O Estado de São Paulo (2020-06-23)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 23 DE JUNHO DE 2020 Especial H3


Caderno 2


1000 filmes do Merten


Dave Itzkoff / NYT


Na noite de 1.º de junho, Jimmy
Fallon se sentou atrás de uma me-
sa bem rústica num canto da Saga-
ponack, em Nova York, a casa de
campo que vem substituindo o es-
túdio do The Tonight Show.
Dava para sentir que a atmosfe-
ra estava muito tensa para um
programa de fim de noite que cos-
tuma ser leve e alegre; Fallon esta-
va de suéter e não parava de aper-
tar as mãos enquanto olhava para
as lentes da câmera de um iPho-
ne nas mãos de sua mulher,
Nancy Juvonen. Embora nada pa-
reça muito normal nos últimos
tempos, ele disse aos telespecta-
dores: “Não vou fazer um progra-
ma normal hoje à noite”.
Numa voz meio trêmula, Fal-
lon disse que estava arrependido
de ter usado blackface numa anti-
ga esquete do Saturday Night Live
que voltou a circular online nas
últimas semanas. Ele não se refe-
riu especificamente à morte de
George Floyd – a qual viria pouco
depois no programa, em conver-
sas com Derrick Johnson, presi-
dente e executivo-chefe da
Naacp, Don Lemon, âncora da
CNN, e Jane Elliott, educadora
antirracista. Mas Fallon falou
abertamente sobre os dias de agi-
tação civil que ainda estavam em
curso e a “violência absurda que
irrompe e rompe no país inteiro
e, agora, no mundo”.
Ele também disse que estava re-
fletindo consigo mesmo, tentan-
do entender o que deveria melho-
rar e como poderia usar sua voz
para ajudar a interromper o ciclo
de raiva, sofrimento e medo.
Como Fallon observou em
seus comentários, só desejar que
as coisas melhorassem não era su-
ficiente. “Não podemos dizer ‘Se-
ja a mudança’ e ficar só tuitando
‘Seja a mudança, seja a mudan-
ça’”, disse ele. “Qual é a mudan-
ça? Como eu mudo? Como faço
isso? O que tenho que fazer?”.
Mas, primeiro, disse Fallon, ele
tinha de lidar com os erros e as
inibições que o mantinham quie-
to. “Claramente, não sou especia-
lista”, disse ele. “Claramente,
sou apenas um apresentador de
talk-show de fim de noite. E já fiz
muita besteira.”
Se a era do coronavírus forçou
os programas noturnos a adotar
uma abordagem mais básica e re-
descobrir seus valores essen-
ciais, então Fallon, com partes
iguais de intenção, acidente e ne-
cessidade, vem dirigindo The To-
night Show
para um rumo mais
íntimo e pessoal.
Desde meados de março, quan-
do a produção do Tonight Show
fechou as portas na sede da NBC
no Rockefeller Plaza, Fallon apre-
senta uma versão caseira do pro-
grama em seus quase 10 mil me-
tros quadrados nos Hamptons.
Se seus espectadores estavam
passando por tempos tumultua-
dos e imprevisíveis, a resposta de
Fallon era oferecer a eles um con-
forto cômico e suave, ao lado da
mulher e das duas filhas do casal.
Fallon, que está com 45 anos
de idade, esperava que esse pro-
grama mais despojado, na com-
panhia da família, permitisse que
as pessoas o vissem como um ca-
ra atencioso e simpático, e não
como uma caricatura exagerada.
Como ele explicou numa en-
trevista: “É um lado que você não
conhecia – ‘Oh, eu achava que ele
era só um cara meio bobo e brin-


calhão que não ligava para nada’.
Mas eu me ligo em muitas coisas,
de verdade”.
Mas essa ambição foi severa-
mente comprometida por even-
tos recentes. Numa nação já ator-
mentada pela pandemia, Fallon
queria falar sobre os protestos
contra o racismo e a violência po-
licial; ele queria fazer um Tonight
Show que amplificasse os pedi-
dos de mudança que surgiam das
manifestações. Mas, mesmo an-
tes de ele se desculpar por seu
papel na esquete do blackface,
não estava claro se ele seria a pes-
soa ideal para a tarefa.
Fallon, como ele próprio admi-
te, é um artista que vive de diver-
são e frivolidade. Ele também é
vulnerável a um zeitgeist que po-
de se virar rapidamente contra
seu programa meio em cima do
muro – ele ainda é criticado por
desarrumar o cabelo do então
candidato Donald Trump, em
2016 – e favorecer outros apre-
sentadores que se sentem mais
confortáveis em defender posi-
ções mais firmes.
Tópicos como os assassinatos
de afro-americanos por policiais

