O Estado de São Paulo (2020-06-23)

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A14 Política TERÇA-FEIRA, 23 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Wilson Tosta / RIO


O êxito do bolsonarismo, com
sua paixão mobilizadora nas re-
des sociais e nas ruas, inviabili-
za o governo Jair Bolsonaro,
diagnostica o professor João
Cezar de Castro Rocha, pesqui-
sador da Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro (UERJ).
Titular de Literatura Compara-
da a instituição, ele aponta o
paradoxo do discurso bolsona-
rista no livro Guerra Cultural e
Retórica do Ódio (Crônicas do
Brasil)
, que lançará em julho.


Ele destaca a necessidade
dos seguidores do presidente
(e dele próprio) de ter, o tem-
po todo, inimigos a comba-
ter, um fator que, prevê, leva-
rá a administração ao colap-
so. Isso estaria evidente no
combate à covid-19. “ É mui-
to claro: a morte não é um me-
me, e a vida não se reduz à dis-
puta de narrativas”, afirmou,
em entrevista ao Estadão.
Leia trechos da entrevista a
seguir.

lO sr. se refere em seu livro a
uma forma brasileira de guerra
cultural empreendida pelo gover-
no Bolsonaro. O que é isso?
Em nenhuma circunstância es-
tou negando que a guerra cul-
tural bolsonarista lance mão
de diversos recursos utilizados
sobretudo pela extrema direita
norte-americana. Não estou
negando que seja possível fa-
zer um estudo da guerra cultu-
ral bolsonarista que valorize a
proximidade de tudo que o go-
verno Bolsonaro realiza e que
pode ser encontrado em gover-
nos da Turquia, da Hungria.

lA guerra cultural é o objetivo
do governo?
A guerra cultural é o eixo do
governo. Por isso mesmo, a
guerra cultural não deixa que
haja governo. Esse é o parado-

xo. Este governo vai entrar em
colapso administrativo. A guer-
ra cultural assegura o êxito do
bolsonarismo e impossibilita a
ação do governo.

lIsso explica a ação, ou não
ação, do governo na pandemia?
Justamente. O que está aconte-
cendo agora na pandemia é de-
sastroso. Em lugar de adminis-

trar a crise, de vislumbrar um fu-
turo difícil e se antecipar a ele,
Bolsonaro gasta o tempo intei-
ro criando inimigos políticos.

lO senhor cogitou que os gru-
pos digitais bolsonaristas fica-
riam mais extremistas, não?
Estão ficando. E não somente
isso, as milícias digitais estão
indo para as ruas. O caso absur-
do deste grupo dos 300 ( grupo
extremista que acampou em Bra-
sília). É muito claro: a morte
não é um meme, e a vida não se
reduz à disputa de narrativas.
Então, infelizmente, esta peste
nos confronta com a necessida-
de de observar com cuidado da-
dos objetivos da realidade.

Investigados no inquérito do
Supremo Tribunal Federal
(STF) que apura a organiza-
ção e o financiamento de atos
antidemocráticos podem ter
atuado de forma criminosa
para desestabilizar “o regime
democrático” com o objetivo
de obter ganhos econômicos
e políticos. Em decisão que
determina quebra de sigilos
de 11 parlamentares bolsona-
ristas, o ministro Alexandre
de Moraes disse que as inves-
tigações da Procuradoria-Ge-
ral da República (PGR) “con-
firmam a real possibilidade
de existência de uma associa-
ção criminosa”.

A PGR identificou vários nú-
cleos ligados à associação crimi-
nosa: organizadores e movi-
mentos, influenciadores digi-
tais e hashtags, monetização e
conexão com parlamentares.
Na avaliação da Procuradoria,
os parlamentares ajudariam na
expressão e formulação de men-
sagens, além de contribuir com
sua propagação, visibilidade e fi-
nanciamento.
“As chamadas redes sociais
não são apenas espaço de liber-
dade de expressão. Os usuários
das redes sociais com muitos se-
guidores podem auferir renda
das próprias plataformas a par-
tir de seguidores que arreba-
nham, o universo de pessoas
que alcançam com suas mensa-
gens, a sua capacidade de in-
fluenciar seus seguidores”, afir-
ma a Procuradoria.
Aliados do presidente Jair


