O Estado de São Paulo (2020-06-24)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:C-5:20200624:
O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 24 DE JUNHO DE 2020 Especial H5


Roberto DaMatta


ALERTA PARA TEMPOS


F


oi com essas palavras que me
informaram do gigantesco
ataque de cupins e brocas a
minha casa. “Como o de Pearl Har-
bor?”, perguntei ao Sr. Olem – o do-
no da firma descupinizadora que
contratei. “Seria tão poderoso, pros-
segui, quanto o dos japoneses que
iniciaram a contraofensiva america-
na no Pacífico?” “Sim Senhor! Cu-
pins e brocas são insetos desafora-
dos, mas o nosso ataque será violen-
to!”, completou o Sr. Olem, debaixo
dos olhares confiantes de Tinho e
Tonho, seus ajudantes-soldados,
que usavam avançadas armas quími-
cas para liquidar a praga.
“Dentro em breve a casa vai estar
livre!” Reiterou o Sr. Olem quando
me mostrava uma parede arruinada
pelos insetos coletivistas.
*
Eu moro nesta casa desde 1974.
Ela concretiza uma vida devotada ex-
clusivamente ao trabalho intelec-

tual. Por meio dele, exerço o magisté-
rio e a crônica jornalística, atividades
resultantes de pesquisas e livros escri-
tos no figurino professoral classificado
por tio Marcelino (que foi fiscal de ren-
das – um belo emprego, conforme di-
zia) como “um sacerdócio”. Uma quali-
ficação precisa porque, como agora
constato, professor que sou por mais
de 60 anos, dar aulas não pode ser um
emprego porque o ensino requer “tra-
balho”: vocação e amor. Algo estigmati-
zado num sistema até anteontem sus-
tentado por escravidão negra. Ade-
mais, tenho convivido com a pecha de-
linquente segundo a qual “quem sabe
faz, quem não sabe ensina!”. Eis uma
“inocente” barbaridade explicativa do
porquê somos governados por ladrões
e loucos e como o chamado “campo
político” virou uma sentina.
*
Voltemos, porém, ao ataque dos cu-
pins que comeram paredes e várias
obras de Marx, Engels, Morgan e ou-

tros mestres e, de sobremesa, torna-
ram pó suas estantes. Já as brocas, me-
nos intelectuais, atacaram um armário
de roupas. Resultado: uns 100 livros
devorados por cupins e estragos sérios
e irreparáveis na minha obsoleta apare-
lhagem de som.
Na medida em que Tinho e Tonho,
suavam removendo quilos de cupins
ainda vivos como um político corrup-
to nacional, o Sr. Olem me perguntou
se eu conhecia a história de um padre
que havia decifrado a língua das ara-
nhas e com elas trocado ideias e até
mesmo a elas sugerido um regime po-
lítico capaz de organizá-las – o regime
republicano de governo...
Pasmo, logo percebi que o Sr. Olem
repetia o conto de Machado de Assis, A
Sereníssima República, publicado na cole-
tânea Papéis Avulsos, em 1882. Neste con-
to, Machado se equipara a Kipling e ante-
cede a “metamorfose” de Kafka, quando
narra como um cônego rompe a barreira
da comunicação entre espécies, um mar-

co da divisão entre natureza e cultura,
dialogando com aracnídeos.
“Como assim?”, questionei.
“Bem, doutor, o Tonho e o Tinho di-
zem que trocam língua com brocas e
cupins. Falam que eles têm uma casa
real, milhares de nobres e milhões de
operários, igualzinho a gente. O proble-
ma – continuou – é que os cupins se
pensam como sem organização social
quando, de fato, são superorganiza-
dos. Por isso, Tonho e Tinho deles ou-
vem muitas queixas, pedidos e receitas
salvadoras. Esse coletivo dos cupins,
falou o Sr. Olem, é uma maluquice.”
“Maluquice, completei eu num desa-
gradável impulso, é imaginar que eles
falam com insetos!”
“Tem mais: o Tonho sugere manter
a velha hierarquia de 50 milhões de
anos, enquanto o Tinho fala em igual-
dade, individualismo e iniciativa. Ele
quer liquidar o familismo dos cupinzei-
ros e o compadrio das bocas.”
“E como ficamos?”, perguntei, certo
de que estava ouvindo mais um louco,
este, felizmente, apenas um matador e
não um presidente criador de cupinzei-
ros.
“Bem, doutor, o Tinho diz que tem

tentado, mas sabe como é complica-
do adotar costumes que chegam de
fora. Ele ouviu que alguns membros
da nobreza cupinzeira querem mu-
dar seus hábitos com leis, igualzi-
nho as aranhas do livro que o senhor
falou. Seus costumes, porém, de tão
enraizados, ficam invisíveis para
eles. Como pensam que seus anti-
gos valores não têm peso, acham
que as novidades políticas caem
num vazio...”
Cupins querendo democracia e
brocas socialistas? Exterminadores
falando com insetos?
Minha pausa para entender essa ex-
traordinária narrativa foi interrompi-
da pelo rotineiro almoço. Sentei-me
e pensei em entrevistar os ajudantes
que falavam com cupins. Seria uma
belo estudo sociopsicológico. Mas a
boa comida, a certeza de que a velha
casa estava livre dos cupins e a obriga-
ção de escrever esta crônica fizeram
com que, como os cupins, eu deixas-
se para trás a imaginação.
*
PS: Volto, queira o princípio de
realidade, a este espaço, pior e me-
lhor, em 5 de agosto.

