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“Talvez a epidemia tenha começado com um
morcego numa gruta, mas foi a actividade humana
que o deixou à solta”, escreveu no “The New York
Times”, em Janeiro, David Quammen. Certamente,
tudo aponta para que o reservatório do SARS-CoV-2
sejam os morcegos e que o vírus tenha saltado des-
tes mamíferos para um animal intermediário. O
genoma deste coronavírus é muito parecido com o
que causou a epidemia da SARS entre 2002 e 2003.
Em 2005, a cientista chinesa Zheng-Li Shi, do Insti-
tuto de Virologia de Wuhan, constatou que o vírus
provinha destes mamíferos alados depois de estu-
dá-los numa gruta em Yunnan, 1.600 quilómetros a
sudoeste de Wuhan, e em 2017 publicou um artigo
confirmando que exemplares de quatro espécies
diferentes de morcegos eram portadores.
Essenciais para a manutenção dos ecossiste-
mas, pois controlam pragas de insectos, disper-
sam sementes e polinizam plantas, estes animais
são muito tolerantes aos vírus e são abundantes:
existem mais de 1.100 espécies. Segundo um estu-
do realizado em 2018 por cientistas da China e de
Singapura, a aptidão para o voo requer tanta ener-
gia que provoca o rompimento de certas células, li-
bertando fragmentos de DNA, que ficam soltos no
organismo. Noutros mamíferos, este material ge-
nético seria identificado como nocivo pelo sistema
imunitário, disparando uma resposta defensiva;
nos morcegos, a resposta é ténue. A reacção é simi-
lar à que ocorre na presença de vírus: defendem-se
de forma eficaz, mas moderada, e não adoecem.
Dos sete coronavírus humanos conhecidos, só
três provocam doenças potencialmente mortais
e todos provêm de morcegos. O primeiro emergiu
em 2002 em Yunnan, na China. Foi o SARS-CoV,
que provocava a síndrome respiratória aguda gra-
ve, cuja taxa de letalidade rondou os 10%, apresen-
tando um R0 (taxa de contágio, ou seja, o número
médio de pessoas contagiadas por um só infecta-
do) de 3. Nesse caso, o animal intermediário foi a
civeta, um mamífero muito popular nos mercados
da China. Depois do abate dos exemplares cativos
e da desinfecção das unidades de produção, o ví-
rus desapareceu. Provocou cerca de 8.422 casos
diagnosticados e 774 mortes em 30 países.
EM 1950, CONHECIAM-SE 4 CORONAVÍRUS,
NENHUM MORTAL. DESDE 2002, APARE-
CERAM 3 NOVOS, TODOS MORTAIS.
Dez anos mais tarde, em 2012, outro coronaví-
rus potencialmente mortal surgiu na península
Arábica. Designado por MERS-CoV, provoca a Sín-
drome Respiratória do Médio Oriente e ainda se
mantém activo de forma esporádica. Neste caso,
foi o dromedário a via utilizada pelo vírus para sal-
tar para os humanos. Com uma letalidade de 35%
e uma taxa de contágio inferior a 1, provocou 2.468
casos documentados em 27 países e 851 mortes.
Agora, apenas oito anos depois do primeiro sur-
to, surge o SARS-CoV-2, felizmente menos mortal
(a taxa de letalidade é certamente inferior aos pri-
meiros números publicados, que variavam entre
2 e 4%, porque há muito mais pessoas contagiadas
do que o número de casos confirmados), mas com
um R0 elevado: cerca de 3, segundo os dados mais
recentes. O intermediário? Embora não seja garan-
tido, o pangolim é o candidato mais provável.
À medida que o drama se desenrolou no
hemisfério norte a partir de Fevereiro, a maioria
dos cidadãos globais interrogaram-se, surpreen-
didos, com a natureza efémera de todas as nos-
sas certezas. A sensação geral é que nós, seres
humanos, fomos vítimas de um ataque súbito e
imprevisível desferido por um agente patogénico
malévolo. Não obstante, este acontecimento não
foi inesperado. “A pandemia derivada da infec-
ção pelo vírus SARS-Cov-2 já estava anunciada
pelos cientistas familiarizados com a ecologia da
doença, a disciplina que estuda as condições am-
bientais que favorecem o aparecimento de novos
agentes patogénicos”, diz Pedro Jordano, investi-
gador da Estação Biológica de Doñana, especia-
lista em inter-relações ecológicas. Não estamos
preparados para enfrentar estas situações porque
as estratégias de combate às doenças emergentes
são, essencialmente, reactivas: só actuamos quan-
do acontecem. Por outras palavras, quando é tarde
de mais para evitar a primeira vaga de contágios.
“As pandemias ocorrem quando abrimos bre-
chas na natureza de forma excessiva e descontro-
lada, como as brechas causadas pelo comércio, a
caça e o consumo de animais selvagens, a desflo-
restação ou a exploração excessiva de gado. Tudo
isto quebra o efeito protector da biodiversidade e
favorece a transferência de agentes patogénicos”,
acrescenta Pedro Jordano. “A isto há que somar
ainda dois elementos fundamentais: primeiro, o
facto de só conhecermos cerca de 1% dos vírus dos
animais selvagens; segundo, a densidade cada vez
mais elevada da população humana e a sua mobi-
lidade sem precedentes promovem uma infinitu-
de de vias de contágio.”