são apavorantes e talvez não se-
jam muito propícios a um apre-
sentador que, ao mesmo tempo,
tenta explicar uma antiga ofensa
que perpetuou uma prática racis-
ta de longa data que continua a
reverberar no entretenimento,
na educação e na política. Uma
vez mais, os recentes esforços
do Tonight Show e outros progra-
mas de fim de noite para abordar
esses assuntos chamaram a aten-
ção para a pre-
dominância
de homens
brancos no
meio.
Embora Fal-
lon não quises-
se fazer um
programa que
fosse um pouquinho mais polari-
zador, ele também não queria fi-
car de fora deste momento.
“Você não pode assistir às notí-
cias e simplesmente voltar a fa-
zer o que estava fazendo”, ele me
disse. “Eu queria ler os sentimen-
tos das pessoas e dizer: ‘sim, es-
tou enfrentando as coisas. Estou
assistindo ao que você está assis-
tindo e também quero ajudar”.

O pedido de desculpas público
de Fallon foi elogiado como um
passo na direção certa, mas é ape-
nas um primeiro passo. Numa
época turbulenta, em que várias
instituições estão se engalfinhan-
do com o racismo estrutural e a
maneira como suas próprias fa-
lhas e inações contribuíram para
este quadro, artistas e telespecta-
dores estão querendo ver se The
Tonight Show e os programas de
fim de noite de
maneira geral
estão prontos
para cumprir
suas promes-
sas ou estão
simplesmente
surfando na
onda da causa.
Comediante, atriz e apresenta-
dora de TV, Aisha Tyler disse: “es-
te país é profundamente racista
há quatrocentos anos e não será
corrigido só porque alguém vai lá
e pede desculpas por uma piada
de vinte anos atrás”.
“As coisas só vão mudar”, con-
tinuou ela, “por causa das esco-
lhas que as pessoas continuam fa-
zendo ao longo do tempo”.

Uma evolução forçada. Com
mais de dois meses dessa versão
caseira do Tonight Show , a abor-
dagem teve pouco impacto no
público. Em meados de maio, o
programa alcançava, em média,
pouco mais de 2 milhões de teles-
pectadores por noite, em compa-
ração com os 3,6 milhões de The
Late Show da CBS.
Então, no final do fim de sema-
na do Memorial Day, o vídeo da
esquete do Saturday Night Live
com Fallon de blackface come-
çou a ganhar força no Twitter.
Originalmente transmitida em
março de 2000, a esquete imagi-
nava várias celebridades fazen-
do teste para apresentar um pro-
grama junto com Regis Philbin, e
Fallon usou maquiagem mar-
rom para fazer o papel de Chris
Rock, antigo participante do
SNL. (Um assessor de Rock dis-
se que ele não queria comentar).
A esquete também serve de
lembrete de como o blackface,
uma prática criada para ridicula-
rizar e humilhar pessoas pretas,
segue forte na comédia contem-
porânea.
Na manhã de 26 de maio, Fal-

lon descobriu que o vídeo tinha
ressurgido e viu sua caixa de en-
trada de e-mail cheia de mensa-
gens de apoio, que lhe diziam pa-
ra ignorar os julgamentos das mí-
dias sociais. Que julgamentos?,
ele se perguntou. Aí ele abriu o
Twitter e o Instagram e os encon-
trou repletos de hashtags como
#jimmyfallonisoverparty (algo
como “acabou a festa do Jimmy
Fallon”) e exigindo que ele fosse
cancelado.
Fallon também tinha alguns
defensores proeminentes: Ja-
mie Foxx escreveu um comentá-
rio no Instagram dizendo que
aquilo que Fallon tinha feito no
vídeo “não era blackface”. E
acrescentou: “A gente sabe que
momento está difícil. Mas isso
aqui já é demais”.
Mas Fallon sentiu que tinha
de responder às críticas com sua
própria voz. “Não posso deixar
que uma corporação me dê uma
declaração formal para ler”, ele
me disse. “Não posso pedir que
um relações públicas me escreva
uma declaração formal.”
The Tonight Show estava pas-
sando os melhores momentos
daquela semana e, então, naque-
la noite, Fallon postou um tuite
no qual escreveu que seu blackfa-
ce tinha sido “uma péssima deci-
são”, acrescentando: “Não tem
desculpa para isso”. E concluiu:
“Sinto muito por ter tomado es-
sa decisão inquestionavelmente
ofensiva e agradeço a todos por
me responsabilizarem”.
Essa poderia ter sido toda a ex-
tensão de suas declarações, mas,
até o final daquela semana, en-
quanto a onda de manifestações
se espalhava por todo o país, Fal-
lon concluiu que precisava falar
mais em seu programa. Olhando
para o seu erro no passado e para
a indignação generalizada con-
tra o racismo estrutural, ele me
disse: “Não posso não ligar as
duas coisas”. / TRADUÇÃO DE
RENATO PRELORENTZOU

