O Estado de São Paulo (2020-06-24)

(Antfer) #1

Maria Fernanda Rodrigues


Ler é um ato solitário, e quem já
participou de um clube do livro
ou assistiu ao filme O Clube de
Leitura de Jane Austen, por exem-
plo, sabe como a leitura compar-
tilhada e a escuta podem ser
transformadoras.
Cleide Tomazini Aichele, de
78 anos, nunca foi muito de ler,
mas, desde que começou a fre-
quentar o Clube de Leitura 6.0
assim que ele foi inaugurado,
um pouco antes do início da qua-
rentena, no Núcleo de Convivên-
cia de Idosos do Centro de Assis-
tência e Promoção Social Nosso
Lar, na Mooca, isso mudou.
Foram dois encontros presen-
ciais no início do projeto, do
qual só pode participar quem ti-
ver mais do que 60 anos, e então
o isolamento começou. Eles pas-
saram a se reunir online sema-
nalmente para discutir a leitura
proposta pelo clube criado pelo
Observatório do Livro – que es-
tá presente em 60 cidades do Es-
tado e, se não fosse pela pande-
mia, já estaria em 100 municí-
pios. Em uma semana, os partici-
pantes conversam sobre o e-
book que leram. Na outra, sobre
o audiolivro que ouviram.
A leitura está ajudando Clei-
de, que entrou mal na quarente-
na. Ela tinha perdido o compa-
nheiro que estava ao seu lado ha-
via 60 anos e levado um tombo
feio no dia 11 de março. “Eu esta-
va mal e percebi que meu orga-
nismo não estava reagindo. Não
podia sair, nem estava disposta
a sair. Ler está me ajudando a
passar o tempo, a refletir e a for-
mar opinião. Isso tem ocupado
a minha cabeça. Meu ânimo está
melhor e sinto que estou com
mais coragem”, diz.
Nas discussões, ela conta, ain-
da prefere apenas ouvir. E só is-
so já é enriquecedor. “Como li
pouco na vida, não tenho facili-
dade de comentar os livros, mas
é muito interessante perceber
que às vezes a leitura de outra
pessoa não bate com a sua.”
Nesta quarentena, entre os li-
vros que ela leu está O Dilema do
Porco-espinho, de Leandro Kar-
nal. Leu também Machado de As-
sis. “Hoje sinto que devia ter co-
meçado a ler antes, mas nunca é
tarde”, diz Cleide, que tem gosta-
do muito de audiolivro também
pela possibilidade de fazer duas
coisas ao mesmo tempo. “É uma
coisa maravilhosa”, finaliza.
Ex-presidente da Biblioteca
Nacional e jornalista especiali-
zado em projetos de formação
de leitores, Galeno Amorim foi
quem idealizou o Clube de Lei-
tura 6.0, que está sendo realiza-
do com a Secretaria de Desen-
volvimento Social do Estado de
São Paulo. Para ele, além do en-
tretenimento de qualidade e da
interação entre as pessoas, ler
livros de literatura durante a
quarentena pode ajudar, princi-
palmente os mais velhos, a lidar
melhor com temas como soli-
dão, angústia, insegurança e me-
do – tão presentes nesses dias.
Mas ele vai além. “Um dos
principais benefícios de se com-
partilhar a experiência da leitura
é a possibilidade real de trocas,
que se dão em função da visão de
mundo de cada um, com seus
olhares distintos sobre o mesmo
assunto e os lugares de fala de
cada leitor.” Ele completa: “É as-
sim que a gente cresce e vai se
tornando um leitor cada vez
mais exigente”. Outro benefício,
segundo ele, é de ordem prática.
“O compromisso assumido com
o grupo é, muitas vezes, essen-
cial porque nos ajuda a seguir em
frente, a não desistir da leitura.”
Frequentadora assídua do
Clube de Leitura da Biblioteca
São Paulo há cerca de quatro
anos, Alice Seixas, de 79 anos, só
está conseguindo acompanhar


