O Estado de São Paulo (2020-06-23)

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H6 Especial TERÇA-FEIRA, 23 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


P


ensando bem, não deveria ter
sido surpresa para mim a notí-
cia de que o primo Ruy já não
estava aqui. Sabia que andava doen-
te, e bem doente, o que não facilita-
va as coisas para quem se aproxima-
va dos 90 anos. Ainda assim, foi um
choque saber que o primo estava
morto. Fazia tempo que não tínha-
mos o que nesta era de lives se cha-
maria de encontro presencial. Há
meio século vivíamos com 600 qui-
lômetros de permeio, eu em São
Paulo, ele em Belo Horizonte; e
mesmo nessas cinco décadas não
foram tantas as ocasiões em que es-
tivemos juntos. Entre as lembran-
ças que a memória agora rebobina,
uma das mais fortes ficaria sendo a
do almoço dos seus 80 anos, quan-
do o vi, em ótima forma, ao lado da
Sonia, rodeado de filhos, netos, pa-
rentes, amigos. Contra qualquer
bom senso, o Ruy Werneck não me
dava a impressão de que pudesse
um dia nos faltar.
Sim, pois mesmo sem encontros
presenciais era alguém que a qual-
quer momento eu poderia achar, so-
lícito, generoso, na outra ponta da
linha. Foi preciso ele morrer para
que eu me desse conta da sem-ceri-
mônia com que o importunava com
a minha perguntação a respeito da

história e de personagens de nossa fa-
mília. E mesmo de outras: às voltas
com pesquisas para mais de um livro,
nunca hesitei em bater à porta eletrôni-
ca do primo Ruy. Na última vez, pou-
cas semanas atrás, paciente em mais
de um sentido, ele ainda me acolheu, e
pediu tempo até as coisas melhora-
rem. Não melhoraram mais.
*
Falei dele aqui em mais de uma oca-
sião. Na última vez, faz uma semana, ao
relembrar alguns de “meus velhinhos”
queridos, mencionei o Ruy na condi-
ção de herdeiro da paixão que tinha o
tio Jorge, seu pai, pela investigação ge-
nealógica. Curiosamente, vejo agora,
não me passou pela cabeça incluir o
primo na minha galeria de velhinhos
inesquecíveis. No que se refere ao adje-
tivo, bem que mereceria estar ali. Velhi-
nho? Não. O passar do tempo reduziu o
abismo de 14 anos entre nossas chega-
das ao mundo. Ficou muito para trás a
época em que, no fervedouro dos 50
netos da dona Dora e do dr. Hugo, nós
meramente nos cruzávamos, incomu-
nicáveis, no Roseiral, a casa da vovó na
fazenda, eu, pirralho, ele já rapaz, po-
dendo quem sabe sugerir um tio moço.
Não, embora muito querido, amigo fi-
delíssimo de meus pais, o que para sem-
pre me comoverá, o Ruy nunca seria
para mim um daqueles “velhinhos”: ao

se aposentar como engenheiro, não
quis a triste condição baldia de tantos
retirados; esteve, até o fim, movido por
uma fome vitalícia de saber por quais
meandros veio o nosso sangue.
Não cheguei a perguntar como foi
que se meteu nessa picada, mas quase
posso afirmar que terá sido na contem-
plação do que fazia o pai. Também eu
um bicho dessa espécie, embora mais
contemplativo que disposto a botar a
mão na massa, houve um momento, na
adolescência, em que me interessei pe-
lo trabalho de arqueologia familiar do
tio Jorge, materializada em enormes

folhas de papel heliográfico, nas quais
ele compôs uma laboriosa árvore ge-
nealógica. Dentro de uma gigantesca
bola, as informações se organizavam
em círculos concêntricos; no hemisfé-
rio norte, a perder de vista, os Furquim
Werneck de seu ramo paterno, e, no
sul, os Brandon Fernandes Eiras de
sua mãe, com raízes curtas, fincadas,
pouco adiante, no enigma de uns ju-
deus ingleses.
Caberia ao Ruy descerrar galhos ju-
daicos que, originários das profunde-

