O Estado de São Paulo (2020-06-23)

(Antfer) #1

H1%HermesFileInfo:H-1:2020^0623 : TERÇA-FEIRA,23 DEJUNHODE2020 OESTADODES. PAULO


Júlia Corrêa

“Um mês passa e traz outro mês.
/ Essas coisas que chegam facil-
mente se presumem:/ são aque-
las de ontem, as enfadonhas./ E o
amanhã acaba por já não parecer
um amanhã.” Quando, no início
do século passado, o grego Kons-
tantínos Kaváfis concluiu assim
um de seus poemas, a atual pan-
demia estava bem longe de per-
turbar a humanidade. Seus ver-
sos, no entanto, descrevem uma
experiência comum a pratica-
mente todos que têm vivido este
momento: a impossibilidade de
vislumbrar “um amanhã”.
De novos negócios e viagens a
festas de casamento, os planos
mais diversos foram frustrados
por causa do coronavírus e, em
muitos casos, ficou impossível
traçar qualquer meta com datas
definidas. Mesmo agora, quando
se acompanha a retomada gra-
dual de algumas atividades, nem
sempre é fácil controlar a ansie-
dade que a situação pode gerar.
“Somos seres que precisam de
parâmetros, de referências”, afir-
ma a psicóloga Lilian Wurzba.
“Essa falta de previsibilidade ge-
ra insegurança.” Especialista em
psicologia analítica e doutora

em ciências da religião, ela avalia
que o ser humano carrega vestí-
gios da evolução da espécie não
apenas biológicos, mas também
psíquicos. E isso fica evidente
quando enfrentamos situações
ameaçadoras, às quais reagimos
de modo semelhante aos ho-
mens primitivos. “A sensação de
enfrentar um
leão e uma pan-
demia são
iguais”, exem-
plifica ela,
ressaltando
que a ansie-
dade diante
das incerte-
zas serve co-
mo sinal de
alerta para
ativarmos
nosso sis-

tema de adaptação.
“O mundo, antes mesmo da
pandemia, já estava muito ansio-
so, porque estamos vivendo nu-
ma sociedade de pressão por sta-
tus, por desenvolvimento pes-
soal e profissional”, avalia a psi-
cóloga Aline Sá Copetti, especia-

lista em terapia cognitiva com-
portamental e terapia do esque-
ma. Segundo ela, muitas das
preocupações atuais derivam do
medo sentido por não conseguir
retomar projetos que “antes pa-
reciam redondinhos”.
Foi o que aconteceu com a es-
tudante Alice Pandolfo, de 21
anos. Quando se mudou para a
Noruega, em 2019, ela já sabia
que sentiria falta da família e dos
amigos. O que não imaginava é
que, em decorrência de uma pan-
demia, teria de passar um pe-
ríodo ainda maior longe de-
les. Ela planejava visitar o
Brasil em 25 de março,
mas, dias antes, começa-
ram os anúncios de qua-
rentena. “Acabaram
cancelando o meu

voo. Tentei ver alternativas, mas
era muito inseguro”, relata.
Agora, as expectativas de Alice
giram em torno dos estudos. Ela
vai começar a cursar administra-
ção em uma universidade norue-
guesa, mas não sabe se as aulas
serão presenciais, embora o país
já passe por um processo de rea-
bertura desde maio. Essa incerte-
za atrapalha inclusive uma possí-
vel reprogramação da viagem ao
Brasil até o fim do ano, já que,
com aulas a distância, ela teria a
possibilidade de assisti-las da-
qui, sem perder nenhuma.
Boa parte dos sentimentos de
frustração causados por essas in-
certezas, segundo Lilian, está
atrelada a um “slogan” que teria
ganhado força no século 21: o de
que querer é poder. “Eu costumo
brincar que o nosso ‘querer é po-
der’ vai até a página dois de um
livro de mil páginas”, comenta a
especialista, que acredita que de-
veríamos aprender, desde a in-
fância, a reconhecer nossas limi-
tações. “Lidar com a frustração é
aprender a re-
conhecer nos-
sa impotência
como seres hu-
manos. Que-
rer é importan-
te para alcan-
çar algo, mas
nem sempre
será possível”, analisa ela.
Para a psicóloga Aline, o mo-
mento demanda “flexibilidade
psicológica”, que reflete a “nossa
capacidade de resiliência”.
Uma lição que Isadora, filha
da secretária Maria Cristina Sil-
va dos Santos, de 46 anos, teve de
aprender. Sua festa de 15 anos es-
tava sendo planejada há um ano
e meio para o dia 11 de abril. Em
20 de março, elas viram que seria
impossível realizar o evento na
data marcada e tiveram de avisar
os 200 convidados sobre o adia-
mento. “Os filhos têm a visão de
que as mães resolvem tudo, mas
fugia das minhas possibilidades.
Foi difícil fazer ela se conformar,
até que compreendeu o que esta-
va acontecendo. Hoje, ela enten-
de a gravidade”, relata a mãe.
Maria Cristina diz que não há
como saber quando será a festa.