as discussões porque elas estão
ocorrendo online – e não só pelo
coronavírus, mas também por-
que ela precisou ir para o Paraná
para dar uma assistência à filha.
“Como não podemos retirar o li-
vro, a biblioteca nos manda o e-
book e nos encontramos online
para discuti-lo. Funciona, mas a
interação é diferente: falta calor
humano. Acho que as pessoas fi-
cam mais inibidas”, comenta.
Ela, que sempre leu muito, sente
que sua concentração piorou
com o decorrer da quarentena,
mas tem aproveitado para se fa-
miliarizar mais com seu Kindle.
Alice sabe o bem que a leitura
faz. “Sem dúvida, ela ajuda mui-
to. O tempo que lemos esquece-
mos do mundo, viajamos, nos
afastamos um pouco das notí-
cias ruins.” E ela gosta da expe-
riência da leitura compartilha-
da. “Ler é muito solitário. Quan-
do você lê sabendo que vai com-

partilhar a sua experiência, aca-
ba lendo com outros olhos. E
ouve o que os outros apresen-
tam. Isso nos estimula e enri-
quece. Nesse momento, é ainda
mais importante.”
Pierre Ruprecht, diretor exe-
cutivo da SP Leituras, organiza-
ção social que administra a Bi-
blioteca São Paulo e a Villa-Lo-
bos, acredita no poder de forma-
ção de leitores dos clubes. “O
clube funciona dentro desta ló-
gica: você enriquece sua visão e
experiência de leitura por meio
da experiência do outro. É co-
mo se você entrasse no texto
com uma lanterna para desven-
dar as maravilhas que há lá den-
tro e de repente entram outras
20 outras lanternas com você.”
Para Ruprecht, o segredo de
um bom clube do livro é se afas-
tar da abordagem acadêmica.
Não é para funcionar como uma
aula, ele diz, e teoria literária,

aqui, não é mais importante do
que a vivência de cada um. As
duas bibliotecas ainda estão
aprendendo a fazer essa progra-
mação virtual, e estão fazendo is-
so com a Companhia das Letras.
Os grupos dos encontros pre-
senciais não eram grandes – eles
recebiam cerca de cinco pes-
soas por evento. Em março, já
online, 8 pessoas participaram.
Em abril, também. Em maio o
número saltou para 22, com re-
gistros de participantes de ou-
tras cidades também.
O fato de ser virtual, de não
demandar deslocamentos, aju-
dou na ampliação do público,
mas Pierre Ruprecht também
acredita que o momento é propí-
cio para a leitura. “Por causa des-
sa gigantesca disrupção que a
pandemia provocou, as pessoas
aproveitaram o momento para
tentar responder a perguntas
que não conseguiam antes. Elas

estão se dando o direito de expe-
rimentar coisas novas – e a leitu-
ra compartilhada é uma delas.
As pessoas estão buscando a lei-
tura e a leitura tem se revelado
uma possibilidade muito rica de
as pessoas se repensarem. Isso
tem a ver com esses tempos.”
Os encontros voltam a ser pre-
senciais, quando for possível.
Mas é provável que eles tam-
bém continuem sendo realiza-
dos virtualmente.
Juliana Gomes, Juliana Leuen-
roth e Michelle Henriques, do
Leia Mulheres, maior clube do
País, feito coletivamente, espalha-
do por todos os Estados, dedica-
do à leitura de obras de escritoras
e sem fins lucrativos, avaliam que
as discussões mudam muito do
online para o presencial. “E isso
torna os encontros presenciais
ainda mais importantes depois
disso tudo”, ressaltam. No onli-
ne, tem sido mais um momento

