Adega - Edição 177 (2020-07)

(Antfer) #1

Edição 177 >> ADEGA 77


As canções de beber de


Pessoa


O poeta que, à luz do vinho, interpretou
o sentimento de uma época

E


xtensa e literalmente multifacetada,
a obra de Fernando Pessoa impres-
siona sem cessar leitores dedicados
e de ocasião. A primeira estrofe
do mastodôntico “Tabacaria”, por
exemplo, é amplamente conhecida e traduz o
sentimento de um dos muitos nomes com que
Pessoa assinava os seus poemas:

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo”.

Pessoa, aqui, faz bom uso do lugar-comum
que opõe vida e sonho, para traduzir o sentimen-
to de um homem como Álvaro de Campos, o
seu heterônimo mais celebrado: diante da vida
esvaziada, a infinidade de sonhos é o ópio do
pessimista decadente, que falhou em tudo, e só
faz assistir das janelas de seu quarto (de um dos
milhões do mundo) o vai-e-vem das multidões,
a refletir sobre a opacidade das coisas e sobre o
amargor de uma vida que insiste em não ser su-
blime.
Mas falemos menos sobre os trabalhos mais
estudados, discutidos, recitados de Pessoa, e mais
a respeito das tardias canções de beber, inspira-
das diretamente no Rubaiyat, do poeta persa dos
séculos XI e XII Omar Khayyam. Em português,
rubaiyat significa quadra, quarteto: é uma alusão
ao número de versos nas estrofes dos poemas. A
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