O Estado de São Paulo (2020-06-23)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 23 DE JUNHO DE 2020 Metrópole A21


NA WEB
Vídeo. Família guarda lembranças.
estadao.com.br/e/miguelotavio

Felipe Resk / RECIFE

N


egra, de família pobre
e com o currículo re-
cheado de trabalhos
braçais, Mirtes expli-
ca por qual motivo de-
cidiu batizar o único fi-
lho de Miguel Otávio: “Queria um
nome bonito e forte. A melhor op-
ção era um dos arcanjos da Bíblia ,
mas aí já tinha Gabriel na família”,
conta ao Estadão. “O complemento
é porque, na minha cabeça, tinha de
combinar com ‘doutor’. Já imagina-
va ele como médico, advogado ou
engenheiro: doutor Miguel Otávio.”
A dor da empregada doméstica
Mirtes Renata Santana de Souza, de
33 anos, é saber que, em vez do futu-
ro de prosperidade, o filho se tornou
uma espécie de símbolo do passado
insistente do Brasil. Entregue aos
cuidados da patroa Sarí Gaspar Cor-
te Real, o menino teria tentado en-
contrar com a mãe e acabou sendo
deixado sozinho no elevador de um
prédio de luxo, no centro do Recife.
A história termina com a criança des-
pencando do nono andar, a uma altu-
ra de 35 metros, em circunstâncias
que ainda precisam ser esclarecidas.
Miguel Otávio Santana da Silva, de 5
anos, morreu antes mesmo de apren-
der a escrever muita coisa além do
próprio nome.
A tragédia aconteceu no dia 2 de
junho, curiosamente o aniversário
de cinco anos da lei que regulamen-
tou o trabalho doméstico no País, e
gerou debates sobre racismo estru-
tural, patrimonialismo e impunida-
de. Com o mote #JustiçaParaMi-
guel, manifestantes também protes-
taram na frente do condomínio, jo-
cosamente conhecido no Recife co-
mo “Torres Gêmeas”.
Naquele dia, Mirtes não havia sido
liberada do serviço mesmo em meio
à pandemia do coronavírus. À tarde,
precisou sair de uniforme para dar
uma volta na praça com Mel, a buldo-
gue da patroa, enquanto Sarí fazia as
unhas com a manicure no aparta-
mento. O passeio foi curto: não mais
do que 15 minutos. O suficiente para
que, ao voltar, encontrasse Miguel
Otávio estatelado no chão.
Autuada em flagrante por suposta
negligência, Sarí ficou em silêncio
na delegacia e foi solta depois de pa-
gar fiança de R$ 20 mil. Hoje, respon-
de em liberdade a inquérito por ho-
micídio culposo (quando não há in-
tenção de matar) – crime que a defe-
sa contesta sob a tese de que, por
tê-lo deixado no elevador, não era
possível prever que o garoto termi-
naria morrendo.
Já para Mirtes, o fato de a mulher
estar livre – “mesmo tendo largado o

menino à própria sorte” – se explica
não pelo episódio, em si, mas pelos so-
brenomes que o episódio envolve. Ago-
ra ex-patroa, Sarí é a primeira-dama de
Tamandaré e uma Corte Real, família
influente na política de Pernambuco.
Por sua vez, Miguel Otávio, apesar do
nome pensado para virar doutor, era
um Silva.

Silva. Com quadro de hipertensão
gestacional, Mirtes sabia que o parto
seria de risco. Por isso, pegou uma con-
dução em Orobó, cidadezinha de 23
mil habitantes na divisa entre Pernam-
buco e a Paraíba, onde morava na oca-
sião, e viajou por 77 quilômetros para
dar à luz em Vitória de Santo Antão, a
meio caminho da capital, município
com maternidades melhor equipadas.
Mãe de primeira viagem, a jovem re-
sistiu ao bisturi o quanto pôde. Depois
de horas de trabalho de parto, sentin-
do a dor das contrações e com a pres-
são subindo sem parar, foi convencida
pelos médicos de que o perigo para o
filho chegaria antes de ela ter dilatação
suficiente.
Miguel Otávio veio ao mundo às
7h42 do dia 17 de novembro de 2014,
com 52 centímetros e 4.350 gramas.
Sem disfarçar uma pontada de orgu-
lho, a mãe recorda que as medidas dei-
xaram uma enfermeira boquiaberta:
“Meu Deus do céu, olha o tamanho des-
sa criança! E tu ainda queria ter parto
normal, mulher?!”.
O menino é fruto de uma relação de
Mirtes com um ex-colega de trabalho.
À época, ela havia sido contratada co-
mo carpinteira por uma empresa que
dizia querer promover mulheres na
construção civil, relata. “Conheci o pai
de Miguel Otávio trabalhando nas
obras. Eu engravidei oito meses de-
pois de a gente começar a namorar.”
Os dois chegaram a casar e foram
morar no interior. Ao nascimento do
filho, no entanto, a jovem já estava de-
sempregada. Ela e outras colegas ha-
viam sido demitidas de baciada após a