É


a grande novidade da sema-
na. A Imovision está inician-
do uma parceria com a Glo-
boplay, que colocou em sua plata-
forma digital os filmes da distribui-
dora.
São 19 títulos, incluindo o melhor
filme do iraniano Jafar Panahi des-
de que foi impedido pelas autorida-
des de deixar o país. A parceria já
está valendo para quem quiser ver
A Economia do Amor , A Festa de Des-
pedida , Alabama Monroe , A Religio-

sa , As Montanhas Se Separam , A Sorte
Em Suas Mãos , Attila Marcel , Augusti-
ne , Capital Humano , De Longe Te Obser-
vo , Desajustados , Estados Unidos Pelo
Amor , Garota Sombria Caminha Pela
Noite , Instinto Materno , Bem Amadas ,
Os Anarquistas , Retorno a Ítaca , Táxi
Teerã , Terra Estranha. A seleção tem
suas pérolas – vamos a elas, lembran-
do que a plataforma oferece alguns
dias de testagem grátis.

A Sorte em Suas Mãos

O argentino Daniel Burman dirige o
compositor uruguaio Jorge Drexler
em sua estreia como ator. Pai de dois
filhos, Drexler amarga a separação. O
jogo vira escape e é na mesa do pôquer
que ele conhece uma mulher também
traumatizada pela separação recente.
O jogo do amor?

Alabama Monroe
Um casal meio alternativo, a tatuadora
e o tocador de banjo. Ele é ateu, graças
a Deus. Ela tem a tatuagem da cruz no

pescoço. Têm uma filha, e a menina,
aos 6 anos, mostra ter uma doença gra-
ve. O amor resistirá? O longa do belga
Felix Van Groeningen foi indicado pa-
ra o Oscar. Não levou – perdeu para A
Grande Beleza , do italiano Paolo Sor-
rentino –, mas tem qualidades.

A Religiosa
A versão de Guillaume Nicloux, de
2013, não a clássica de Jacques Rivette,
nos anos 1960. Pauline Etienne substi-
tui a jovem Anna Karina como Suzan-
ne Simonin, forçada à vida religiosa pe-
la família. A ausência de vocação gera
revolta, ela passa por vários tormentos
físicos, incluindo a violência sexual no
convento. Baseado na obra de Diderot,

com Isabelle Huppert impecável co-
mo a madre abusiva.

Retorno a Ítaca
O diretor francês Laurent Cantet e o
escritor cubano Leonardo Padura
concentram num terraço de Havana
um grupo de personagens represen-
tativos da diáspora cubana. Os que
permaneceram, os que saíram e volta-
ram. Histórias de amor – a Cuba.

Táxi Teerã
Jafar Panahi conseguiu colocar o Irã
dentro de um táxi, no qual ele pró-
prio é o motorista. Seus encontros
com “passageiros” revelam diferen-
tes segmentos da sociedade do país.

VICTOR LLORENTE/THE NEW YORK TIMES

Arrependido de blackface que fez no passado, ele reflete sobre seu papel como


comunicador e vem dirigindo seu programa para um rumo mais íntimo e pessoal


Com a família.
Versão caseira
do programa na
quarentena

FALLON

APRESENTADOR INICIA NOVO


CICLO DO ‘THE TONIGHT SHOW’


“NÃO PODEMOS DIZER
‘SEJA A MUDANÇA’ E
FICAR SÓ TUITANDO
‘SEJA A MUDANÇA’”

Volta ao mundo em 19 títulos

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