zas da Europa Oriental, ao longo de
muitos séculos se foram estendendo,
tortuosos, até Londres, cidade de
meus tetravós Maria Russell e Frede-
rick Manassah Brandon. Estes dois, no
século 19, viveram no Rio por algumas
décadas. De volta à Inglaterra, deixa-
ram aqui pelo menos duas filhas – uma
delas, a minha bisavó Evelyn, que vi-
rou Evelina ao se casar com sangue lu-
so-brasileiro. Ignorância ou preconcei-
to, o fato é que na família, antes das
luzes acesas pelo primo Ruy, jamais ou-
vi dizer que somos judeus. Depois, que
eu saiba, também não.
A mim, a revelação trouxe a vontade
de ir mais fundo, e talvez vá, se não me
falecerem saúde e pecúnia, como diria
Antônio Houaiss: viajar ao extremo co-
nhecido de nossa árvore, na Europa
Oriental, e a partir dali refazer em pou-
cos meses o caminho várias vezes secu-
lar de meus ancestrais até a Londres da
vovó Maria e do vovô Frederick.
*
Há quem mergulhe no passado da
família na esperança de desempoeirar
marqueses e barões, troféus genealógi-
cos a serem orgulhosamente ostenta-
dos em sociedade. Nunca foi esse o
intento do tio Jorge e do primo Ruy.
Nem teria sido o meu, se tivesse dado
desdobramentos práticos a uma curio-
sidade que nasceu comigo e que, mes-
mo platônica, não deixei atrofiar de
todo. Vontade de saber quem é que
veio antes, eis tudo – ainda que a aven-
tura de escarafunchar o passado conte-
nha o risco de achados pouco exaltan-

tes. Na minha árvore (como na sua)
com certeza se dependurou algum
bandido – se bobear, bandido miú-
do, sem brilhos de Al Capone. No
meu clã tivemos um barão, e me in-
comoda constatar que meu tetravô
Francisco Peixoto de Lacerda Wer-
neck, colecionador de fazendas, se
notabilizou também por haver ani-
quilado o quilombo de Manoel Con-
go. Era contra a escravidão, o cama-
rada, mas não por nobres razões:
fez as contas do custo/benefício e
achou que não valia a pena.
*
Mais de uma vez o primo Ruy
anunciou que estava para fechar o
seu balcão genealógico, gratificante
porém trabalhoso, e outras tantas
adiou o deadline. “A ideia de termi-
nar a coleta de dados em 31 de de-
zembro parece que vai afundar...”,
escreveu-me ele, dez anos atrás. Ain-
da bem que afundou, pois pude as-
sim adicionar dois netos, a Gloria e
o Valentim, aos 300 e tantos descen-
dentes da dona Dora e do vovô Hu-
go. Cinco anos atrás, ocorreu ao Ruy
a ideia divertida de contabilizar os
prenomes, quase 200, na árvore da
família, e então soubemos, entre ou-
tras curiosidades, que temos sete Pe-
dros, e meia dúzia de Bernardos,
Eduardos, Paulos e Rodrigos. É gen-
te que não acaba mais, e cruzo os
dedos para que haja ali alguém movi-
do pela mesma paixão que levou o
tio Jorge e o primo Ruy a retraçarem
nossos passos através do tempo.

Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO


Quando começou a se apresen-
tar em concursos de calouros,
ainda na adolescência, Anastá-
cia costumava ouvir que mulher
não tinha fôlego para cantar for-
ró. Tinhosa, como gosta de se de-
finir, deu de ombros. Queria ser
artista. “Eu pensava: se mulher
tem fôlego para parir, também
tem para cantar forró”, diz ela,
que agora completa 80 anos,
mais de 60 de carreira e, ainda
com fôlego, lança um EP come-
morativo com cinco canções
inéditas – uma delas criada com
Dominguinhos, com quem foi
casada – e participações de no-
vos e velhos amigos.
Anastácia, embora diga que
componha todos os dias, confes-
sa que não tinha certeza se lança-
ria algo para comemorar a data.
“Quem ainda liga para disco?”,
pergunta, ignorando as platafor-
mas digitais, que desde 29 de
maio, um dia antes de seu aniver-
sário, abrigam Anastácia 80 – La-
do A,
trabalho produzido por Ze-
ca Baleiro e Adriano Magoo.
O projeto é maior do que as
canções que já foram divulga-
das. Porém, as gravações tive-
ram de ser interrompidas por
conta da pandemia do novo coro-
navírus e serão retomadas assim
que tudo voltar ao normal.
Nesse Lado A , Anastácia assi-
na duas parcerias com Baleiro: o
baião-canção O Sertão Está Cho-
rando
, cantada em dueto com
Amelinha, e o xote Venha Logo ,
com participação de Chico Cé-
sar. “Ela escreve o tempo todo, a
mulher é danada (risos) ”, diz Ba-
leiro, que afirma que, ao coman-
dar o trabalho, se preocupou em
manter a essência da artista no


forró, mas com toque de moder-
nidade nos arranjos.
Venceu a Solidão , com vocal de
Mariana Aydar e Mestrinho na
sanfona, é parceria inédita de
Anastácia e Dominguinhos, com
quem ela foi casada entre 1967 e


  1. A melodia estava com a
    compositora, que colocou letra
    quando Dominguinhos estava
    doente – ele morreu em 2013,
    aos 72 anos, vítima de um câncer
    de pulmão. “Pensei na solidão
    que uma doença traz, ele naque-
    le hospital. Gravei só agora”, con-
    ta Anastácia, dizendo ainda ter
    outras músicas inéditas do anti-
    go companheiro guardadas, es-


perando por letra.
Poderia ter mais, mas colocou
fogo em várias fitas cassetes
quando o casamento terminou.
“Na hora da raiva...”, lamenta.
Baleiro conta que a emoção foi
grande ao gravar a faixa. “A músi-
ca é linda e emocionante. Maria-
na caiu no choro. Foi comovente
para todos nós. Dominguinhos é
um melodista único”, diz.
A faixa A Saudade Me Trouxe
Pelo Braço , que Anastácia assina
com a filha, Liane, tem a partici-
pação de um antigo companhei-
ro de sanfona e estrada: o ala-
goano Hermeto Pascoal, que
era o sanfoneiro da Rádio Jor-
nal do Commercio, do Recife, e
a acompanhava quando ela ti-
nha 14 anos de idade. Outra que
ela fez com a filha é Contando as
Estrelas , que gravou acompa-
nhada de Roberta Miranda.
“Foi uma festa receber todos es-
ses convidados. Uma verdadei-
ra comemoração”, comemora a
compositora.
Zeca Baleiro concorda que é
preciso festejar a data. “Eu sou
suspeito porque sou muito fã,
acho Anastácia imensa. Vamos
celebrá-la – em vida – de prefe-
rência”, diz o músico, que conta
ter conhecido o trabalho da com-
positora por meio das gravações
de Gilberto
Gil – ele gra-
vou Só Quero
Um Xodó e Te-
nho Sede , am-
bas dela e de
Domingui-
nhos. Hoje,
são amigos e
parceiros em cinco canções.
O Lado B – ainda sem previsão
de lançamento – terá as partici-
pações de Alceu Valença, Leni-
ne, Geraldo Azevedo, Almério,
entre outros.

