O Estado de São Paulo (2020-06-22)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 22 DE JUNHO DE 2020 A


Internacional


WASHINGTON


Enquanto a maior parte dos
EUA retoma lentamente as
atividades econômicas, pelo
menos 12 Estados estão rea-
brindo no momento em que
batem recorde de novas infec-
ções. Os casos mais graves
são Flórida, Texas e Arizona,
que registram entre 3,5 mil e 4
mil novos casos de covid-
todos os dias.

Apesar do esforço de Donald
Trump e do vice-presidente
americano, Mike Pence, em de-
clarar o fim da pandemia, o vírus
vem se acelerando nacional-
mente. Em todo o país, os casos
aumentaram 15% nas últimas
duas semanas, puxados por no-
vos surtos no Sul, na Costa Oes-
te e no Centro-Oeste. Ontem,
pelo terceiro dia seguido, o nú-
mero de novas contaminações
chegou à marca de 30 mil – o que
não se registrava desde abril.
Ontem, o assessor comercial
da Casa Branca, Peter Navarro,
admitiu que a Casa Branca está
se preparando para uma segun-
da onda do vírus. “Estamos ga-
rantindo o estoque de equipa-
mentos, antecipando um possí-
vel problema no outono (a par-
tir de setembro)”, afirmou Na-
varro ao programa State of the
Union
, da CNN. “Estamos fa-
zendo tudo o que podemos.”
A declaração de Navarro, no
entanto, contraria a mensagem
passada pelo próprio governo.
Na quarta-feira, Trump promo-
veu uma blitz em jornais e TVs
para tranquilizar a população.
“A pandemia está indo embo-
ra”, afirmou o presidente em en-
trevistas ao Wall Street Journal e
às emissoras Fox News, Sin-
clair e Gray TV. Pence também
passou os últimos dias dizendo
que o “perigo já passou”.
Na semana passada, a preocu-
pação da Casa Branca era reba-
ter as críticas ao presidente,
que marcou um comício na cida-
de de Tulsa, no Estado de Okla-
homa, que também vem regis-
trando crescimento no número
de novos casos. O compareci-
mento, no entanto, foi abaixo
do esperado – apenas 6 mil pes-
soas em uma arena com capaci-
dade para 20 mil.


No fim de semana, o governa-
dor da Flórida, o republicano
Ron DeSantis, afirmou que as no-
vas infecções afetaram de manei-
ra desproporcional os jovens, en-
tre 20 e 30 anos. Segundo ele, o
aumento de casos ocorre em ra-
zão da testagem, que também
cresceu. Especialistas, no entan-
to, apontam dois fatores preocu-

pantes: o número de interna-
ções, que vem aumentando, e a
proporção de testes com resulta-
do positivo, que passou a barrei-
ra de 10% e chegou ao nível mais
alto desde abril.
O aumento no número de ca-
sos nos EUA, segundo epide-
miologistas, pode ter duas ori-
gens. A primeira, o feriado do

Memorial Day, em 25 de maio,
quando os americanos lotaram
parques, praias, balneários e pis-
cinas públicas em diversas par-
tes do país. No Texas, a taxa de
internação cresceu 66% desde
o feriado.
Outro fator é a retomada das
atividades econômicas, espe-
cialmente em Estados governa-

dos por republicanos, ansiosos
em replicar as determinações
da Casa Branca para que o país
retorne à normalidade – a Cali-
fórnia, governada por um demo-
crata, onde os casos também es-
tão crescendo, seria uma exce-
ção à regra.
Ontem, Michael Osterholm,
diretor do Centro de Controle

e Prevenção de Doenças
(CDC), comparou a pandemia
a um incêndio florestal. “Não
acho que vai desacelerar. Não
teremos uma, duas ou três on-
das. O que veremos é um longo
e complicado incêndio flores-
tal de casos”, disse Osterholm
ao programa Meet the Press , da
NBC. / NYT

PEGADINHA ESVAZIA


COMÍCIO DE TRUMP


T


inha tudo para ser o re-
torno triunfal de Do-
nald Trump. Pressio-
nado por múltiplas crises, o
presidente marcou um comí-
cio para o sábado à noite em