de escuta do que de troca. “Nem
todos se sentem à vontade e os
aplicativos para esses encontros
algumas vezes não contribuem
para dinâmica. Por outro lado, pa-
ra muitas pessoas foi um momen-
to de se desligar do mundo e con-
versar sobre livros.”
Embora a preferência seja pe-
los encontros cara a cara, surgiu
a ideia de fazer um festival reu-
nindo mediadoras e leitores dos
clubes de todas as cidades. A pri-
meira edição vai ser no início de
julho e a ideia é que esses encon-
tros virtuais sejam mensais. So-
bre a leitura compartilhada, elas
dizem que ela ajuda não só a ler
mais, mas a compreender mais o
mundo e a ter mais empatia. “Par-
ticipar de um clube não é só falar,
mas ter esses momentos de escu-
ta e discussão que trarão ainda
mais conteúdo para o livro. Além
disso, muitas participantes se
tornaram amigas”, comentam.

NA NEIDE RIGO/ESTADÃO


LER E

DIVIDIR

COMO MONTAR UM
CLUBE DE LEITURA

QUARENTENA


Clubes de leitura aproximam pessoas


em isolamento da literatura, distraem e


proporcionam trocas de experiência


ACERVO PESSOAL

Paladar


Aprenda a fazer almoço típico junino PÁG. H3


ACERVO PESSOAL

A


pedido do ‘Estadão’, o
coletivo Leia Mulheres
preparou um roteiro
para quem quer começar um clu-
be de leitura. A primeira pergun-
ta a se fazer é: Qual é seu objeti-
vo? “Se for fama e virar influen-
cer, talvez não seja o projeto
mais indicado, pois mediar clu-
bes significar ouvir mais do que
falar”, explicam as idealizadoras.
É preciso pesquisar, planejar, se
organizar. Ter em mente se será
um clube para amigos ou algo
mais amplo, e se será temático.
Veja dicas, passos e orientações.





Será online ou presencial?
Se for presencial, convide
alguém para ajudar – nem
toda discussão é tranquila e ter
parceria na mediação ajuda a ga-
nhar confiança ao longo do tempo.





Faça o convite para o clu-
be com uma boa antece-
dência. Um dia antes, per-
gunte aos amigos se eles irão.





Escolha um livro de fácil
acesso, que tenha em
biblioteca ou custe pou-
co. A linguagem também vai in-
fluenciar quem vai ao clube.





Quantidade não é qualida-
de. Não é porque um clu-
be é cheio que o debate é
bom. A principal coisa nos clubes
é o momento de escuta, de troca.
É um exercício de empatia.





Mediação não é palestra.
Você vai precisar enten-
der que sua opinião não
precisa prevalecer e que, quando
alguém não gosta do livro que a
maioria gostou, isso pode deixar
o clube mais divertido.





Você está preparado para
adaptar um ato solitário
para algo coletivo? Está
preparado para pensar mais coleti-
vamente do que individualmente?





Clubes de leitura não são
aulas. Não seja acadêmi-
co. Ter uma base acadê-
mica dos temas pode agregar,
mas saiba dosar. Em clubes aber-
tos ao público, uma conversa aca-
dêmica pode inibir as pessoas.





Para muitos, o clube po-
de funcionar como uma
terapia, um local de cho-
ro, de conversa, de abraço. Se
quiser montar algo mais acadê-
mico, deixe claro desde o início.





Esteja aberto a encon-
trar pessoas incríveis.
E, antes de tudo, divir-
ta-se: ler pode e deve ser muito
divertido, ainda mais em conjunto.

Leia Mulheres. Juliana Gomes (E), Michelle Henriques e Juliana Leuenroth organizam um festival para reunir os clubes

Alice. Leitora assídua no clube da biblioteca

DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO - 13/3/2018

Cleide. Ela começou a ler recentemente, depois do incentivo do Clube 6.0

%HeH1rmesFileInfo:H-1:202 0062 4: QUARTA-FEIRA,24DEJUNHO DE2020 OESTADODES. PAULO

Free download pdf