construtora decidir encerrar a campa-
nha de igualdade de gênero, segundo
conta.
Na vida de Mirtes, “doutor” sempre
foram os outros. Filha de uma faxinei-
ra com um vendedor de rua, ela nasceu
no Alto José do Pinho, uma das maio-
res favelas do Recife, e morou ao longo
da vida por casas da região metropolita-
na e do agreste. Todas na periferia.
Com curso técnico de segurança do tra-
balho inacabado, só concluiu os estu-
dos até o ensino médio.
Em diversos momento, precisou ir
atrás de “ôias” – como os pernambuca-
nos chamam os “bicos”. “Várias vezes
levei Miguel Otávio para os cantos, até
quando ele era recém-nascido. Quase
não aperriava: ia dormindo com o cha-
meguinho do ônibus”, diz. Entre os ser-
viços, já foi recepcionista, diarista e até
ajudante do pai, que vende churros em
um parque aquático de Moreno, no
Grande Recife.
Hoje separada, Mirtes mora na casa
da mãe, a Martinha, no bairro do Barro,
na zona oeste da capital, onde, a depen-
der da operadora, nem sinal de celular
funciona direito. Começou a trabalhar
para Sarí há mais de três anos. A rotina
de segunda a sábado era levantar da
cama às 5h30, deixar o filho em um ho-
telzinho perto de casa e gastar mais de
uma hora no transporte público para
ir, e outra para voltar.

Descanso aos domingos? Que nada,
era o dia de ajudar o pai no parque
aquático e tirar o extra que bancava
presentes e festa de aniversário de Mi-
guel Otávio. “Podia falar as coisas para
mim, mas para o meu filho nunca.”
Quem o conhece de recém-nascido
diz que o menino era “cheio de ener-
gia, como toda criança”. “Não vê as fo-
tos? Aquele sorriso era 24 horas por
dia. Ele podia estar trelando como fos-
se, mas estava sorrindo. Eu nunca vou
esquecer disso”, diz Sueli Camilo, a
“Vovó Sueli”, de 50 anos, que é proprie-
tária do Cantinho Feliz. Antes da pan-
demia, era no hotelzinho que o garoto
ficava a partir das 6 horas até a mãe
buscá-lo no fim da tarde.
Vez ou outra, Vovó Sueli distribuía
uns carões ao flagrá-lo, por exemplo,
mandando um “passinho” – dança que
ela, evangélica, reprova veementemen-
te. “Como ele era muito ativo e precisa-
va gastar energia, pedi para levar comi-
go na igreja. Fiquei impressionada, ele
fechou de badoque! Um menino que
não tem berço evangélico e, ainda as-
sim, fez amizade com todo mundo.”
Festeiro e fã de futebol, Miguel Otá-
vio era torcedor do Sport e entusiasta
do bloco Galo da Madrugada. Em casa,
gostava de escalar a grade do terraço e
de assistir à novela e a desenhos anima-
dos – menos o Pica-Pau, que a mãe proi-
bia pelo mau exemplo.
Mirtes não conseguiu recolher os
dois patinetes e a bicicleta de Miguel
Otávio que ficaram espalhados pela ca-
sa. À noite, diz, é quando a saudade
aperta mais. “Ele sempre vinha deitar
comigo na cama, gostava da quenturi-
nha de mainha, e me colocava para dor-
mir. Sempre dormia depois de mim”,
descreve. “Agora, eu olho para a rua,
vejo um monte de menino jogando bo-
la, mas o meu filho não está mais lá.”
Outra dificuldade, desabafa, tem si-
do manter o sorriso Miguel Otávio vi-
vo na memória. “Só quando abro as
fotos no celular é que, de fato, consigo
me lembrar dos momentos felizes”,
diz. “Se eu estiver parada, pensando na
minha, a única imagem que fica vindo
na cabeça é aquela cena do meu filho
caído no chão.” Em um vídeo recente,
Miguel Otávio aparece banguela apren-
dendo a rezar o pai-nosso. Aparentan-
do timidez, ele vai engolindo algumas
palavras da oração, soprada por um
adulto, até que se empolga quando che-
ga ao fim: “Um abraço a todos!”

Corte Real. Sérgio Hacker Corte Real,
o marido de Sarí, foi eleito em 2016
prefeito de Tamandaré, no litoral sul
de Pernambuco, com 7.401 votos – car-
go que já havia sido ocupado pelo avô
dele no passado. Cidades das redonde-
zas, Rio Formoso e Sirinhaém também
são administradas, respectivamente,
pela mãe e por um primo do ex-patrão.