Tulsa. O chefe de sua campa-
nha, Brad Parscale, anunciou
que mais de um milhão de pes-
soas haviam se cadastrado para
o evento. Como a arena tinha
capacidade para 20 mil, eles pre-

pararam um palco na parte ex-
terna, onde Trump e o vice-pre-
sidente Mike Pence fariam dis-
cursos para as 40 mil pessoas
que não conseguiriam entrar.
Mas alguma coisa deu errado.
Apenas 6 mil pessoas compa-
receram, deixando à vista uma
imensidão de cadeiras vazias.
Trump cancelou o discurso que
faria fora da arena. A imagem de
funcionários desmontando o
palco, diante de meia dúzia de
curiosos, foi constrangedora. O
porta-voz da campanha, Tim

Murtaugh, culpou manifestan-
tes que teriam impedido a entra-
da dos apoiadores – o que não
aconteceu. Sobrou até para a im-
prensa, acusada de disseminar
o medo de que a aglomeração
propagasse o coronavírus.
Ontem, no entanto, surgiu
outra explicação. Milhares de
adolescentes, usuários do Tik-
Tok (um aplicativo de vídeos
curtos) e fãs de K-Pop (música
pop coreana), reivindicaram a
proeza de arruinar a noite do
presidente. Tudo começou

quando a campanha tuitou
um pedido para que os eleito-
res se inscrevessem usando
o telefone para ter acesso ao
comício. Imediatamente,
contas de fãs de K-Pop com-
partilharam a informação,
incentivando a inscrição – a
ideia era não comparecer e
deixar Trump falando sozi-
nho.
A ideia se tornou viral. “Is-
so se espalhou no Alt Tik-
Tok”, disse o youtuber Eli-
jah Daniel, de 26 anos, que
participou da pegadinha di-
gital. “O Twitter do K-Pop e
o Alt TikTok têm uma gran-
de comunidade, que espalha
informações muito rapida-
mente. Todos conhecem os
algoritmos e sabem como
impulsionar os vídeos.”
Alguns cantaram vitória
ainda no sábado. “Você
(Parscale) acaba de ser feito
de bobo por adolescentes no
TikTok”, tuitou a deputada
democrata Alexandria Oca-
sio-Cortez, em resposta ao
chefe de campanha de
Trump. Steve Schmidt, es-
trategista republicano,
acrescentou: “Os adolescen-
tes americanos deram um
golpe selvagem contra o pre-
sidente.”
Ontem, Parscale garantiu
que a campanha passa um
pente-fino em números fal-
sos de telefone e leva em con-
sideração os registros fictí-
cios no cálculo do público.
“Os esquerdistas e os trolls
acham que afetaram o com-
parecimento, mas não sa-
bem o que estão dizendo ou
como funcionam nossos co-
mícios”, disse. / NYT

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l]
FAREED
ZAKARIA
THE WASHINGTON POST

Epidemia ganha velocidade nos EUA


e 12 Estados batem recorde de casos


O livro de Bolton e os problemas do presidente


Enquanto governo tenta acelerar a volta das atividades econômicas e o presidente Donald Trump retoma a campanha eleitoral,


infecções crescem 15% em duas semanas; Flórida, Texas e Arizona registram entre 3,5 mil e 4 mil novas contaminações todos os dias


LEAH MILLIS/REUTERS

Frustração. Comício de Trump em Tulsa: apenas 6 mil pessoas em uma arena com capacidade para 20 mil espectadores

Cadeiras vazias

Fãs de K-Pop reivindicam vitória contra presidente


O


livro de John Bolton nos diz
muito pouco de novo a res-
peito da política externa de
Donald Trump. Ele pinta o retrato
de um presidente ignorante – não
sabe que o Reino Unido é uma potên-
cia nuclear ou que a Finlândia não
faz parte da Rússia. Trump tem pou-
cas opiniões fixas na política exter-
na. Às vezes, mostrou-se inclinado a
invadir a Venezuela. Em outros mo-
mentos, perdeu o interesse. Mas o
que Bolton revela, segundo trechos
publicados até o momento, é que o
verdadeiro problema de Trump não
está na sua ignorância nem nas suas
políticas, mas no seu caráter.
Em geral, o presidente adotou po-
líticas convencionais do Partido Re-
publicano. Reduziu impostos para
os ricos, diminuiu regulamenta-
ções, nomeou juízes conservadores

