O Estado de São Paulo (2020-06-24)

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H6 Especial QUARTA-FEIRA, 24 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Leandro Karnal


l]


RESILIÊNCIA


Capacidade depende de genética, história pessoal e da situação do momento


COMO VENCER TRAUMAS


Eilene Zimmerman
THE NEW YORK TIMES


Há alguns anos algo inimaginá-
vel aconteceu na minha vida. Eu
quis ajudar uma pessoa com
que me preocupava e que tinha
uma doença que vinha ocultan-
do. Fui a sua casa pensando em
levá-la a um pronto-socorro,
mas no final a viagem foi para o
necrotério. Quando cheguei ao
local, encontrei meu ex-marido
já morto, no chão do banheiro.
Qual era a doença oculta? Uma
injeção de droga na veia.
Sem dúvida este foi o aconte-
cimento mais traumático da mi-
nha vida e dos meus filhos. Eles
eram adolescentes na época e
acompanharam de perto o len-
to suicídio do pai. Foram neces-
sários dois anos para resolver o
inventário do meu ex-marido, e
foi um período de inação trau-
mático para mim, uma vez que
continuei a viver num estado
constante de urgência.
Na época, achei que nunca
nos recuperaríamos, que nossa
vida ficaria marcada para sem-
pre por esse terrível fato. Mas
hoje, quase cinco anos depois,
estamos bem. Ou estávamos,
até recentemente, quando, jun-
to com o resto do mundo, en-
frentamos esta atual convergên-
cia de crises.
O fato é que aquela fase horrí-
vel em minha vida foi um bom
treinamento para uma pande-
mia, para a agitação política e
social, a incerteza econômica e
financeira. Aquela experiência
me ensinou que nunca sabemos
realmente o que pode ocorrer
em seguida. Eu planejo o me-
lhor que posso, mas agora sou
muito mais capaz de focar meu
pensamento. Sou capaz de lidar
com as mais inesperadas adver-
sidades da vida, aceitar as difi-
culdades e seguir em frente mes-
mo que seja difícil.
A maneira como enfrenta-
mos uma crise ou um evento
traumático (e o coronavírus
tem muitas características do
trauma porque é imprevisível e
incontrolável) depende em
grande parte do quão resilien-
tes nós somos. Resiliência é a
capacidade de nos recuperar-
mos de experiências e contra-
tempos difíceis, nos adaptar-
mos, seguirmos em frente e, às
vezes, crescermos com eles.
A resiliência de um indivíduo
é ditada por uma combinação
de genética, história pessoal,
ambiente e a situação do mo-
mento. Até agora, pesquisas
concluíram que a parte genética
é relativamente pequena.
“No meu modo de pensar,
existem características de
temperamento ou personali-
dade que são geneticamente
influenciadas, como a capaci-
dade para assumir riscos, ou
se uma pessoa é introvertida
ou extrovertida”, afirmou Ka-
restan Koenen, professora de
epidemiologia psiquiátrica
na T.H. Chan School of Public


Health de Harvard.
A professora Koenen estuda
como os genes moldam nosso
risco de estresse pós-traumáti-
co. “Todos nós conhecemos
pessoas que são muito tranqui-
las. Parte disso é como somos
construídos fisiologicamente.”
Mas não é verdade que algumas
pessoas nasceram mais resilien-
tes do que outras, segundo a pro-
fessora. “Isso porque qualquer
traço de personalidade pode ser
positivo ou negativo, dependen-
do da situação.” E, ao que pare-
ce, muito mais importante é a
história de um indivíduo.
O determinante mais signifi-
cativo da resiliência – observa-
do em todas as resenhas ou estu-
dos de resiliência nos últimos
50 anos – é a qualidade das nos-
sas relações mais próximas, es-
pecialmente com os pais e aque-
les que cuidam de nós em pri-
meiro lugar. Os vínculos pater-
nos na infância têm um papel

crucial, para toda a vida, na adap-
tação humana.
“O quão amado você se sente
quando criança é um excelente
indicador de como administra
todo tipo de situação difícil
mais tarde na sua vida”, disse
Bessel van der Kolk, professor
de psiquiatria na Escola de Me-
dicina da Univer-
sidade de Bos-
ton, que faz pes-
quisas sobre es-
tresse pós-trau-
mático desde a
década de 1970.
Ele é fundador da
Trauma Resear-
ch Foundation, em Boston.
Segundo Van der Kolk, estu-
dos de longo prazo mostraram
que os primeiros 20 anos de vi-
da são especialmente críticos.
“Traumas diferentes em idades
diferentes têm seus próprios im-
pactos sobre nossas percep-
ções, interpretações e expectati-