Rainha do forró. Nascida no Re-
cife (PE), Lucinete Ferreira, seu
nome de batismo, tornou-se

Anastácia quando chegou a São
Paulo, aos 20 anos, junto com a
família. Conciliando o desejo de
cantar com o emprego na com-
panhia aérea Vasp, gravou o pri-
meiro LP, que saiu com o título
de Anastácia no Torrado. Nem
ela sabia quem era a pessoa do
título. “Um amigo me disse que
havia ouvido o
disco, que era
minha voz, mi-
nha foto, mas a
nome da canto-
ra era Anastá-
cia. Corri para
tirar a história
a limpo”, diver-
te-se hoje, esclarecendo que a
troca foi obra de seu primeiro
empresário, o Palmeira, que
achava seu nome de batismo
muito comum. “No Nordeste
tem muito nete. Lucinete, Mari-
nete, Ivonete...”
De lá para cá, Anastácia atuou
como locutora, radialista, atriz
e comediante, e ganhou o epíte-

to de Rainha do Forró. Mas foi
como compositora, gravada
por nomes como Noite Ilustra-
da, o primeiro a gravar, Luiz
Gonzaga, seu padrinho musi-
cal, Angela Maria, Gilberto Gil,
Gal Costa e Nana Caymmi – e
de sua parceria com Domingui-
nhos – que ela se consagrou. Aju-
dou a difundir a música nordes-
tina no Sudeste, rompeu a bar-
reira do machismo e, ao lado de

Marinês, Almira e Clemilda,
abriu o caminho para nomes co-
mo Elba Ramalho, nos anos
1970, e Lucy Alves, mais recente-
mente. “Valeu a pena. Faço o
que gosto. Sou muito grata por
tudo. Tenho orgulho de ter nas-
cido no Nordeste, no Brasil”,
diz, com entusiasmo.
E, como o fôlego ainda está em
cima, Anastácia vai lançar mais
uma gravação. Trata-se de Meu
Santo é Brasa – que está em pré-
venda na Amazon (com lança-
mento para dia 26) –, que ela fez
com Jackson do Pandeiro nos
anos 1980, mas esqueceu. “Há al-
guns anos, Lucy Alves pediu auto-
rização para gravá-la, e pensei:
nunca fiz música com Jackson.
Mas não é que era minha mes-
mo?”, ri, explicando que tem qua-
se 800 músicas. “Às vezes, ouço
na voz de outro artista e me per-
gunto: fui eu que fiz essa?”, conta.
Agora, é sua vez de cantar a com-
posição que, oportunamente, fa-
la das festas e santos juninos.

AOS 80 ANOS, CANTORA


LANÇA EP COMEMORATIVO


ALCEU VALENÇA, LENINE
E GERALDO AZEVEDO
ESTARÃO NO ‘LADO B’, QUE
AINDA SERÁ LANÇADO

Humberto Werneck


ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

l]


O XODÓ DE


ANASTÁCIA


Um arqueólogo do sangue


ANASTÁCIA 80 ANOS – LADO A
NAS PLATAFORMAS DIGITAIS

EP

ANASTÁCIA

AMOR E MÚSICA

Produzida por Zeca Baleiro e Adriano Magoo, obra tem


participações especiais e música inédita de Dominguinhos


LUCAS ARAUJO

A paixão daquele primo:
retraçar os passos de sua
gente através do tempo

Ao lado de Dominguinhos, Anastá-
cia fez quase 250 canções. A pedi-
do do Estadão , ela contou como
nasceram duas delas, que vira-
ram clássicos da música brasilei-
ra nas vozes de outros artistas.

l De Amor Eu Morrerei
(Gal Costa – 1973)
“Uma das nossas primeiras par-
cerias. Estava em um hotel em
Aracaju, em 1967. Domingui-
nhos, no quarto da frente, tocan-
do sanfona. Na hora, peguei o
papel e fiz a letra para aquela
melodia. Bati no quarto dele para
mostrar. Era uma declaração de
amor. Deu certo. Foi aí que nossa
história começou.”

l Só Quero Um Xodó
(Gilberto Gil – 1973)
“Fizemos essa música para a Ma-
rinês gravar, em ritmo de arras-
ta-pé. Foi ela que lançou. Depois,
veio a gravação de Gil e foi aque-
le sucesso enorme. Levou o nos-
so trabalho para um público
maior. Essa canção já tem mais
de 400 gravações no mundo to-
do. É um orgulho para mim.”

Celebração.
‘Foi uma festa
receber todos
esses convidados’,
comemora
Anastácia
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