e injetou dinheiro no Pentágono. Ele
diverge da fórmula de Ronald Reagan
em duas áreas: imigração e comércio,
temas diante dos quais ele mudou boa
parte do partido, que agora aceita a
ideia de tarifas, subsídios e mercantilis-
mo, bem como as rigorosas restrições
à imigração.
Não concordo com muitas dessas po-
líticas. Mas o que mais me preocupou
sempre foi o caráter de Trump. Trata-
se de um homem voltado para seus pró-
prios interesses, que ele coloca acima
de qualquer outra preocupação com a
decência, a moralidade ou mesmo a lei.
Bolton não é o primeiro funcionário do
alto escalão a abandonar o barco – Rex
Tillerson, James Mattis e John Kelly já
deixaram clara sua opinião a respeito
de Trump –, mas ele é o primeiro a tra-
zer detalhes – e eles são sórdidos.
Trump diz que Bolton está violando
a lei ao revelar informações confiden-
ciais e alega que toda conversa com
ele, enquanto presidente, é “altamente
confidencial”. Assim, a defesa de
Trump parece confirmar a veracidade
do relato de Bolton.

O livro diz que Trump prometeu
afastar promotores federais que esta-
vam investigando um banco turco por-
que o presidente Erdogan pediu sua in-
tervenção. Trump insistiu para que o
governo ucraniano lhe entregasse in-
formações incriminatórias a respeito
de Hillary Clinton e Joe Biden antes
de liberar recursos de ajuda ao país
aprovados pelo Congresso. Bolton des-
taca que, em pelos menos oito oca-
siões, ele e os secretários de Estado e
da Defesa tentaram pressionar Trump
para que os recursos fossem liberados,
mas o presidente rejeitou.
O caso da Ucrânia pode ser o mais
passível de impeachment, mas o trata-
mento de Trump dispensado à China é
o mais preocupante. A política ameri-
cana em relação à China é o assunto
mais importante de uma presidência
atual. É ali que se prepara o palco para
a paz ou a guerra, a defesa dos interes-
ses americanos, e a segurança dos
EUA e de seus aliados nas próximas dé-
cadas. E Trump tratou esse relaciona-
mento como algo de que pudesse dis-
por, manipulando-o e alterando-o pa-

ra atender a seus interesses pessoais
(especificamente, para melhorar suas
chances de reeleição).
Bolton descreve a disposição de
Trump de reverter acusações e até
ofensas criminais contra empresas chi-
nesas como favores pessoais ao presi-
dente Xi Jinping. Ele ofereceu a redu-
ção das tarifas sobre produtos chine-
ses em troca de um acordo que o dei-
xasse bem posicionado para a eleição
de novembro, pressionando Xi a fazer
a China comprar produtos agrícolas
para que Trump tivesse bom resultado
com o eleitorado do Meio-Oeste.
O presidente elogiou Xi pela cons-
trução de campos de concentração em
Xinjiang – vimos Trump fazer algo se-
melhante em relação à covid-19, elo-
giando muito a atuação de Xi, provavel-
mente, na esperança de preservar seu
acordo comercial. Bolton descreve
Trump “negociando com Xi para ga-
rantir sua reeleição”.
O mais notável é que os chineses pa-
recem ter entendido com quem esta-
vam lidando e jogaram abertamente
com os interesses de Trump. Xi disse

que gostaria de ver Trump no cargo
pelos próximos seis anos. Trump
respondeu que “estão dizendo” –
sua maneira favorita de expressar
opiniões pessoais – que o limite de
dois mandatos para a presidência de-
veria ser suspenso no caso dele.
A conclusão de Bolton em relação
ao acordo com a China – e à política
externa de Trump – é de tirar o fôle-
go. “Trump misturou interesses pes-
soais e nacionais não apenas em se
tratando do comércio, mas também
na segurança nacional. Tenho difi-
culdade em identificar uma decisão
significativa de Trump durante o pe-
ríodo em que estive na Casa Branca
que não tenha sido motivada pelo
cálculo da reeleição”, escreveu.
Para aqueles dispostos a defender
Trump em razão do que ele fez – os
juízes nomeados para a Suprema
Corte ou os cortes de impostos –, o
livro de Bolton deixa claro que o
custo é alto. Trump está disposto a
pagar qualquer preço, fazer qual-
quer acordo e violar qualquer lei pa-
ra garantir a própria sobrevivência. /
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

]
É COLUNISTA

Artigo

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