vas; essas primeiras experiên-
cias esculpem o cérebro porque
é um órgão dependente da sua
utilização”, afirmou ele.
Resiliência seria um conjun-
to de habilidades que podem
ser, e com frequência são,
aprendidas. E parte do aprendi-
zado vem da exposição a expe-
riências muito di-
fíceis, embora ad-
ministráveis, co-
mo aquela que
meus filhos e eu
vivenciamos.
“O estresse
não é de todo
mal”, disse Ste-
ven Southwick, professor
emérito de psiquiatria, PTSD e
Resiliência na escola de medici-
na de Yale e coautor do livro
Resilience: The Science of Maste-
ring Life’s Greatest Challenges”
(Resiliência: A Ciência de Domi-
nar os Maiores Desafios da Vida,
em tradução livre). Se você con-

segue lidar hoje com tudo o que
vem ocorrendo no mundo a sua
volta, então quando estiver nu-
ma outra situação estará mais
forte”, explicou o professor.
E como enfrentar a situa-
ção depende da caixa de ferra-
mentas de resiliência que vo-
cê possui, para algumas pes-
soas, como meu ex-marido,
essa caixa estava cheia de dro-
gas. Para outros pode ser a be-
bida, comida em excesso, jo-
go, compras. Mas nada disso
promove a resiliência.
Pelo contrário, as ferramen-
tas mais comuns no caso de
pessoas resilientes são o oti-
mismo (que também é realis-
ta), uma bússola moral, cren-
ças espirituais ou religiosas,
flexibilidade emocional e cog-
nitiva e relacionamento social.
As mais resilientes são pes-
soas que geralmente não se de-
têm no que é negativo, que bus-
cam oportunidades que exis-

tem até nos momentos mais
sombrios. Durante uma qua-
rentena, por exemplo, uma
pessoa resiliente decide que é
uma época boa para começar
uma prática de meditação, fa-
zer um curso online ou apren-
der a tocar violão.
No meu campo de trabalho,
hoje, como estudante de assis-
tência social, ofereço suporte
para pessoas com câncer, que
é também uma experiência
traumática, e sempre as acon-
selho a se manterem fixadas
no momento presente e a se
concentrarem nas suas forças,
porque imaginar o pior cená-
rio não tem sentido e só au-
menta a ansiedade.
“Todos nós temos de com-
preender quais são nossos desa-
fios particulares e determinar
como vencê-los no momento
atual”, aconselha George Bo-
nanno, professor de psicologia
clínica e diretor do Loss Trau-
ma and Emotion Lab, no Tea-
chers College da Universidade
de Columbia. A boa notícia, diz
ele, é que muitos conseguem
vencer. O laboratório de Bonan-
no revisou 67 estudos de pes-
soas que vivenciaram todos os
tipos de eventos traumáticos.
“Estou falando de massacres,
furacões, ferimentos na medu-
la espinhal, coisas desse tipo. E
dois terços das pessoas demons-
traram resiliência. Dois terços
conseguiram lidar com a situa-
ção muito bem num curto perío-
do de tempo.” / TRADUÇÃO DE
TEREZINHA MARTINO

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

A


s grandes corporações pos-
suem departamentos de
marketing, gestores de es-
tratégia, pensadores sofisticados
que acompanham as mais recentes
Ted Talks sobre tendências estuda-
das em Harvard e Yale. Por vezes,
imagino, deveriam abrir mais o vi-
dro do carro parado em um sinal
na esquina das grandes cidades do
Brasil. Nonsense?
O vendedor dos cruzamentos é
um termômetro rápido que causa-
ria inveja a muitos especialistas. Ele
mede com precisão o “humor” do
mercado e do consumidor. O tempo
nublou? Nuvens pesadas anunciam
tormenta? Capas de plástico e guar-
da-chuvas surgem nas mãos laborio-
sas do ambulante. Choveu e os mos-
quitos se multiplicaram? Raquetes
elétricas serpenteiam entre os espe-
lhos retrovisores. Joga o Corin-
thians? Preto e branco se espalham
entre bandeiras, camisetas e bolas
customizadas. O homem talvez te-
nha time em casa, o vendedor da rua
tem público e mercado: pode estar
de verde no dia seguinte.

O dia termina e os carros voltam da
sua jornada. O ágil mercador identifica
veículos dirigidos por homens. Chega
e oferece um buquê de rosas pronto e
bonito. Sugere levar algo para a espo-
sa. O empresário pensa na boa ideia e,
por amor ou culpa, compra em rápida
negociação. O tempo é curto. Não é a
barganha elaborada e ritualística de
um tapete no Grande Bazar de Istam-
bul. A leitura do rosto e da intenção do
comprador deve ser mais ágil do que o
diligente turco com o kilim nas mãos.
Tudo deve ser resolvido no prazo máxi-
mo de um minuto. Terminado o tem-
po, o sinal abre e o cliente foge.
Horários de fome do meio da tarde?
“Larica” espalhando sua influência na
metrópole? Surgem frutas em bande-
jas e até casquinhas crocantes acompa-
nhadas de um sorriso. Cajus enfileira-
dos causam impacto visual. O notável
é que as comidas são oferecidas pelo
mesmo ambulante que, uma hora an-
tes, empunhava mapas. Sim, vendem-
se peças cartográficas nas esquinas!
Enrolados ou abertos, apelam a pes-
soas mais velhas que os usaram na es-
cola. Talvez aquele senhor septuagená-