Hacker costuma ficar de segunda
a sexta em Tamandaré, mas volta na
maior parte dos fins de semana para
o Recife, a duas horas de distância
do seu endereço eleitoral. Já Sarí e
os dois filhos do casal, ambos crian-
ças menores de 7 anos, ficam nas
“Torres Gêmeas”, onde o aluguel de
um apartamento de 247 m² chega a
custar R$ 9 mil. Oficialmente, os es-
pigões de 41 andares e com vista pa-
ra o rio se chamam “Píer Duarte Coe-
lho” e “Píer Maurício de Nassau”.
No apartamento dos Corte Real,
Mirtes dividia os afazeres com a pró-
pria mãe; Martinha, inclusive, foi
responsável por indicá-la aos ex-pa-
trões. À mais velha, cabia limpar par-
te dos cômodos e passar roupa. Já a
mais nova terminava a faxina e ti-
nha de cozinhar para a família. Se-
gundo conta, a única orientação pa-
ra preparar a comida era usar Sazon


  • em vez de temperos mais fortes,
    como cominho ou coloral – e evitar
    verduras grandonas. Mirtes não dei-
    xou de fazer almoço nem quando foi
    infectada por covid-19. Martinha e
    Miguel Otávio também contraíram
    a doença.
    Até a morte do filho, contudo, a
    empregada diz que não havia do que
    reclamar. “Eles sempre trataram
    meu filho muito bem. Ela ( Sarí ) nun-
    ca se opôs a nada, mas eu só levava
    Miguel quando não tinha jeito”, afir-
    ma. Foram até os Corte Real que pa-
    garam o velório do menino. “No dia
    que aconteceu, eu pensei que tives-
    se sido um acidente mesmo. Mas,
    quando eu vi o vídeo depois, tomei
    um choque.” O vídeo a que Mirtes
    se refere é o que mostra Miguel den-
    tro do elevador, aparentemente ner-
    voso, e Sarí segurando a porta. Nas
    imagens, a patroa parece tentar cha-
    má-lo para fora da cabine, mas o me-
    nino se recusa a sair. Em seguida, ela
    parece apertar o botão da cobertura
    e deixa a criança sozinha. Então o
    elevador para no 7.º andar, mas Mi-
    guel Otávio não desce. Dois pavi-
    mentos acima, ele sai do equipamen-
    to e acessa um corredor.
    Não há câmeras a partir daí. A prin-
    cipal hipótese da polícia é que o me-
    nino saltou uma janela do corredor
    e acessou o hall de serviço, onde fica
    o ar-condicionado. Lá, teria subido
    em um gradil que, ao ceder com o
    peso, provocou a queda da criança.
    Em contrapartida, a mãe diz que o
    menino não sabia escalar e que nun-
    ca o viu subir nem em árvore.
    Representante de Sarí, o advoga-
    do Pedro Avelino diz que, para ele,
    deixar o menino no elevador não foi
    crime: “A gente entende que inexis-
    te a previsibilidade do resultado ( a
    morte
    )”. Até ontem, a primeira-da-
    ma não havia sido interrogada for-
    malmente pela polícia e seu relato
    sobre os fatos permanece um misté-
    rio. O único posicionamento públi-
    co de Sarí foi uma carta, dirigida a
    Mirtes, e divulgada pelo advogado.
    Nela, a ex-patroa pede perdão e se
    diz “condenada pela opinião públi-
    ca”. “Como mãe, sou absolutamen-
    te solidária ao seu sofrimento. Mi-
    guel é e sempre será um anjo na sua
    vida e na sua família. Não há pala-
    vras para descrever o sofrimento
    dessa perda irreparável”, diz o tex-
    to. “Na nossa casa sempre sobrou
    carinho e amor por você, Miguel e
    Martinha. E assim permanecerá
    eternamente.”


l Sobre a patroa
“Ela confiava os filhos dela a
mim de olhos fechados. Na
primeira vez que ficou
responsável por Miguel, entregou
meu filho todo quebrado por
dentro... Se fosse o contrário, ela
estaria muito revoltada, ia fazer
com que eu pagasse: eu estaria
presa e apanhando todo dia na
cadeia. Ela acabou com a minha
vida, meus planos, meu futuro.”
Mirtes Renata Santana de Souza
MÃE DE MIGUEL

Mãe conta história do menino de 5 anos que morreu ao cair de um prédio no Recife


ERA MIGUEL OTÁVIO POIS


QUERIA O FILHO DOUTOR


Cheio de energia. Ainda restam dúvidas sobre como ocorreu a morte

SUELI CAMILO/ARQUIVO PESSOAL

l Sob investigação
Foi só após o caso que veio à tona que
Mirtes e Martinha estavam registradas
como servidoras de Tamandaré.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM -5/06/2020

Reportagem Especial ]


Tragédia familiar em meio à pandemia


Manifestação e mobilização. Com o mote #JustiçaParaMiguel, os manifestantes protestaram na frente do condomínio, jocosamente conhecido no Recife como ‘Torres Gêmeas’

MIRTES SOUZA/ARQUIVO PESSOAL
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