Sem intervalo


l]


ERIC GAILLARD/REUTERS

Eliana Silva de Souza


Depois de muitos pedidos dos
fãs da série Lúcifer, a Netflix
divulgou a data de estreia da
quinta temporada da atração.
Em um post no Twitter, fica-
mos sabendo que os novos epi-
sódios chegarão ao catálogo
da empresa no dia 21 de agos-
to. E tem mais. A operadora de
streaming confirmou na ter-
ça-feira, 23, que vem aí a sexta
e última temporada. Uma
grande notícia, principalmen-
te para uma série que quase foi
cancelada de vez.
Como é de hábito, a posta-
gem na rede social veio acom-
panhada por cenas quentes,
com Tom Ellis na pele do terrí-
vel e charmoso diabo. “Olá, fãs
de Lúcifer. Vi que vocês estão
quietos hoje, aconteceu algu-
ma coisa? Ah sim, a temporada


5 chega dia 21 de agosto! (me-
lhor ir revendo tudo lá no meu
site pra se preparar)”, dizia o
texto na rede social.
E, para quem quer conhecer
a série ou para os que estão
com saudade e querem rever
algum episódio, todas tempo-
radas anteriores estão disponí-
veis no catálogo da Netflix,
que adquiriu os direitos da pro-
dução logo após ser dispensa-
da pelos produtores originais.
É a história do diabo que, can-
sado de comandar o inferno,
decide abandonar o posto e
passa a viver na Terra. Lúcifer
Morningstar é dono de uma ca-
sa noturna em Los Angeles.
Após um crime, ele começa a
trabalhar para a polícia.

Crise. Cantona interpreta ex-chefe de RH desempregado

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Caderno 2


Eric Cantona, ex-craque francês de futebol, vive decadência


do mercado de trabalho na série ‘Recursos Desumanos’


CRUÉIS


Açúcar
(Brasil, 2017.) Dir. e roteiro de Renata Pi-
nheiro e Sérgio Oliveira (ela também é
diretora de arte), com Maeve Jinkings,
Magali Biff, Dandara de Morais, José Ma-
ria Alves.

Luiz Carlos Merten

Maeve, dos filmes de Kleber
Mendonça Filho, volta ao deca-
dente engenho de açúcar da fa-
mília para impedir que os traba-
lhadores se apossem da casa e
das terras. Num clima de realis-
mo mágico, ela é confrontada
com o próprio passado e com
costumes arcaicos da região,
que remontam à escravidão. Um
filme rico em camadas. Fasci-
nante, apesar das imperfeições.
CURTA!, 22H20. COL., 78 MIN.

Filmes na TV


Pedro Venceslau


Recursos Desumanos foi um infe-
liz trocadilho escolhido pela
Netflix para substituir em por-
tuguês o título original da série
francesa Derrapagens, que com-
bina muito mais com a obra.
Com apenas seis episódios, a
produção é um grito de guerra
contra o capitalismo selvagem
e tem como ator principal uma
figura que é a encarnação da re-
beldia contra o sistema: o mito-
lógico Eric Cantona.
Para quem não se lembra, no
dia 25 de janeiro de 1995, ele
protagonizou, como jogador
de futebol, um incidente que
ficou marcado na história da
Premier League inglesa. Expul-
so no empate por 1 a 1 entre
Crystal Palace e Manchester
United, o atacante francês
Eric Cantona, considerado
um dos melhores jogadores da


história do Manchester, rea-
giu à provocação de um torce-
dor xenófobo e correu até as
arquibancadas, onde deu uma
voadora no sujeito (um jovem
hooligan fascista).
Se não fosse pelo pavio curto
e o gosto por brigas, Cantona
poderia ser considerado um
Dr. Sócrates britânico. Era um
pensador de esquerda inquieto
e um monstro em campo, idola-
trado pela torcida e leal ao seu
time. O craque, porém, se apo-
sentou cedo e, para espanto de
seus fãs, tornou-se um ator de
primeira linha. Em Recursos De-
sumanos, Cantona está no cen-
tro de uma história baseada em
fatos reais que parece um filme
de Ken Loach, o diretor que, em
2009, produziu o longa À Procu-
ra de Eric (no qual o ex-jogador
interpreta a si mesmo).
A narrativa começa na pri-
são, com o personagem princi-
pal relembrando os fatos que o
levaram até lá. Alain é um ho-
mem de 55 anos que está desem-