Bolsonaro podem ter lucrado
mais de R$ 150 mil com a divul-
gação dos atos que pedem o fe-
chamento do Congresso e do
Supremo Tribunal Federal, se-
gundo a PGR. A suspeita é que
parlamentares, empresários e
donos de sites bolsonaristas
atuariam em conjunto em um
“negócio lucrativo” de divulga-
ção de manifestações contra as

instituições democráticas.
De acordo com o vice-procu-
rador-geral, Humberto Jac-
ques, dois canais pró-governo
no Youtube, Folha Política e Fo-
co do Brasil, podem ter embol-
sado até R$ 157 mil com trans-
missões dos discursos de Bolso-
naro em protestos recentes. A
arrecadação viria de parcerias,
assinaturas, eventuais compras

de produtos oferecidos pelos ca-
nais e até de anúncios pagos por
empresas e órgãos públicos.
“Com o objetivo de lucrar, es-
tes canais, que alcançam um
universo de milhões de pes-
soas, potencializam ao máximo
a retórica da distinção amigo-
inimigo, dando impulso, assim,
a insurgências que acabam efeti-
vamente se materializando na

vida real, e alimentando nova-
mente toda a cadeia de mensa-
gens e obtenção de recursos fi-
nanceiros”, diz Jacques.
O vice-procurador cita dados
de relatórios de uma empresa
especializada em análises esta-
tísticas de páginas do YouTube.
/ PAULO ROBERTO NETTO, RAYSSA
MOTTA, FAUSTO MACEDO E RAFAEL
MORAES MOURA

Patrik Camporez / BRASÍLIA


O Ministério Público junto ao
Tribunal de Contas da União (T-
CU) ingressou ontem com uma
representação para que a Corte
apure se houve participação irre-
gular do Itamaraty na viagem do
ex-ministro da Educação Abra-


ham Weintraub para os Estados
Unidos, no sábado. Na avalia-
ção do subprocurador Lucas
Furtado pode ter havido desvio
de finalidade, já que o ingresso
de Weintraub em Miami, sem ca-
ráter oficial, ocorreu com uso
do passaporte diplomático.
Na representação, Furtado
ressalta que a viagem não tinha
caráter oficial, “o que lhe retira
a finalidade pública” e, por isso,
o passaporte diplomático não
poderia ter sido utilizado. Os
EUA impuseram restrições de
entrada e saída por causa da pan-
demia do novo coronavírus. A

condição de ministro, portan-
to, foi fundamental para o de-
sembarque de Weintraub na-
quele país. O Itamaraty não res-
pondeu à reportagem.
A exoneração de Weintraub
foi publicada no Diário Oficial

da União (DOU) de sábado, so-
mente após ele desembarcar
em Miami. A demissão “a pedi-
do” foi assinada pelo presiden-
te Jair Bolsonaro.

Ajuda. Na representação, o Mi-
nistério Público reforça que con-
sultou as agendas públicas de
Weintraub no MEC e constatou
que não havia agenda oficial em
Miami no sábado. Por isso, o pro-
curador quer saber por que Wein-
traub “só teve sua exoneração for-
malizada depois de se encontrar
em terras norte-americanas”.
Furtado também pede que o
TCU investigue se houve gasto
de dinheiro público com a via-
gem. “Se houve o emprego de
valores públicos em qualquer fa-
se desta viagem, esses recursos
foram indevidamente emprega-
dos e deverão ser ressarcidos ao
erário”, afirmou.
Desde sábado, o Estadão
questiona o ministério da Defe-

sa se algum avião da Força Aé-
rea Brasileira foi usado no trans-
porte de Weintraub. No primei-
ro momento a pasta pediu mais
prazo para responder. Depois,
disse que apenas o Palácio do
Planalto poderia dar essa infor-
mação. A Casa Civil e a Secreta-
ria Geral da Presidência não qui-
seram comentar. A assessoria
do MEC diz que o ministro saiu
do País em avião de carreira e
pagou as despesas do próprio
bolso, mas não apresentou do-
cumentos.
No Twitter, Weintraub afir-
mou ontem que recebeu a ajuda
de “dezenas de pessoas” para
“chegar em segurança aos Esta-
dos Unidos”. “Agradeço a todos
que me ajudaram a chegar em se-
gurança aos EUA, seja aos que
agiram diretamente (foram deze-
nas de pessoas) ou aos que oram
por mim”, postou o ex-ministro,
com foto em frente a um restau-
rante de culinária mexicana.

ENTREVISTA


‘A guerra cultural é o eixo do governo Bolsonaro’


Alvos pedem


salvaguarda


contra mandado


l Depois de uma operação em
um imóvel utilizado por grupos
bolsonaristas, o delegado Leonar-
do de Castro, da Polícia Civil do
Distrito Federal, afirmou ontem
que pode abrir uma linha de in-
vestigação sobre o financiamen-
to das ações desses grupos, sus-
peitos de ataques ao Supremo.
Até o momento, a apuração indi-
ca que o imóvel alvo da operação
de anteontem – uma chácara na
região de Arniqueiras – pertence-
ria a um empresário de Goiânia
(GO). Sem citar nomes, o delega-
do disse que o dono seria um dos
membros do grupo e já teria in-
clusive ameaçado o governador
Ibaneis Rocha (MDB) nas redes
sociais. “Pode ser um indício de
que ele seja um dos financiado-
res do grupo, justamente por dis-
ponibilizar esse imóvel, caso seja