“Está tudo pago, mas não temos
como definir a nova data, se vai
ser este ano ou ano que vem.”

Reações. A psicóloga Lilian ex-
plica que as dificuldades em lidar
com as incertezas têm a ver com
o que ela descreve como acúmu-
lo de energia psíquica. “Imagine
que estamos caminhando sem-
pre para a frente, com ânimo pa-
ra trabalhar, ver amigos, fazer via-
gens. Quando aparece um obstá-
culo, tudo aquilo que estava aco-
modado psicologicamente co-
meça a exercer uma pressão.
Aqueles conteúdos que estavam
em ‘stand by’ começam a ganhar
força e gerar conflitos”, diz ela.
Aline complementa: “Podemos
sentir a frustração como qual-
quer outra emoção desagradável,
mas devemos refletir sobre os va-
lores fundamentais da vida”.
Isso não significa, contudo,
que os sentimentos de frustra-
ção não merecem o devido aco-
lhimento. Assim, além de pausas
para uma reflexão atenta sobre
os propósitos individuais mais
básicos, sobre as “verdadeiras
fontes de sentido da vida”, Aline
sugere formas práticas de lidar
com os sintomas de ansiedade,
como cuidar do sono, fazer exer-
cícios físicos e praticar técnicas
de relaxamento e respiração.
É o que Mariana Xavier, de 36
anos, tem tentado fazer, na medi-
da do possível. Engenheira, ela
cultiva a corrida como um de
seus hobbies. Para 2020, ela ha-
via se inscrito em três marato-
nas: a de Barcelona, em março; a
do Rio de Janeiro, em junho; e a
de Chicago, em outubro.
Agora, isolada com o filho de
3 anos e preocupada com o pai
doente, as corridas que faz na
esteira de casa não têm o pro-
pósito de atingir algum resulta-
do esportivo, mas proporcionar
sensação de bem-estar. “A ver-
dade é que acho que não vou fa-
zer nenhuma”, diz Mariana, res-
saltando que os eventos reú-
nem milhares de inscritos, o
que traria grandes riscos.
Sem a possibilidade de fazer
muitos planos, a psicóloga Aline
sugere criar metas de curto pra-
zo e buscar aprendizados para
os quais antes não havia tempo.
As recomendações de Lilian
são semelhantes. Para ela, é im-
portante manter uma rotina
mínima. Diante da imprevisibili-
dade causada pela pandemia e in-
tensificada ainda pela instabilida-
de política e econômica, manter
a regularidade do sono e da ali-
mentação é uma forma de preser-
var referências mais básicas para
o organismo. Pra ela, neste mo-
mento é fundamental “olhar-
mos para nós mesmos”.
Para Alice,
que segue na
Noruega, sem
perspectiva de
viajar ao Bra-
sil, não é fácil
manter uma ro-
tina, mas ela
tem se esforça-
do. Enquanto as aulas não come-
çam, ela segue atendendo no
mesmo bar, mas as escalas têm
sido divulgadas em cima da hora,
conforme as autoridades acom-
panham o avanço ou o recuo do
vírus. “Fico naquela ansiedade,
pois preciso de uma rotina para
ser produtiva”, conta.
Ela procura ocupar a mente de
diferentes formas para aliviar a
tensão. “Converso muito com
amigos, tento ler e até jogar em
aplicativos do celular”, conta.
Além disso, por mais enfadonha
que possa ser, a burocracia de-
mandada por questões como a li-
beração de auxílio do governo no-
rueguês durante a quarentena, a
matrícula na universidade e a
busca por uma nova residência
acabou por ajudá-la em sua luta
contra a lentidão do relógio. Um
mês passa e traz outro mês...

O MOMENTO DEMANDA
FLEXIBILIDADE
PSICOLÓGICA
E RESILIÊNCIA

NA


A pandemia modificou projetos; especialistas


explicam como lidar com as frustrações


QUERER

É PODER?

QUARENTENA


Caderno 2


Fallon dá novo rumo ao ‘The Tonight Show’ PÁG. H3


ACERVO

PESSOAL

KELLY SIKKEMA/UNSPLASH.COM

15 anos.
Isadora, ao lado
da mãe, Maria
Cristina, que
adiou sua festa

Vazio. Lidar com a frustração é reconhecer nossa impotência: “Querer é importante, mas nem sempre será possível", diz a psicóloga Lilian Wurzba

VICTOR

LLORENTE/NYT
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