rio compre para dar ao neto. Também
provável que o adolescente presentea-
do agradeça com educação e pense que
tem um aplicativo mais prático no seu
celular para aprender Geografia.
Quando é seguro, deixo o vidro aber-
to nas esquinas. Escuto e aprendo. Sou
chamado de “doutor”, “campeão”,
“grande”, “bacana” e recebo um sorri-
so embebido em treino de palco urba-
no. Vender é esbanjar simpatia. Frases
de impacto, gestos marcados e efica-
zes: tudo ajuda naquela luta instantâ-
nea. Um autônomo de farol poderia
dar cursos muito instrutivos para uma

pós-graduação em técnicas de venda.
Há espaço para a criatividade em-
preendedora. As pessoas comuns ven-
dem garrafas plásticas de água. O em-
preendedor original se veste de garçom.
Por quê? A camisa branca, a calça preta,
a gravata-borboleta e a pochete com di-
nheiro trocado (ok, ninguém é perfei-
to) agregam rápida identificação com
uma personagem confiável. Quem faz
propaganda na televisão ou foto publici-
tária sabe que o consumidor necessita
identificar uma enfermeira ou professo-

ra em segundos rápidos. O estereótipo
é eficaz. O público precisa conhecer em
um olhar quem é e o que vende. A perso-
nagem vende muito mais.
Todo trabalho honesto é digno. Eu
substituí meu azedume de outrora pe-
la tentativa de ver e aprender. Ali an-
dam, rápidos, seres humanos lutando
para sobreviver, como eu. Apenas algu-
mas coisas me irritam muito: crianças
usadas para esse fim. Sabendo que so-
mos mais simpáticos ao vendedor mi-
rim, constato, em pleno horário esco-
lar, os pequenos passando entre os car-
ros. Em geral, mais adiante, gordos pro-
genitores descansam sob uma sombra.
Nunca compro de menores e ainda rea-
firmo forte: “Você deveria estar na es-
cola”. Uma única vez parei o carro e fui
vociferar contra um senhor (pai?) que
colocava três meninas vendendo. É pe-
rigoso fazer o que eu fiz, mas o fato me
tira do cercadinho da razão.
Há mais ambiguidades no comércio
que estou tratando além da exploração
do mundo infantil. Há produtos sem
nota fiscal, contrabando frequente,
controle de qualidade inexistente, con-
dições sanitárias claudicantes com a
comida oferecida, falta de licenças ou
alvarás e uma concorrência com aque-
le comerciante que, na sua loja, paga
impostos altos para ter o direito que o
da rua obteve gratuitamente. A concor-

rência é real e marcada pela desigual-
dade. A informalidade é um impera-
tivo que deve crescer ainda mais na
crise atual.
Aprendi algo novo conversando
com vendedores. Nem sempre, ao
lado do seu carro, está um autôno-
mo que vende seus produtos. Por
vezes, há um chefe por detrás dele.
Alguém que tem capital para com-
prar mais, organizar, trazer o vende-
dor e constituir um novo tipo de em-
presário. Assim, sem nenhum ampa-
ro trabalhista, surgem formas de
ocupação que geram recursos para
alguém bem distante daquele sorri-
dente ser humano ali presente.
Por fim, com suas genialidades e
ambiguidades, temos algo a apren-
der observando mais e conversando
mais. Independentemente de tudo,
um ser humano merece sempre nos-
sa simpatia por estar ali, de pé, lutan-
do. Para mim ou para você, muitas
vezes, chama-se importunação. Pa-
ra ele, sempre, intitula-se sobrevi-
vência. Compro pouco, mas tento
ver que existe alguém. Ser invisível
é um castigo enorme para quem tem
pressa em comer. O farol é a trin-
cheira de uma guerra difícil e sorri-
dente. É preciso ter esperança e um
pouco de empatia em momentos bi-
cudos como o atual.

O DETERMINANTE
NA RESILIÊNCIA É A

QUALIDADE DAS
RELAÇÕES PRÓXIMAS

Incertezas. Em tempos da pandemia de coronavírus, que tem muitas características de um trauma, a resiliência da população mundial é colocada à prova

A trincheira do farol


O vendedor dos cruzamentos é
um termômetro rápido que daria
inveja a muitos especialistas

MONIKA AICHELE/NYT
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