confirmada a propriedade.”
Na operação realizada anteon-
tem, houve busca e apreensão na
chácara, um dos pontos de apoio
dos grupos pró-governo conheci-
dos como "300 do Brasil", "Pa-
triotas" e "QG Rural".
A ação aconteceu antes da mani-
festação em defesa do governo
ocorrida na Esplanada dos Minis-
térios. A polícia informou ter
apreendido fogos de artifício, ma-
nuscritos com planejamento de
ações e discursos, cartazes, apa-
relhos de telefone celular, um
facão, um cofre, além de ima-
gens das câmeras de segurança
da propriedade.
A Polícia Civil investiga a prática
de supostos crimes de milícia
privada, ameaças e porte de ar-
mas por membros do grupo. "Há
um tempo, manifestantes vêm,
através de redes sociais, emitin-
do declarações que ultrapassam
o limite da liberdade de expres-
são e acabam configurando cri-
mes", afirmou o delegado. /
EMILLY BEHNKE

l Cotado
O presidente Jair Bolsonaro tem
almoço marcado para hoje com o
secretário de Educação do Para-
ná, Renato Feder.

Ministério Público junto


ao TCU faz representação


para investigar uso de


passaporte diplomático


por Weintraub


l Conclusão
Professor. João Cezar vai lançar livro sobre bolsonarismo

Para pesquisador, a


necessidade de escolher


inimigos alimenta o


bolsonarismo, mas trava


as ações do Planalto


Apoiadores do presidente Jair
Bolsonaro, entre eles alguns al-
vos do inquérito que investiga
fake news e ameaças contra mi-
nistros do Supremo Tribunal
Federal (STF), publicaram um
manifesto anteontem, em que
pedem ao presidente um decre-
to que desobrigue funcionários
públicos de cumprir ordens ju-
diciais relacionadas à investiga-
ção. Entre os signatários estão
os blogueiros e colunistas co-
mo Allan dos Santos, Bernardo
Küster e Camila Abdo, que já fo-
ram alvo de ações da Polícia Fe-
deral. O manifesto é assinado
por 29 pessoas.
“Nós fazemos um apelo ao
chefe do Executivo e autorida-
de máxima da nação, Jair Mes-
sias Bolsonaro: que, por meio
de um decreto presidencial, de-
termine a todos os agentes pú-
blicos federais que se abste-
nham de realizar quaisquer dili-
gências do Inquérito 4.781”, diz
o texto, intitulado “Manifesto
pela Democracia”.
Se o pedido for atendido, tal
decreto pode ser considerado
crime de responsabilidade. A lei
n.º 1.079, de 1950, diz que há cri-
me de responsabilidade quan-
do o presidente da República
atenta contra “o livre exercício
do Poder Legislativo, do Poder
Judiciário e dos poderes consti-
tucionais dos Estados”. A lei
também classifica como crime
a situação em que o presidente
se opõe “diretamente e por fa-
tos ao livre exercício do Poder
Judiciário” ou impede, de for-
ma violenta, “efeito dos seus
atos, mandados ou sentenças”.
A publicação da carta ocorreu
no mesmo dia em que as mani-
festações contra e a favor do go-
verno diminuíram de tamanho.
No domingo, Bolsonaro não
compareceu ao ato na Esplana-
da dos Ministérios. No Palácio
da Alvorada, conversou com
apoiadores, mas não deu decla-
rações à imprensa. Ontem, fa-
lou em “paz e harmonia” com
os outros poderes.

Polícia do DF quer


mirar financiadores


de movimentos


Inquérito vê busca


de lucro em atos


antidemocráticos


Suspeita é que parlamentares, empresários e sites bolsonaristas


se associaram em ‘negócio lucrativo’ para divulgar manifestações


TWITTER/ABRAHAM WEINTRAUB-21/6/

Atuação do Itamaraty


em viagem de ministro


pode ser apurada


Miami. Weintraub posa em frente a loja de rede de fast-food

NA WEB
Leia. A íntegra da
entrevista com
Castro Rocha

estadao.com.br/entrevista_rocha
6

“É muito claro:
a morte não é
um meme, e a
vida não se reduz à
disputa de narrativas”
João Cezar de Castro Rocha
PESQUISADOR DA UERJ

THIAGO TEIXIERA/ESTADAO-10/8/

João Cezar de Castro Rocha, pesquisador da Uerj


:MARCOS CORREA /PR

Presidente vai a ato antidrogas
Presidente Jair Bolsonaro durante solenidade de abertura da Semana
Nacional de Políticas sobre Drogas promovida pelo Ministério da Justiça
e Segurança Pública em parceria com o Ministério da Cidadania.
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