pregado há seis e vê as contas se
acumularem. Ele foi demitido
após 25 anos como chefe de RH
de uma empresa. Com o segu-
ro-desemprego chegando ao
fim, Alain passou a fazer bicos e
ser humilhado em serviços bra-
çais. A pobreza bate à sua porta.
Amargurado, deprimido, ran-
coroso e revoltado, o protago-
nista vê a decadência social co-
mo irreversível para pessoas da
sua idade. Não há espaço para
velhos no mercado de trabalho.
Os primeiros três episódios
mergulham fundo na constru-
ção do personagem e seu entor-
no: a esposa (30 anos de matri-
mônio), os filhos, os colegas de
trabalho. A salvação surge na
forma de um inusitado convite
para disputar uma vaga de alto
escalão em uma multinacional
francesa em crise.
A missão do escolhido como
gerente será justamente demi-
tir mais mil pessoas de uma
unidade da empresa que passa
por um acelerado processo de

automatização. O local é um
barril de pólvora. Os operários
estão mobilizados e fechados
com o sindicato da categoria e
a comunidade local está em pé
de guerra com a empresa. O
cenário é descrito como “bru-
tal e extremo”.
A série retrata o mundo cor-
porativo como um ambiente
cínico, desumano, frio e sádico.
Os discursos motivacionais es-
condem as verdadeiras inten-
ções de exploração total em
busca do lucro. As verdadeiras
intenções estão nas entreli-
nhas de um discurso liberal em-
balado a vácuo. Do terceiro epi-
sódio em diante, a série ganha
outra dinâmica, com mais ação
e violência. E um certo gosto de
vingança da classe operária.
O gancho é o método sui ge-
neris escolhido pelo CEO da
multinacional para testar os
candidatos e escolher aquele
que melhor se comportar em
uma ambiente de extrema pres-
são: a simulação de um seques-
tro e a consequente negociação
com os reféns.

‘Lucifer’ tem


confirmada a


sexta e última


temporada


Que dupla!
Entre as inúmeras lives pro-
gramadas com artistas e
outras personalidades, tanto
no campo da cultura quanto
no da ciência, eis que surge
a Draw e Brown, que une em
um bate-papo o médico
Drauzio Varella e o rapper
Mano Brown. Será um mo-
mento bem interessante,
com os dois falando sobre o
momento atual, com a pan-
demia de coronavírus distan-
ciando fisicamente todo mun-
do, mas, ao mesmo tempo,
possibilitando a reflexão so-
bre temas como racismo,
música e a desigualdade so-
cial. A live vai ao ar nesta
quarta-feira, 24, a partir das
18h, no canal oficial de Drau-
zio Varella, no YouTube.

Entrando na rede
Tradicional sala de cinema
dentro da Cidade Universitá-
ria, o Cinusp também entra
no esquema de exibição de
filmes de forma online. E a
estreia será nesta quarta-fei-
ra, 24, com a o curta-metra-
gem documental A Mulher
da Casa Arco-íris, que acom-

panha Mãe Dango, sacerdotisa
do candomblé de Angola. Fil-
me poderá ser visto às 16h e,
às 19h, público poderá partici-
par de debate com o diretor
Gilberto Sobrinho. A exibição
será no Facebook e no canal
do YouTube do Cinusp.

Sabedoria popular
Estreia nesta quarta, 24, às
19h45, no Canal Brasil a série
Ouro Velho, Mundo Novo. Dirigi-
da por Cláudio Assis e Lírio
Ferreira, filme mostra como as
rimas foram responsáveis por
conduzir, ao longo dos anos, a
sabedoria popular centenária
da região na divisa entre Per-
nambuco e Paraíba.

Pistas e provas
A série The Mentalist acaba de
estrear na Globoplay. Protago-
nizada por Simon Baker, que
vive Patrick Jane, que um dia
foi um falso médium. Ao ter a
mulher e filha mortas por um
serial killer, ele decide usar
suas habilidades de observa-
ção e manipulação psicológica
para ajudar a polícia, e tentar
pegar o assassino. As sete
temporadas estão no catálogo.

DESTAQUE
BOULEVARD FILMES

Silêncio/
Silence
(EUA, 2016.) Dir. de Martin Scorsese, com
Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Nee-
son, Tadanobu Asano.

Os filmes que Scorsese demora
anos para fazer – Gangues de No-
va York, esse – terminam sendo
os piores. Dois jesuítas portugue-
ses procuram o mentor da ordem
que desapareceu no Japão do sé-
culo 17. Scorsese baseou-se num
livro, mas é o remake de um filme
antigo, O Cristo de Bronze.
TEL. CULT, 12H40. COL., 161 MIN.

O Contador/
The Accountant
(EUA, 2016.) Dir. de Gavin O'Connor, com
Ben Affleck, Anna Kendrick, J.K Simmons,
Jon Bernthal.

A história do garoto autista cuja
habilidade com os números o torna
contador de organizações crimino-
sas. De repente, ele se vê no centro
de uma caçada humana e tem de
usar a seu favor o que poderia ser
dificuldade – a inabilidade para se
relacionar socialmente. Como thril-
ler, é eletrizante, com cenas ótimas.
GLOBO, 22h18. COLORIDO, 128 MIN.

Ataque, violência, destruição

Free download pdf