EUA começarem a
interferir no que a China
está fazendo, a China pode
desacelerar de forma geral,
o que seria muito ruim para
o Brasil. A demanda da
China depende de quão
rápida ela pode crescer.”
Cliff Tan
ECONOMISTA-CHEFE DO MUFG NA ÁSIA

Embate entre as duas potências, que se acirrou na pandemia,


pode travar investimentos nos próximos meses e atingir Brasil


Antes da eleição. Trump
deve fazer da campanha
contra a China, de Xi Jinping,
sua principal plataforma

Mercado financeiro mundial pode sofrer modificações


China pode se fortalecer,


mas importância


de Hong Kong está


ameaçada, dizem


economistas

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